Chamariz escrita por Bibelo


Capítulo 3
Reclame o Sol


Notas iniciais do capítulo

Finalmente o último capítulo!

Boa Leitura!



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A viagem durou por várias horas antes que William finalmente parasse a égua à beira do riacho. Já passava de meio-dia, a neblina os escondia dos raios solares mais intensos, ainda assim, era uma manhã quente e abafada. 

Nico desceu primeiro, esticando o corpo dolorido pelo tempo na sela. Não se lembrava da última vez em que cavalgou, mas sabia que demoraria até se acostumar com o desconforto. Will soltou a égua próximo da água, permitindo que aproveitasse um pouco da natureza ao redor.

Se sentou em uma das pedras com Sra. O’leary aos seus pés, sendo acariciada vagarosamente. Nico seguiu para perto deles, sentando-se na grama alta e úmida. Suspirou cansado, esticando ambas pernas tensionadas. Will soltou uma risada.

— Foram só algumas horas. — zombou o rebelde, divertido: — Temos mais um dia inteiro antes de chegarmos ao acampamento. 

Nico bufou: — Sinto muito se meu único meio de locomoção nos últimos anos foram minhas próprias pernas. 

— Não diria que as duas são propriamente suas. — insistiu William, bebendo da água em seu cantil. 

— Eu a fiz, é minha. — soltou um pequeno sorriso, recebendo o cantil de Will, finalizando a água dentro dele. 

Ficaram em silêncio por mais um tempo, o que deu à Nico alguns momentos para colocar seus pensamentos em ordem. Estava há diversas horas de Arcania, sentado num riacho ao lado de um Revolucionário avesso à Era do Vapor, em uma posição vulnerável demais para lutar caso William resolva exterminá-lo antes de chegarem ao refúgio.

Não havia, claro, nenhum motivo para que Will o matasse naquele instante, sendo que dormiram no mesmo quarto algumas horas antes, e poderia ter finalizado o serviço sem a viagem de dois dias. 

Ainda assim, uma parte de sua mente se mantinha em alerta, observando-o com cautela. Will parecia relaxado, apoiado nos braços, a cabeça jogada para trás, absorvendo o céu enevoado; tão perigoso quanto Sra. O’leary deitada na grama, adormecida. O viu fechar os olhos, apreciando o mormaço do dia, a brisa fresca, e Nico resolveu fazer o mesmo. 

Retirou o paletó, estendendo-o na grama e se deitando por cima, soltando um suspiro longo e casado. O silêncio da natureza era diferente dos canais. Não era absoluto, ou fragmentado com dilatações de metal. Era uma sinfonia de sons, desde folhas sacudidas pelo vento na copa das árvores, ao correr suave do riacho aos seus pés; ouvia as cigarras cantando suas melodias únicas, num show gratuito para ouvintes ansiosos. 

Ao longe ouvia o bater de asas, o som de animais e cantos de pássaros em seu habitat reclamado depois do desaparecimento dos humanos. Nico fechou os olhos, inspirando o ar fresco e límpido — ao menos mais do que na cidade —, permitindo-se desligar sua mente do homem ao seu lado. 

Não dormiu, mas relaxou o suficiente para assustar-se com Will se sentou nas pedras, suas mãos envolvendo o cabo de sua adaga presa em sua perna. Nico ergueu-se minimamente, tenso. Will observou os arredores, olhos no mesmo brilho afiado de horas antes, enquanto fugiam da Alta Arcania. 

Ficaram naquela posição por longos momentos, mas então Will relaxou novamente, sorrindo brilhante para Nico. 

— Alarme falso, desculpe. — comentou sem graça: — Não queria preocupá-lo. 

Nico suspirou: — Bom, já estou. É mesmo seguro ficarmos desta forma, expostos?

— Eles não entram nas florestas com frequência, respeitam a natureza, mas podem nos ver pelos transportes aéreos, se quiserem. — respondeu sincero, dando de ombros: — Mas dá para ouví-los. Podem ter evoluído muitas coisas, mas os dirigíveis e aviões ainda são movidos à vapor. 

— Então, o que pensou que fosse? — inquiriu Nico, curioso. 

— Scarlet ficou tensa, achei que pudesse ser algum predador. Ainda podemos ser devorados, sabe? — disse de forma divertida, tirando um rolar de olhos dramáticos do inventor. 

— O nome da sua égua é Scarlet?

— Acho um nome forte. — respondeu convicto, deslizando para a grama, ficando ao lado de Nico: — Igual Sra. O’leary. Elas impõem respeito se assim desejarem. 

Nico não pode deixar de sorrir: — Sra. O’leary já impõe, sou maleável demais com ele. 

— O mesmo comigo e Scarlet. Eu chego a parar diversas vezes por dia em uma viagem só para não deixá-la exausta. Transformo uma viagem de horas em um dia ou dois. — confessou risonho, sem culpa alguma. 

Nico balançou a cabeça, deitando-se novamente sobre o paletó. Apertou os olhos para o céu enevoado, um pensamento se passando em sua mente. 

— Solace? 

— Hm?

— Por que está fazendo tudo isso? 

Will o encarou por longos instantes, no silêncio agudo na bolha na qual se colocaram. Nico sustentou seu olhar, imaginando diversos cenários onde Will poderia precisar de seus serviços, e nenhum deles tinha as respostas que gostaria de ouvir. 

Nico conhecia seu pecado como inventor, e tudo aquilo que perdeu ao dedicar sua vida à uma Era em decadência. E por entender seus feitos, nunca condenou os líderes dos refúgios que o expulsaram por traição; do medo racional de pessoas com poder de criar e destruir. 

Nico vagou por meses, migrando entre refúgios como um nômade, sua presença negada antes mesmo de chegar neles. 

Por isso, uma parte de Nico temia pela resposta negativa de William, na honestidade branca de alguém que o salvou duas vezes em poucas horas. Não por obrigação, mas por querer.

Will respirou fundo, apoiando as costas na pedra grosseira. 

— Como eu disse antes, preciso de um inventor para consertar uma peça muito estimada para nós, mas não foi a única razão. — virou o rosto para Nico, seus olhos largos e azuis brilhando na luz natural da floresta: — Eu sei como as pessoas tratam os inventores. O descaso, a raiva, como se a culpa da destruição fosse coletiva. Mas você estava sozinho, e ninguém deveria enfrentar este pesadelo sem companhia. 

Nico abaixou o olhar, encabulado. Não era bem aquilo que esperava ouvir.

— Não sou a melhor das companhias. 

— Nem eu. — rebateu Will, o sorriso se expandindo em seu rosto bronzeado. 

— E não estou sendo acusado por culpa coletiva. — confessou baixo, erguendo-se da grama.

Sacudiu o paletó, retirando a grama de seu tecido enquanto recolocava a peça. Sentia o olhar curioso de William sob ele, mas não falaria sobre aquilo, não ainda.

— Tenho enlatados na mochila. — Nico ofereceu, caminhando até a égua um pouco distante da margem. 

— Ah, eu aceito! Estou faminto! — comentou divertido, acomodando-se no gramado. Nico retirou duas latas, um pequeno abridor, e retornou para o chão de frente para Will. 

Sentou-se na grama, absorto no silêncio agradável da floresta, com Sra. O’leary deitada ao seu lado, ressoando calmamente em seu descanso. Pensou que ficariam imersos na quietude entre eles, mas logo William iniciou uma conversa agradável, comentando sobre o refúgio. 

Explicou a localização beira mar, das sequóias que cobriam as casas escondidas sob suas copas altas; explicou como funcionavam os ataques organizados, os grupos que batalhavam na linha de frente e aqueles que cuidavam do bem-estar e da saúde de cada um. 

Contou sobre o antigo inventor, sobre como havia criado um sistema de segurança para que os rebeldes pudessem descansar sem medo de serem encontrados pelos Solaries. Leo Valdez era em supra suma um homem boêmio, sempre com conversas divertidas em sílabas abertas e sorrisos largos em seu rosto sujo de graxa. 

Isolado em sua oficina, Leo criava e inventava ao mesmo tempo em que auxiliava aqueles com partes sobressalentes. Uma mão amiga entre os médicos tão escassos e inexperientes num mundo de medicina precária e esquecida pelo tempo falsamente evoluído em sua própria bolha de vitórias perdidas.

Durante sua conversa o céu escurecia, tomando as cores áureas de um pôr-do-sol que à anos não via. Ainda que sob a névoa, a cor irradiava pelas copas das árvores, refletida no rio tranquilo e límpido de anos longe das mãos destrutivas do homem. 

Nico respirou profundamente, recostando-se nas pedras, de frente para William. O rebelde acendeu uma fogueira entre eles, baixa o bastante para não serem detectados, mas intensa o suficiente para enxergá-lo através do breu. Nico cruzou os braços, observando a postura relaxava do homem à sua frente, esparramado na grama alta.

O silêncio foi tomado pelo crepitar do fogo, o ressoar baixo da respiração de Scarlet e o breve ardor de Sra. O’leary ao seu lado, em lentas vibrações. Nico escorregou o corpo para baixo, afundando-se em seu paletó surrado, aquecendo-se enquanto forçava seu corpo à dormir. 

Enquanto o fazia, podia ouvir o som baixo de engrenagens funcionando e vapor riscando os céus acima da neblina densa que os protegia. Fechou os olhos com mais intensidade. 

Se fosse capturado naquela clareira, ao menos gostaria de ter suas últimas horas de sono garantidas. 

 

⚙ ⚙ ⚙

 

— Desculpe por isso, normalmente ela é bem comportada. — confessou Will ao pararem na estrada enquanto descia da égua, esticando uma mão para Nico caído ao chão, resmungando alto ao ser jogado para fora da sela. 

— Ela se assustou com alguma coisa? 

— Acredito que sim, ainda está inquieta. Na verdade, esteve inquieta a noite inteira. — comentou pensativo, erguendo Nico do chão de terra batida. 

William passou a mão por suas roupas sujas de poeira, ajeitando sua camisa sob os suspensórios, deixou as mãos apoiadas nos ombros de Nico. Mesmo no contato com o metal, sua memória muscular criava nela o calor de William como fornalha a brasa. Sentiu-se incomodado com seus pensamentos, por mais que aceitasse toques como aqueles depois de tantos anos isolado da vida humana. 

— Você está magro demais, precisaremos alimentá-lo devidamente quando chegarmos em Patwell. — zombou baixo, alisando os dedos em sua pele ardente, os lábios entreabertos em um sorriso singelo. 

Nico respirou fundo, bem fundo

— Não acho que seus companheiros irão concordar em me servir porções além das diárias. — relembrou Nico segurando o pulso de William com sua mão humana, aumentando o toque de suas peles, sentindo o pulso rápido do rebelde. 

— Não vão se importar. — garantiu com uma convicção tola. Nico sorriu contrariado, permitindo-se entrar na brincadeira do Solace. 

— Diga-me, quando iremos chegar em Patwell? — questionou Nico atrás de alguma conversa banal que mantivesse William perto. 

Sabia que estava ruborizando gradualmente sob o olhar afiado do Solace, mas contentava-se com as batidas desenfreadas do coração de Will que o delatava. Não era só Nico afetado por sua presença tão próxima. 

— Amanhã cedo. Iremos acampar próximos da divisa de Patwell e Somalhia. Mais algumas horas. — respondeu afastando-se do inventor, o sorriso envergonhado enquanto seu rosto começava a se tingir de rubro. 

Nico pigarreou: — Certo, vamos voltar para a Scarl—

William tapou sua boca com brusquidão, encarando por cima de seus ombros, os olhos severos em sua expressão dura. Nico tensionou os músculos, preparando-se para uma fuga emergencial. 

A mão livre de Will desceu para a lateral de sua perna robótica, retirando a mesma adaga eletrificada que exterminou um Solarie em um único golpe. Seus olhos correram para Nico, numa determinação admirável. Gesticou com a cabeça para que o seguisse enquanto retornava para Scarlet, retirando-a da estrada principal, arrastando-a até a mata fechada. 

Nico o seguiu a passos leves, voltando o olhar para a estrada de terra num frenesi gélido. Esgueirou-se pela mata, aproximando-se de Will que se agachava atrás de uma árvore. Sentiu os dedos do rebelde envolverem seu antebraço, puxando-o para trás dele; mais uma vez servindo-lhe como escudo humano.

Ficaram naquela posição por longos momentos, segundos intermitentes no silêncio angustiante. Nico ouvia sua própria respiração, a pulsação do sangue em seu ouvido na tensão de seu corpo. Levou seus dedos para o aparelho auditivo ajustando a frequência. No instante em que o fez ouviu os passos pesados dos Solaries em sua marcha gloriosa. 

Os ombros de William enrijeceram, crescendo em frente à Nico, ocultando-o da vista da estrada. O tremor no solo intensificou, deixando Scarlet instável, relinchando incômoda com a pressão com a qual aquelas bestas se aproximavam. 

Nico deu alguns passos para perto de Scarlet, puxando com cautela a ponta de seu bastão. Voltou para o solo no instante em que olhos áureos reluziram através da névoa. 

As memórias do Solarie no beco paralisou Nico no lugar. Naquele beco onde pressentiu sua morte, acometido pela sede assassina de bestas sem desejos ou anseios; se viu tomado pela gravidade de uma marionete clamando por uma vida que não lhe pertence, destruindo aqueles que tem o que desejam. 

Por puro instinto, levou sua mão humana até a cintura de Will, repuxando sua camisa branca. Seria um ato totalmente impensado, imoral em sua essência, mas ali frente à uma marcha de duas dezenas de Solaries, Nico precisava do conforto de calor humano.

A mão de Will cobriu a sua, quente, calejada e áspera, mas confortável ao envolver a sua. A marcha passava logo em frente, ocupando o espaço onde estiveram previamente. Aproximou seu corpo de William, olhos travados nas bestas de bronze. Inspirou profundamente, prendendo o ar em seus pulmões por longos instantes, aguardando a última fileira de Solaries desaparecer no final da estrada. 

Sra. O’leary rosnou.

Foi como se o mundo estagnasse naquele momento, tingindo-se de cores opacas e esmorecidas. Will virou o rosto para a cachorra que rosnava e latia para a última fileira de Solaries, raivosa com algo que Nico não conseguia identificar. Tentou avançar em direção à ela, mas Will o impediu, jogando-o contra a árvore, totalmente fora do campo de visão tanto da estrada quando da Sra. O’leary. 

Ela continuou a latir, e, por consequência, Scarlet começou a relinchar, afastando-se das bestas que tornaram-se curiosas para os animais incomuns. Os passos começaram a se aproximar, e Sra. O’leary tornou a rosnar e latir, mais alto e intenso, avançando e recuando, sem realmente aproximar-se deles.

Will xingou baixo, olhando para trás, para um ponto de fuga na floresta densa. Mais passos começaram a se aproximar, reverberando no solo à seus pés.

A frequência da comunicação dos Solaries ecoou aos ouvidos de Nico, no silvo agudo e ensurdecedor, entorpecendo-o. Abaixou a cabeça em agonia, tapando os ouvidos com ambas mãos. Will chamou seu nome, mas logo uma explosão assustou Scarlet que empinou sobre duas patas, desesperada. Nico congelou saindo dos braços de Will, ouvindo o choro baixo de Sra. O’leary enquanto o óleo vazava pelo ferimento em sua carcaça pelo disparo da besta de bronze. Uivava, resmungava, chamando por ajuda. 

Nico puxou o ar, incrédulo, o peito contraído em tormenta. Seus olhos encontraram com o Solarie, e Nico só teve tempo de firmar o bastão em sua mão antes ser puxado por William que o guiou para longe. Outro disparo foi ouvido, acertando próximo deles, na fuga desesperada de uma marcha inteira. 

Will atingiu Scarlet com força em sua perna traseira, forçando-a em uma fuga desesperada, deixando-os para trás, sozinhos. 

— Por que a mandou embora assim?!

— Eles não matam animais, mas ela está carregada com armas e nossas mochilas! Tudo tem exceção! — gritou William enquanto o puxava pelo pulso. 

William era rápido demais para acompanhá-lo sem ajuda, mas pelo som pesado de passos rápidos atrás deles, sabia que não seria nenhum desafio para as bestas. Will continuou a correr, fazendo curvas quando necessário, como se conhecesse aquele terreno perfeitamente.

Saltou o barranco, virando-se para ajudar Nico na aterrissagem antes de recomeçar a fuga. Aos poucos foram chegando próximos do rio, o ar tornando-se úmido, o vapor espesso. 

— Solace?

Sem respondê-lo, William apressou o passo, olhando por cima do ombro de Nico. Praguejou alto, puxando Nico para frente, para a vista da cachoeira erguendo-se majestosa e terrível. Iriam pular?!

Solace!!

— Confie em mim! 

— É uma cachoeira! Não vamos sobreviver à queda! — gritou horrorizado, sem saber o que preferia naquele instante, ser morto pelos Solaries ou desmembrado pela força de sua queda na superfície da base da cachoeira. 

— Não é tão alta, e a correnteza vai nos levar para o Sul! Por favor, confie em mim! — pediu Will parado no despenhadeiro. Se virou para Nico com desespero no olhar.

Aquilo não fazia sentido! Nada daquilo, de todo aquele sacrifício e quase morte. William era o mais tolo dos homens! Ridículo, impossível!

Nico!

Nico se virou para trás, para onde o pânico de Will se concentrava. Dezenas de Solaries corriam em direção à eles, os olhos ardentes em sua perseguição profícua. Nico se voltou para Will, assustado, quase em prantos, mas anuiu. 

— Confio.

Will então o puxou para seus braços e saltou da borda. Nico sentiu o peso da gravidade arrastando-o para baixo, rápido, muito rápido. Os braços de Will envolveram-o com força, absorvendo o impacto na água. Nico afundou em seu peitoral e mergulhou nas águas escuras e rápidas da correnteza impiedosa.

Ao atingirem o fundo de cascalho, foi separado de William pela força do encontro das águas, e se viu sozinho no rio que corria furioso, como a natureza em sua vingança eterna. Nico não conseguia manter-se fora da água por muito tempo. Respirava um pouco de ar antes de engolir mais água. Sua perna e braço metálicos o puxavam para baixo, no peso excessivo e inconveniente, âncoras amarradas em seus membros inúteis. 

Tentou segurar-se em uma das pedras, mas a tentativa lhe custou um corte profundo em sua palma e antebraço, e mais água em seus pulmões. Sentiu que iria se afogar, e sequer sabia para onde estava sendo arrastado enquanto lutava por ar e terra firme e ar e ar e ar e ar…

Foi puxado para baixo, por uma corrente profunda no rio. Tragado para o fundo, as bordas de sua visão tornaram-se escuras, turvas e pesadas. Seus músculos fadigaram de sua luta constante contra a força da água, abandonando a sobrevivência vã. 

Nico perdeu os sentidos, carregado rio abaixo, sozinho, frígido, devorado pela natureza que tanto desprezou.

 

⚙ ⚙ ⚙

 

Seus pulmões queimavam enquanto expelia a água para fora deles em uma torrente de tosses desesperadas. 

Sua garganta rasgava pela intensidade dos espasmos, o gosto ferroso em sua boca ocupando seu paladar enquanto expelia a água doce e invasiva de seu corpo. Resfolegou pesado, puxando o ar com força, engasgando-se com ele, acometido por outra onda de tosses. 

Sentiu mãos em suas costas, acariciando em círculos calmantes, o som de palavras ocas em seus ouvidos mudos. Continuou de joelhos, trêmulo, em busca do ar que lhe foi negado por tempo suficiente.

Passaram-se minutos — ou um quarto de hora, pareceu uma eternidade para ele — antes que começasse a distinguir os sons ao seu redor. O rio corria mais calmo, a vegetação se mexia letárgica pelos ventos suaves do verão.

Ao seu lado, a respiração pesada e cansada de William o ajudou a focar sua mente no real. Concentrou-se em sua mão quente em suas costas, no sobe e desce de seu peito contra seu ombro rígido. Sua voz era suave, delicada como um manto, cobrindo-o com a calmaria de abrigo. Concentrou-se na voz, nas palavras que formavam de seus lábios.

—…devagar, vai ficar tudo bem. — o som da voz doce de William ecoou em seus ouvidos, baixa, abafada, mas ali como sua âncora. 

Tateou por ele, buscando algum contato real com William, para a certeza de que aquela voz era dele e não um projeto criado por sua mente traumatizada. Sentiu o toque gentil dos dedos de Will nos seus, puxando-o para perto. Nico deitou o corpo contra o de William, respirando mais fácil, mais profundo.

A mão em suas costas ainda o afagava, e aos poucos conseguiu forças para reabrir os olhos. 

Estava na beira do rio, bem longe das correntezas ou da própria cachoeira. Fora arrastado por quilômetros depois de desmaiar no fundo do rio. Fechou os olhos novamente, aninhando-se no calor de William, tão encharcado como ele.

— Co...como cheguei aqui? — inquiriu baixo, num sopro cansado. 

— A correnteza te trouxe pra cá, mas eu quem te tirei das águas. — respondeu no mesmo tom, um resquício de dor em sua voz.

Nico prensou os lábios. 

— Eu me afoguei?

Will o apertou mais em seus braços e não respondeu, mas para Nico foi o bastante para entender. Provavelmente havia parado de respirar em algum ponto antes de ser encontrado por William. Não precisava de detalhes para entender como Will o trouxe de volta, era trauma o bastante por um dia. Sem dizer mais nada, Nico abriu os olhos.

— Onde estamos?

— Na fronteira com Patwell. Foi um atalho bem rápido. — disse de forma seca, uma risada amarga: — Me desculpe, Nico. Era a única forma de fugirmos dele, não irão nos seguir rio abaixo, mas…

Nico respirou fundo, compreendendo. Não insistiria no assunto.

— Eu não quero andar pelas próximas horas. — admitiu numa risada fraca. Will riu também. 

— Claro que não. Vou te levar pra uma parte mais fechada da floresta. Não vão nos encontrar lá. 

Com cuidado, Will ajudou Nico a ficar de pé, o sustentou pela cintura enquanto caminhavam devagar pela orla de cascalho. 



Will acendeu uma fogueira farta próxima a Nico. Retirou a roupa pesada do corpo para que secasse, mantendo-se com a camisa fina e ceroula. Ainda se sentia um pouco aéreo, mas conseguia acompanhar em partes a explicação rápida de William sobre "ir buscar Scarlet na estrada e que voltaria em um quarto de hora."

Nico não entendia bem como ele encontraria a égua, mas achou melhor não quebrantar suas esperanças. Ainda tremia um pouco pelo frio, os músculos doloridos pela água congelante, mas ao poucos ia se aconchegando na fogueira, o cansaço dominando seu corpo e mente. 

Esticou a mão para o lado, atrás da vibração baixa da Sra. O'leary para um momento de conforto familiar. Sua mão parou no ar, a realidade finalmente o embalando. 

Ela foi atingida pelos Solaries, provavelmente destruída pelas mãos cruéis das bestas de bronze. Nico estremeceu, o som do choro lânguido dela o despencando na situação a qual se encontravam. 

A cachorrinha foi sua companheira por anos na solidão fria do subterrâneo em Arcania, somente eles na imensidão escura da cidade abandonada. Ele a criou desde as primeiras peças, os primeiros testes — sucessos e fracassos; seu animal de estimação mais leal e amado.

Não conseguiu segurar as lágrimas enquanto a imagem dela ferida e clamando por ajuda invadia sua mente. Escondeu o rosto em seus joelhos, abraçando-os com força, deixando a tristeza da perda o embalar. Não conseguia se lembrar quando foi a última vez que chorou daquela forma, mas sabia que era um acúmulo do que segurou por anos ao longo dos desastres. 

Havia tanto que Nico desejava alterar, tantas consequências que não pudera quantificar no passado, tendo que enfrentá-las e aceitar aquilo que o mundo lhe ofertou. Ali, sozinho no meio da floresta densa, com uma fogueira quase morta, seu corpo frio e dolorido, as lágrimas escorrendo livres por seu rosto, Nico sentia-se como um noviço em Arcania, recém formado na universidade de engenharia, desbravando mundos nunca antes conhecidos pela ciência.

Ah, como fora tolo. 

Barulho de cascos o fez erguer a cabeça, a visão de Scarlet embasada em seus olhos úmidos. Os limpou rapidamente, encarando Will aproximando-se com a égua, sorrindo timidamente à distância. Nico virou o rosto, sem conseguir retribuir. 

Will amarrou o animal próximo da fogueira e se aproximou de Nico, ambas mochilas em mãos. Sentou-se de frente para Nico, procurando seus olhos. O inventor o encarou. Sabia que estava com os olhos inchados, e pela feição preocupada de William não era sua melhor aparência.

Esticou o braço para ele, um amontoado de roupas em suas mãos. Nico franziu a tez pegando o pacote de roupas secas. Pesaram em seu braço, despencando em seu colo. Assustado, desembrulhou elas, observando os restos de Sra. O’leary dormindo pacificamente em seu colo. Soltou uma risada úmida, incrédula.

— Eu voltei lá com Scarlet. Ela só parece estar sem óleo, talvez consiga consertar. — comentou Will, aproximando-se de Nico: — Desculpe não poder ajudar. 

Nico balançou a cabeça, acariciando a carcaça fria dela. 

— Tudo bem, você achou ela. Posso consertar, mas não é rápido. — confessou para Will, o olhar frágil e aberto: — Faltam três dias para o Natal, posso consertá-la depois, tudo bem…

Will respirou fundo e, se aproveitando do momento de distração de Nico, deitou em seu ombro.

— Podemos ficar um pouco mais aqui. De onde estamos são umas duas horas até o refúgio. Traga ela de volta. — disse sereno, fechando os olhos num cansaço compreensível.

Nico sorriu satisfeito, ajeitando-a confortavelmente em seu colo antes de se deixar descansar com Will ao seu lado, o calor de seu corpo irradiando por ele, acordando músculos há muito adormecidos. 

Toda a frustração de antes começou a desaparecer, se deixando confiar naquele homem tão honesto e aberto. Respirou fundo, sua cabeça sobre a de William, o cansaço ninando-o.



⚙ ⚙ ⚙

 

Nico fundiu um pedaço de metal por cima do buraco na carcaça de Sra. O’leary, usando dos equipamentos que havia colocado em sua mochila. Por sorte, havia nela restos sobressalentes de outras pilhagens, podendo usar nos reparos do autômato.

Enxugou a testa com as costas da mão, finalizando o conserto. Precisou de um dia e meio para isso, mas havia finalmente terminado os ajustes finais. Ergueu-se da grama, esticando a coluna longamente para cima. Will o encarou de onde estava, tomando um banho sol do alto de uma pedra.

Estava sem camisa, o corpo bronzeado e repleto de sardas exposto para os céus o adorarem. Em seu peitoral, uma faixa corria em toda sua volta, justa, apertada, delimitando sua pele. Nico havia ficado curioso para esse detalhe, mas não era de sua conta, afinal. 

— Deu certo?

— Vou alimentar o reservatório com óleo, então veremos. — respondeu Nico, gesticulando para que se aproximasse. 

Will saltou da pedra, vestindo sua camisa encardida, mantendo-a aberta pelo calor. Inclinou-se para frente, examinando Sra. O’leary. Se ajoelhou na pedra onde ela estava, olhos brilhantes. Nico precisou segurar o riso da cena.

Encheu o reservatório com o óleo em sua mochila, ligando os circuitos do animal. Houve um espasmo, seguido da queima do óleo e o vapor subindo pela grade em suas costas. Nico segurou a respiração enquanto esperavam. 

Will aproximou o rosto ainda mais, ansioso. Sra. O’leary se ergueu com tudo, latindo animada para William que caiu para trás, gargalhando pelo susto.

— Ela parece bem!

Nico riu, abraçando o pequeno autômato com carinho. Sra. O’leary abanou o rabo, feliz pelo carinho e atenção somente para ela. Will se reergueu, acariciando a carcaça dela.

— Agora sim estamos completos. — confessou o rebelde, o sorriso lindo para Nico. 

O inventor encarou seu rosto por longos instantes, instigando William a encará-lo de volta. Foi um momento de fraqueza, um instante de vulnerabilidade preso nos olhos cacofônicos de William, para que tomasse uma decisão precipitada. 

Nico esticou o braço, puxando a nuca de Will para baixo, selando seus lábios em um beijo desejoso e desesperado, nunca colisão dolorosa.

William arfou em seus lábios, pego pela surpresa do movimento, mas retribuiu no mesmo ardor, puxando Nico para perto, a pedra ainda entre eles. Nico envolveu seu pescoço com ambos braços, subindo de joelhos na pedra, ficando mais alto que William alguns poucos centímetros. 

Will sorriu contra sua boca, embalando sua cintura, aproveitando-se de seus lábios da forma como bem quis. Nico permitiu ser domado, num sentimento de pertencer que não sentia há anos. Se afundou em seus braços, as mãos enroscadas nos cachos dourados.

Se separaram, as testas coladas, a respiração ofegante. Nico abriu os olhos, encarando as safiras tempestuosas que sorriam para ele, radiantes como o próprio sol no céu límpido. 

Nico respirou fundo.

— Hey.

Hey. — Will sorriu, depositando um beijo casto em seus lábios. Puxou Nico para longe da pedra, ganhando seus centímetros à mais de volta: — Está com fome? 

— Um pouco. 

— Bom, consegui algumas frutas perto do rio. — respondeu puxando Nico pela mão de volta para a fogueira. Estava sem fogo no momento, mas logo acenderiam novamente. 

Sra. O’leary os seguiu animada, latindo para Scarlet que a observou com interesse genuíno. Will se sentou perto da fogueira, atiçando o fogo mais uma vez enquanto Nico pegava as frutas que Will lhe apontou. Se sentou ao seu lado, entregando para ele um punhado antes de começar a comer. 

Se apoiou no ombro de Will que o envolveu com seu braço. 

Não precisavam de nenhuma conversa sobre aquilo, não era uma necessidade verbalizar qualquer contato que tivessem naquele momento. A sociedade estava extinta, e toda e qualquer prática desnecessária para o que compartilhavam ali extinta com ela. Nenhum familiar para pedir permissão, nenhuma atitude honrosa em seu bom nome.

Eram só dois sobreviventes, nada mais.

Nico se permitiu aproveitar daquele instante sem pensar além do presente, e pelo sorriso largo de William, era recíproco. 

— Nico?

— Hm?

— Posso perguntar uma coisa? — Will inquiriu, o observando de cima. Nico deu de ombros, permitindo: — Quando os Solaries se aproximaram, você se encolheu na floresta, tapando os ouvidos, como se estivesse com dor. O que aconteceu?

Nico parou de comer.

Se afastou de William, encarando seu rosto com certo pesar. 

— Não sei o quanto posso te contar sem que me odeie depois. — respondeu Nico, o tom baixo e cansado, terrivelmente exausto. 

Will se assustou, virando-se completamente pra ele. 

— E por que eu te odiaria?

Nico respirou fundo: — Eu tenho um aparelho auditivo feito das peças sobressalentes dos Solaries. Posso ouvir sua frequência de conversa, ainda que não as entenda.

Will estremeceu: — Essas coisas eram caras na época, extremamente. Era algum aristocrata?

— Sempre fui um inventor. Quando me pediram para criar uma máquina nova, melhor, mais potente, oriunda de um projeto do Oriente, eu criei. — respondeu, em uma resignação absurda: — Adivinhe onde estão agora. 

Will puxou o ar com força, compreendendo o temor de Nico. 

— Você criou os Solaries. 

— Sim, os criei.

— E foi para isso que foram programados? — questionou, mais sério do que antes, num interrogatório grosseiro. 

— Não. A programação inicial era de proteção, mas o sistema deles foi corrompido. Eu só os criei, mas depois de os entregar para o governo, não cuidei das manutenções. — respondeu baixo, esfregando o rosto: — O pagamento foram membros robóticos de peças dos Solaries e um aparelho auditivo.

Nico gesticou para si próprio, numa piada fatal e de mau gosto. Will inspirou fundo, absorvendo o que lhe disse. Nico imaginou que fosse ser expulso como sempre era, quando reconheciam seu nome das notícias antigas.

Will pegou sua mão, acariciando a palma áspera. 

— Por isso não é aceito dos refúgios. As pessoas sabem quem é. 

— A maioria, sim. Outros suspeitam. Sempre sei quando Solaries estão próximos, e isso os assustava. — admitiu, levando os dedos para o aparelho.

— Não estou com raiva. — confessou Will, numa honestidade brutal: — Só surpreso. Você não parece o tipo de pessoa que criaria algo para destruição mundial. 

— Não foi proposital, foi uma tentativa de avanço que falhou. Nos forçando a regredir.  

— Então não tem porque remoermos o passado. — Will beijou seu rosto, o afeto intacto: — Não direi nada no refúgio se não quiser. Não é uma informação que todos receberão com facilidade. 

— Igual a você?

Will sorriu: — Se não tivesse me beijado antes eu poderia ter te odiado, talvez me livrado de você. 

Nico o empurrou pelo ombro, escandalizado. 

Guarde suas opiniões obscenas para você!

Will gargalhou alto, puxando-o para um abraço apertado. 

— Não me culpe, Nico, passamos por coisas demais nesses últimos dias. Acabei me afeiçoando, e confesso que nunca foi a intenção. — disse divertido, depositando beijos em seus cabelos negros. 

Nico negou com a cabeça, mas se permitiu ser atacado por seu afeto em excesso. 

— Mas, por que só seu lado esquerdo que precisa de peças? — Will insistiu nas perguntas. Nico rolou os olhos.

— Trabalhar com peças à vapor não é totalmente seguro. Houve uma explosão anos antes de eu começar o trabalho com os Solaries, e sofri queimaduras em todo o lado esquerdo. — gesticulou para si mesmo, o braço e perna robóticos e o aparelho auditivo. Apontou para o olho: — Também é falso, não enxergo com ele. 

Will virou seu rosto para que visse melhor. 

— Tinha visto a diferença de cores, mas não imaginei que um deles fosse falso. — comentou Will, um tanto surpreso. 

— Bom, tenho partes iguais de bronze e carne. — zombou Nico, dando de ombros: — Ossos do ofício, como dizem. 

Will balançou a cabeça, dando dois soquinhos em sua perna metálica.

— Entendo bem. Às vezes precisamos perder para continuarmos, como um pedaço que deixamos pelo caminho para sabermos como voltar para casa no final. — o sorriso de William era reconfortante, abrigando Nico na conversa com mais facilidade: — Todos temos cicatrizes. — Will se ergueu da grama: — Então, consegue enfrentar uma viagem de duas horas?

Nico arqueou a sobrancelha, esticando a mão para erguer-se. Will o puxou para cima.

— Vamos sair dessa floresta infernal. — resmungou se virando para suas ferramentas. 

Will aprontou Scarlet, recolocando as mochilas na sela. Nico aprontou suas coisas, guardou as frutas por precaução antes de recolocar o paletó, mantendo um pouco de sua compostura intacta. Will abotoou sua camisa, montando em Scarlet. 

Esticou o braço para Nico que subiu, passando os braços por sua cintura. Sra. O’leary parou ao seu lado, latindo divertida. Will balançou a perna, provocando-a. Puxou as rédeas de Scarlet, a direcionou para a estrada e seguiu caminho até a rua de terra batida. 

Nico encostou a testa em seu ombro, observando a paisagem com mais tranquilidade. Estava exausto, física e mentalmente, mas a conversa com Will aliviou uma parte de seus temores antigos, da rejeição sem precedentes. 

Chegando à estrada, Will se inclinou para Sra. O’leary. 

— Nos acompanhe, ok? — falou em tom de ordem, ainda que divertido. Nico teve que rir. O autômato latiu em compreensão, e então Will acertou a lateral de Scarlet com seu calcanhar, de leve, mas que a instigou a trotar, em seguida correndo pela estrada. 

Sra. O’leary era rápida, logo no encalço da égua veloz. Nico se apertou um pouco mais conta Will, imerso na velocidade do animal. Ficaram em silêncio por longos minutos, aproveitando da paisagem de florestas e carruagens abandonadas. Ali, entrando em mais uma cidade, era possível ver o abandono da vida moderna nos restos domados pela natureza tão vasta. 

Na lateral da estrada, havia algumas construções, casas de tijolos e aço, antigas de uma era anterior à do vapor. Mesmo elas foram destruídas pelos Solaries, trazidas à baixo no extermínio mundial. 

Suspirou resignado, virando o rosto para as costas de Will, evitando a vista trágica da cidade. Will segurou seu braço com carinho, o polegar acariciando sua pele. Nico estremeceu com o contato.

— Eu sempre morei aqui, desde pequeno. — Will comentou, um pouco alto para ser ouvido por Nico: — Os avanços do vapor não chegaram totalmente nas cidades marginalizadas, o que fez de nós um grupo ignorado pelo governo mesmo antes de nascermos. 

Nico ouviu em silêncio, deixando Will organizar seus pensamentos. 

— Entrei para a revolução ainda adolescente. Roubávamos dinheiro e comida, algumas vezes conseguíamos maquinário a vapor para implementar na cidade, mas era raro. Boa parte do tempo, éramos obrigados a doar ao invés de receber. — a voz de Will se tornou amarga: — Quando os Solaries apareceram pela primeira vez, o serviços da maioria de nós foi tomado. Engenheiros, policiais, médicos. Fomos descartados, inutilizados. Nenhum de nós poderia sobreviver na sociedade do Vapor com profissões obsoletas. Afinal, quem precisa de pessoas para proteger quando se tem máquinas.

Will parou de falar por um momento, apertando o pulso de Nico com firmeza. Nico retribuiu o gesto com sua mão robótica. Não era a mesma coisa, mas pareceu acalmá-lo. 

— Eu sou médico, me formei novo, alguns anos antes do massacre. Não pude exercer carreira nas cidades, mas trabalhava de graça nas periferias. Me juntei aos rebeldes, fiz viagens aos bairros baixos das cidades-de-bronze para cuidar daqueles que não tinham dinheiro para peças sobressalentes. — explicou com amargura, o assunto doloroso: — Eu estava em Arcania quando o massacre começou. 

Nico retesou-se. Se ele estava em Arcania, foi alvo dos ataques em massa do primeiro dia. Arcania foi dizimada em horas, a maioria dos cidadãos mortos e descartados nos lixões da cidade pelas próprias máquinas, como uma limpeza daquilo que não queriam ver. 

Nico apertou o abraço, encostando os lábios em sua nuca, num ato de conforto. Ele também estava em Arcania durante o ataque; em Alta Arcania. Não foi uma cena boa de se presenciar. Nico só teve tempo de pegar alguns de seus pertences antes de fugir pelos canais. Se William estava exposto e sem conhecimento algum da cidade, com certeza foi pego por um dos autômatos. 

— O que aconteceu? — perguntou receoso, uma parte de sua mente não queria imaginar o que poderia ter acontecido com William, mas outra parte já sabia. Estava olhando para elas, afinal. 

— Fui emboscado na Baixa Arcania, me atacaram por trás. Perdi os sentidos e quando acordei estava sem minhas pernas, vertendo sangue. — respondeu seco, apertando a rédea em sua mão: — Ao invés de me matarem, me deixaram morrer lentamente. Sequer somos dignos de piedade. 

— Fui encontrado por meus colegas, estancaram o sangue e me trouxeram de volta para Patwell. Leo cuidou dos meus ferimentos e implantou duas pernas robóticas, peças dos Solaries modificadas por ele. As mais fortes e rápidas. Palavras dele. — Will desacelerou Scarlet, contendo-se na estrada bloqueada por destroços. Desviou com maestria antes de continuar a falar: — Depois do desastre me tornei o líder dos rebeldes em Patwell, trabalhando junto com Leo para criar dispositivos capazes de destruí-los. Fizemos isso por quatro anos antes de Dartnaw.

— A cidade vulcânica? 

— Sim… — Will respirou fundo, recostando o corpo contra Nico, buscando conforto no contato. Nico o acomodou conta ele, acariciando sua cintura: — Fomos atacados de surpresa, emboscados por Solaries. Eu consegui escapar, mas Leo… não foi… é uma imagem que ainda me aterroriza.

Nico balançou a cabeça, depositando um beijo em seu ombro exposto, compreensivo. 

— Entendo, tudo bem.

— Queremos consertar a árvore e ter uma festividade decente. Pelo menos esse ano, pelo menos algum ano desde que ele se foi. — William parou de falar, continuando o caminho com Scarlet. 

Nico sorveu a conversa, os detalhes cruéis de sua perda, a dor que William sentia. Era sua culpa, mesmo que indiretamente, e seria mais um dos milhares de motivos para Nico odiar o que havia feito.

Mais uma vida das milhares que destruiu. 



— Bem-vindo ao refúgio dos rebeldes. — Will gesticulou para frente, a grade alta e eletrificada. 

Nico assoviou, assombrado. 

— Bem protegida. 

— Segura para todos nós, mas temos vigias nas torres para emergências maiores. — Will apontou para pontos escondidos entre as folhagens das sequóias. 

Ao entrarem no refúgio, Nico foi atingido pela visão de um quartel general. Eram construções velhas, de metal frio e barato, imensos galpões de cores diversas e pichações decorativas. Na porta de cada um deles um conjunto de flores e arbustos, jardins dando viva e cor ao ambiente de guerra. 

Carruagens estacionadas nas laterais mais ao longe, junto das áreas de treinamento. Nico olhou em volta, absorvendo cada detalhe com curiosidade imensa. Will parou Scarlet apontando para o centro do refúgio onde havia uma imensa árvore de seis metros revestida de cobre e bronze. 

Nico desceu de Scarlet antes que Will pudesse ajudá-lo a desmontar, caminhando até a árvore, admirado com os detalhes compostos em cada canto de sua majestosidade. Os galhos de árvores eram feitos de fios de cobre retorcidos, moldados em formas de folhas, como pinheiros jovens e fartos. O tronco era uma estrutura maciça em bronze, com fiações de cobre correndo por dentro, conectada a cada um dos galhos externos. 

No topo dela, bem acima dos seis metros, uma estrela de cobre, imensa, brilhante, envolta em luzes natalinas como todo o resto da árvore. Nico se virou para Will, admirado. 

— Não me surpreende que queiram consertá-la. — respondeu honesto, caminhando de volta para ele. 

— Obrigado. — Will agradeceu, e Nico não tinha certeza exatamente pelo quê, mas aceitou os braços de Will em volta dele.

— Will! Quem é esse? — gritou um rapaz de longe, aproximando-se com uma arma elétrica em suas costas. 

O rapaz tinha os cabelos loiros presos em tranças embutidas. Sua pele negra decorada por tatuagens e cicatrizes, além das roupas simples de veraneio e o braço mecânico. Tinha um sorriso largo no rosto, tão agradável quanto Will na primeira vez que o viu, mas sem a cacofonia em seus olhos tempestuosos. 

Will sorriu de volta. 

— Nosso novo inventor, e meu parceiro. — respondeu puxando Nico pela cintura. O inventor ruborizou, não imaginando ser apresentado desta forma: — Austin, esse é Nico di Angelo. Nico, esse é nosso estrategista, Austin Lake. 

— Prazer em conhecê-lo, Senhor Lake. 

— Pode me chamar de Austin, e o prazer é nosso. Espero que consiga arrumá-la, é nosso maior tesouro. — disse cheio de sorrisos. Nico retribuiu. 

Sra. O’leary se enfiou entre eles, observando Austin com curiosidade. O rapaz se abaixou para ela, esticando a mão robótica. Sra. O’leary cheirou a palma antes de aceitar o carinho — não que Nico tenha visto ela recusar qualquer sinal de afeto.

— Quem é a menininha linda? É você! — Austin falou, afinando a voz. Nico sorriu largo enquanto Will balançava a cabeça. 

— Somos durões, eu juro. — respondeu, o tom leve em sua voz: — Sra. O’leary, se divirta. Austin, vou levá-lo até a oficina. Te vejo no refeitório. 

— Sim senhor!

Will guiou Nico até a oficina de Leo, bem próxima do armazém do refúgio. Pela aparência da oficina, poucas pessoas faziam uso das ferramentas e mesas empoeiradas. Will passou a palma pela superfície da mesa, um suspiro sôfrego deixando seus lábios. Nico se aproximou.

— Deveríamos ter cuidado melhor daqui, mas não é um lugar agradável de voltar. 

— Tudo bem, podemos ajustar a parte que irei usar, e depois deixamos como estava. — sugeriu Nico, o tom de voz suave: — Venha, preciso ver o que irei usar na árvore, depois disso me mostre o refúgio. 

Will sorriu para ele, e começou o tour pela oficina. 

 

⚙ ⚙ ⚙

 

O dia se tornou em um passeio por todo o refúgio. Nico conheceu todos e cada um de seus integrantes, desde membros da linha de frente àqueles que cuidavam do bem-estar dentro das instalações. Austin era o estrategista da linha de frente, que se apresentou melhor ao lhe cozinhar um prato para Nico que não comia há anos. 

Além da linha de frente, auxiliava na cozinha. Ninguém no refúgio tinha somente uma função, e Nico descobriu que Will passava boa parte de seu tempo livre na enfermaria, cuidado dos doentes por horas e horas. 

Conheceu Piper McLean, linha de frente que trabalhava na horta junto de Rachel Dare e Cecil Markowitz. Na área do armazém, Nico foi apresentado à Frank Zhang e os irmãos Stoll.

Já os soldados de resgate, Jason Grace e Perseu Jackson, tinham a única função de proteção e ataque, normalmente encontrados nos pontos de vigia do refúgio. Quando desciam para troca de turnos se refugiavam na cantina com Austin. Ambos tinham rostos machucados com a perda, e Nico soube que eram homens sozinhos em uma batalha pessoal já perdida.

Sentiu uma conexão imediata com eles, sendo prontamente incluído na conversa sobre o mar e os animais que avistavam em suas rondas. Percy lhe contou sobre o caderno onde anotavam quantos animais apareciam próximo à fronteira, o tipo e se eram inofensivos. 

Era uma brincadeira boba que distraia a mente de problemas maiores, e Nico sorriu para eles, absorto na calmaria de suas conversas banais. 

No dia seguinte, Nico se dedicou ao conserto da árvore, e nunca antes ficou tão espantado ao receber ajuda quanto no refúgio. Todos que passavam por ele ofereciam alguma espécie de suporte físico ou emocional. Não carregou nenhum material ou peça pesada demais, lhe foi entregue refrescos em intervalos exatos de três quartos de hora; Jason e Percy se juntavam à ele durante o conserto, contando histórias de antes do massacre e da calmaria de Patwell; Piper lhe fez um chá de ervas calmantes, adocicado em seu paladar, e Will se manteve ao seu lado o tempo todo.

Dava ordens de onde estava, cuidava de feridos ao ar livre, tirando risadas e piadas de seus pacientes. Vez ou outra fazia Nico parar um pouco, freando sua necessidade compulsiva em terminar seus projetos, alegando que “se não fosse por ele não teria comido nada enquanto consertava Sra. O'leary”. Sem poder se defender, Nico fez uma greve de silêncio por quase uma hora, resultando em um Will depressivo e magoado. 

Na tarde do dia vinte e quatro, Nico terminou os reparos, e o refúgio eclodiu em festas ao começarem a preparar a ceia.

Nico foi arrastado até a cabana de Will onde foi intimado à beijos e toques por toda a tarde, distraindo-o da festa que começava a ser erguida em mesas e travessas com comida. 

Nico se sentou na cama, a calça desabotoada, a camisa esquecida em um canto no quarto. Will se ergueu nos cotovelos, contemplativo. 

— Pode pegar uma de minhas roupas emprestadas. — apontou para o armário, e Nico seguiu até ele. 

Tinha diversos tipos de roupa de gala, desde fraques à coletes extravagantes em suas cores chamativas. Sorriu satisfeito, retirando colete dourado similar ao que foi destruído em sua aventura no rio. 

— Posso te vestir também? — sugeriu Nico, um desejo imenso em colocá-lo em roupas sociais. Will corou ligeiramente.

— Claro, mas as calças não servem em mim. As pernas são longas demais. — alertou Will ao sentar-se na cama. Nico sorriu.

— Não faz mal. Venha, deixe-me servi-lo. 




Ai céus, você conseguiu colocar roupa social no Will?! — Piper exclamou horrorizada, um sorriso imenso em seu rosto radiante. Nico sorriu orgulhoso. 

— Não faz mal um pouco de compostura em épocas especiais. — respondeu Nico puxando Will pelo braço. 

O rebelde vestia uma camisa branca com um colete azul marinho, destacando o loiro de seus cabelos e suas sardas fortes, favorecendo seu corpo esguio e alto. Vestiu as calças curtas em tom de azul claro, as quais Nico dobrou até o meio da panturrilha, dando um ar mais despojado ao conjunto. Will parecia envergonhado, mas de uma forma adorável. 

Nico precisou beijá-lo. 

— Vamos começar a festa! Ligaremos a árvore na virada. — avisou Austin enquanto todos começaram a se servir.

Música começou a tocar dos gramofones espalhados pela área aberta. Will puxou Nico para uma dança, rodopiando-o em uma série de passos incondizentes com o ritmo da música que tocava. Foi pego pela cintura, beijos distribuídos por seu pescoço, a camisa se desfazendo aos poucos. 

Sra. O’leary corria em volta de suas perdas, se divertindo tanto quanto eles ou qualquer outro na festa. Piper tirou Nico para dançar, gozando-se do álcool já forte em seu corpo. Nico a girou algumas vezes antes de devolvê-la para Rachel. 

A virada se aproximou e Nico puxou Will par perto da árvore. 

— Contagem regressiva! — gritou Percy, a garrafa de álcool em uma mão, Jason na outra.

Todos começaram a contar em voz alta, gritando do dez para o nove, depois oito. Se aproximando do um, Will deu um pequeno empurrão em sua lombar o incentivando à ligá-la. 

Na contagem de zero ele ligou. A árvore se ascendeu majestosa. As cores do verde ao rosa, do amarelo ao azul. O tronco ardeu em laranja e tudo ganhou vida. Nico alargou um sorriso, maravilhado com a delicadeza de sua exibição. Will entrelaçou os dedos no seu, emocionado com a visão. Nico se virou para ele, o sorriso ainda no rosto, e então sua mente escureceu. 

O silvo agudo dos Solaries ecoou em seus ouvidos, derrubando-o de joelhos com a altura absurda, o som intenso. Sua cabeça iria explodir ali mesmo, envolta nos sibilos raivosos de Solaries em cólera. 

Will retirou seu aparelho bruscamente, segurando-o em seus braços enquanto sua mente voltava a funcionar.

Seu nome foi chamado por diversas vozes dezenas de vezes, mas aos poucos o silêncio começou a acomodá-lo. Will acariciou seus cabelos e Nico finalmente reabriu os olhos. Sentado no chão no colo de Will com Sra. O’leary aos seus pés, Nico vislumbrou a árvore pulsante no chão, ecoando o chamado dos Solaries. 

Seus músculos retesaram, afastando-se de William. 

 —Você mentiu pra mim!

— Nico…

— NÃO! Você… Isso está atraindo eles para cá! — gritou enraivecido, apontando para a árvore: — Eu preciso desligá-la. 

— Não! — Will o segurou pelo pulso, suplicante: — É o único jeito de nos livrarmos dos Solaries, Nico! O dispositivo na árvore atrairá o Solaries para cá, mas assim que se aproximarem se autodestruirá. É uma bomba nuclear prestes a ser detonada. — explicou Will, o rosto retorcido em angústia: — Eu gostaria de ter lhe dito, mas nunca teria concordado em terminar o trabalho de Leo, o projeto que ele desenvolveu por anos. Quando explodir, a árvore enviará frequências que desligarão os Solaries em cadeia. Em poucos meses teremos livrado o mundo deles. Nico, esse é o fim. 

Nico resfolegou horrorizado. Olhou em volta, para os rostos resignados e dispostos àquele sacrifício em massa. Sorriam largo, lágrimas escorriam de seus rostos radiantes. Era o fim? Realmente o fim?

— Nico. — Will o chamou outra vez. Nico o encarou: — Eu prometi que o ensinaria a viver outra vez, e foi o que fiz. Sei que não lhe contei sobre a bomba, mas eu prometi cuidar de você, e estou fazendo. Fique comigo até o fim, vamos viver por mais algumas horas uma última vez. 

Nico o encarou sem saber como responder aquilo. 

Era um ato suicida, mas que poderia dar certo, e mesmo que Nico fugisse do refúgio, uma bomba daquela magnitude o acertaria antes mesmo de chegar na divisa de Patwell. Respirou fundo, o peito pesado em angústia. 

— Essa não foi a promessa que me fez. — confessou em um fio de voz antes de se aproximar: — Mas eu quem decidi confiar em você, estava cansado de estar sozinho… Ficará me devendo, William Solace.

Will sorriu aliviado: — Pagarei o preço que for. 

Nico se aproximou dele, beijando-o com força sob as luzes da árvore kamicaze. Prendeu Will em seus braços, sorvendo de seus lábios o máximo que pode, esquecendo-se do resto da festa que continuava animada, ou do som de passos e vapores rasgando os céus dos dirigíveis se aproximando.

Deixou que William o tomasse num último sopro de vida, da vida a qual abdicou por anos, disposto a pagar o preço por seu pecado imperdoável. Abraçou o destino nefasto que William o condenou, aceitando o calor em seu corpo quando o refúgio eclodiu em uma explosão colossal; vista e assistida há dezenas e centenas de quilômetros, o marco que pontual a história do mundo em áureo. 

Datando o fim dos Solaries. 

O fim de uma Era fadada ao fracasso.

 

 


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Notas finais do capítulo

Eae? Como foi?

É todos morreram gente rueheurhuehru foi tudo uma armação do Will, mas que o Nico no final aceitou. A história correu rápida, mas como eu disse, foi uma história teste, esse enredo está numa original que estou terminando, nela a história é bem mais detalhada e longa.

O teste não teve o melhor dos retornos, pelo visto as pessoas não curtem muito este universo Steampunk, acho que não irei abordá-lo novamente como uma fanfic, então talvez seja meu primeiro e último solangelo num universo distópico. Mas, de toda forma, agradeço a vocês que leram ♥


Até uma próxima!



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