Ad Redemptio escrita por Glasya


Capítulo 2
Retorno


Notas iniciais do capítulo

Espero que não tenha infodump. Bem, tentei.



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Claude Frollo ainda tentava entender o que havia acontecido. De todas as coisas que a Igreja lhe ensinou, o estranho funcionamento da vida após a morte não fora uma delas. Sempre lhe foi ensinado que o reino dos céus o estaria esperando quando desse seu último suspiro, conforme previa o evangelho. Mas tudo o que teve foi a solidão e frieza do purgatório. Um lugar que estava para além do tempo, onde areias escuras e mar cinzento se fundiam e se estendiam sob seus pés a perder de vista. Ele rezou por dias intermináveis, até que finalmente Deus teve piedade de sua alma e enviou um de seus anjos em seu encontro. Sua luz era tão intensa que Frollo mal pôde olhar para a criatura, temendo que seu brilho o cegasse, mas sua fragrância primaveril invadiu suas narinas e encheu seus pulmões com o sopro divino da vida.

 

— Não tema, pois venho em nome do Senhor. Há apenas uma forma de redimir os seus pecados, mortal. — O anjo lhe disse, enquanto Frollo sentia sua pele queimar com a proximidade do ser luminoso. — A Pedra Filosofal. Recupere-a da bruxa-

 

— Pedra Filosofal? Tal qual os alquimistas usavam em suas heresias!?

 

O ardor se intensificou. O que antes era como uma tarde sob Sol a pino agora era como se cada centímetro de seu corpo estivesse mergulhado em água escaldante. Mas afinal no que ele estava pensando ao interromper um anjo do senhor!? Frollo se julgou sortudo por não ser imediatamente jogado ao inferno por tal apostasia.

 

— Aquela que ousaram tentar replicar, mas nunca conseguiram. A original, feita com gemas retiradas do próprio Santo Graal. Uma bruxa a roubou, e cabe a você, um legítimo servo do senhor, recuperá-la.

 

O juiz tentou falar novamente, mas ao invés de palavras, o que saiu de seus lábios foram grunhidos de dor e murmúrios inintelegíveis.

 

— A bruxa está em Paris, e é para lá que será enviado. Vá, e conquiste sua redenção.

 

O anjo esvaneceu-se assim como seu calor. Frollo acordou em seus aposentos no Palácio da Justiça, seus lençóis e fronhas ensopados de suor. Sua respiração estava pesada e seu coração acelerado como nunca esteve, mas apesar dos tremores e do suor frio, não haviam queimaduras.

 

Levantou da cama, perguntando a si mesmo se havia sonhado com tudo aquilo. Abriu as janelas e contemplou a cidade abaixo; Paris o recebia com seu gélido vento do fim do inverno, que já havia sido rigoroso, mas que naquela hora era muito bem vindo. Ao longe, a suntuosa Notre Dame se erguia com imponência sobre todas as outras construções. 

 

Ali, entre o medo de estar perdendo sua sanidade e a dúvida hesitante sobre ter tudo sido tudo apenas um sonho, assistiu o nascer do Sol em oração. Ou ao menos tentou. Deixou escapar um suspiro de horror ao abrir os olhos e notar que a escuridão persistia, mesmo já tendo passado a muito a hora da alvorada. 

 

— Meu Senhor, se sou mesmo seu escolhido, se as visões que perturbaram o meu sono foram verdadeiras, mande-me um sin-

 

Sequer teve tempo de pedir-lhe um sinal. Sem avisos, o vento soprou furiosamente janela adentro, apagando todas as velas e derrubando livros das prateleiras. O ministro lutou contra sua janela, que se recusava a fechar devido a força dos ventos. Por vezes achou que ele mesmo seria derrubado, até que finalmente a fúria invisível que chicoteava seu rosto e penetrava suas roupas cessou.

 

Aliviado, trancou sua janela e pôs-se a recolher tudo o que o vento havia tirado do lugar; mapas, livros de anatomia, livros de direito, e… O livro sagrado. Este último caiu aberto com as páginas viradas para o chão. Ajoelhou-se para pegá-lo, virando-o em suas mãos com cuidado, e foi então que teve seu sinal:

 

"E porei dentro de vós o meu Espírito, e farei com que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis."

 

Era o versículo iluminado por um único feixe de luz solar que agora finalmente escapava por entre as frestas da janela. Ezequiel, 36:27. Os olhos do ministro se arregalaram. Ainda de joelhos fechou os olhos, envergonhado por ter duvidado da palavra do Senhor. Ergueu os olhos aos céus e agradeceu. Clamou por um sinal, e seu bom Deus agora havia lhe dado. 

 

Se levantou sentindo-se um homem renovado. Determinado a jamais duvidar novamente, abriu seu baú e tirou de lá seus trajes eclesiásticos. Vestiu-se e armou-se de seu selo, suas chaves, seu crucifixo e seus anéis. Por último, colocou seu chapéu e deixou seus aposentos. Havia uma bruxa à solta, e ele precisava encontrá-la.

 

***

 

Encontrar a bruxa logo se provou uma tarefa muito mais árdua do que ele pensou que seria. E tudo se tornava ainda mais difícil agora que Carlos VIII e sua irmã Ana haviam herdado o trono do pai. Pelo que pôde entender, dois anos se passaram desde que sua alma foi enviada ao purgatório, e bastaram esses dois míseros anos para que as leis de Luís XI contra ciganos e imigrantes ilegais fosse revogada por seus filhos de coração mole. Prender e revistar suspeitos de bruxaria seria muito mais difícil agora, sem a aprovação da coroa.

 

O jovem rei, de apenas treze anos, já recebia a alcunha de "O Afável" devido ao seu comportamento dócil e devoção à irmã mais velha. Pensou em enviar cartas à corte, mas as chances de recusarem suas petições ou simplesmente demorarem demais para considerá-las eram muito altas. Mesmo ainda sendo o ministro da justiça, Claude Frollo não podia perder tempo brincando de pique-esconde com nobres, tentando conseguir aval para suas ações e  arriscando perder sua chance de redenção. Teria que fazer à sua própria maneira, com ou sem a permissão do rei.

 

Na superfície, tudo parecia idêntico ao que era antes de seu trágico fim, mas não se passou muito tempo até que Frollo percebesse que seu mundo estava de cabeça para baixo; apesar de ainda manter seu cargo, as pessoas sequer pareciam ter notado que ele havia sumido por quase dois anos inteiros. Tratavam sua ausência como uma "peregrinação" e não o questionavam quanto a isso. Quasímodo havia ido embora com uma moça chamada Madeleine, e nenhum dos padres sabia dizer para onde. Até mesmo as gárgulas com quem o garoto inutilmente falava haviam sumido. Phoebus não era mais capitão da guarda, havia deixado seu emprego para viver uma vida errática com Esmeralda em algum outro lugar. A esses dois Frollo desejava o fogo do inferno. 

 

O juiz sentou em seu escritório e massageou as têmporas. Primeiramente, precisava voltar a estudar sobre a pedra filosofal; suas propriedades, seus usos e peculiaridades… Também precisava criar uma estratégia de busca, algo que facilitasse a localização da bruxa. Havia tanto a se fazer, e tão pouco tempo que Frollo às vezes desejava ser possível se dividir em dois… Mas como isso não era possível, a ele restava dividir seu tempo. Durante o dia se focaria na caça à bruxa e durante a noite nos seus estudos; dessa forma ao menos livraria-se do pecado da preguiça.

 

Estudar alquimia era um hobby que manteve em segredo durantes muitos anos, até que se encontrou tão soterrado em burocracia que não teve mais tempo algum para dedicar à nada que não fosse seu trabalho como ministro da justiça. Nunca havia ouvido falar sobre as origens sagradas da pedra filosofal, e os relatos da criação de algo similar que fosse minimamente funcional sempre acabavam se provando nada além de boatos. Mas não duvidaria mais da palavra do Senhor. Se Ele o escolheu, faria sua vontade.

 

Poderia inclusive aproveitar e escrever um artigo sobre o purgatório, talvez até mesmo o Papa reconhecesse sua genialidade! Ou talvez os cardeais o condenassem por heresia. Por viés de dúvidas, escreveria sob um pseudônimo. Caso tivesse aprovação do alto clero, poderia revelar-se sem preocupação. Naquela noite, adentrou a madrugada cercado de livros, pergaminhos, pena e tinta. Pausava seus estudos alquímicos apenas para escrever seu artigo.

 

— ...no purgatório, não se tem noção de tempo… — Murmurou para si mesmo as palavras conforme as escrevia. — Não há dor, não há prazer… Apenas os pesadelos vívidos de seus pecados a assolar sua-

 

Sua atenção foi tomada das tarefas por um ruído abafado e um suave farfalhar que se alastrava pelo corredor. Por um momento pensou se tratar da troca da guarda, mas os passos eram leves demais. Pelo pequeno vão sob a porta, viu uma sombra se mover rápida e silenciosamente. Levantou-se e abriu a porta com cautela; ao fundo do corredor, uma figura encapuzada entrava em seus aposentos. O juiz imediatamente entrou em alerta; havia um intruso no Palácio da Justiça, e não havia tempo de convocar os guardas.

 

Em um impulso, entrou em seu escritório, retirou a espada de seu descanso na parede e cruzou o corredor até a antesala de seus aposentos. Sem a luz das lareiras, a sala era fria e escura como um túmulo; seus passos ecoaram contra as paredes do salão vazio enquanto seus olhos perscrutavam a escuridão em busca do invasor. A única outra porta no local levava às suas câmaras pessoais. 

 

— Como se atreve!? — O que era alerta e cautela agora se tornava fúria. Um ladrão qualquer havia passado pela corja de inúteis que chamava de guarda, e agora estava em seu quarto. Mas se dependesse de Frollo, de lá ele não sairia. Ao menos não com vida.

 

Abriu a porta com um pontapé, erguendo a espada, mas foi recebido pelo vento frio que soprava novamente pela sua janela. O juiz cruzou seu quarto a passos largos e debruçou-se sobre a janela, apenas para ter uma breve visão de um capuz esvoaçante antes de ser engolido pela escuridão total. Tropeçou para dentro de seu quarto, lutando contra o pedaço de tecido que o vento havia arremessado contra o seu rosto.

 

— Mas que diabos!? Maldito seja! — Praguejou, quando finalmente conseguiu se livrar da capa. Se curvou sobre a janela novamente, mas tudo o que viu foi os beirais de pedra do palácio da justiça, sem sinal de uma única alma viva.

 

Os lábios de Frollo se comprimiram e  contorceram em fúria enquanto ele fechava com força os dedos ossudos em volta do tecido do invasor. O atirou ao chão, e logo em seguida se pôs a vasculhar seu quarto a fim de descobrir o que havia sido roubado; após certo tempo contabilizando cada livro, moeda, roupa e jóia, ele finalmente desistiu. Aparentemente, tudo estava em seu devido lugar. 

 

Pater Noster, qui es in caelis, sanctificetur nomen tuum. — Sua oração era o único som audível naquela ala do palácio a essa hora da madrugada.  

 

Trancou a janela novamente e caminhou a passos firmes até os aposentos do capitão da guarda. Após alguns minutos de batidas insistentes, um homem sonolento de cabelos escuros e bigode abundante abriu a porta.

 

— Ministro Frollo?

 

— Capitão… Seja lá quem você é! — Frollo encarou o homem com desprezo — Coloque todos os homens em alerta, nós temos um intruso. Vasculhe cada canto do palácio e de seus arredores também! Até mesmo o telhado!

 

— Por quem devemos procurar, senhor?

 

Frollo respirou fundo. Estava mais do que furioso. Se havia algo que odiava acima de qualquer coisa, era uma pergunta idiota.

 

— Por qualquer um que não deveria estar aqui, imbecil! — Cuspiu a frase entre os dentes.

 

O capitão acenou afirmativamente com a cabeça e se curvou respeitosamente ao ministro antes de tomar seu rumo e deixar Frollo sozinho com seus pensamentos. "Quem esteve em meu quarto? O que queria? Se não levou nada, provavelmente se tratava de um assassino…" — Um sorriso sinistro surgiu em seu rosto. — "Você vai ser encontrado, e eu vou adorar interrogá-lo pessoalmente!"


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Notas finais do capítulo

Naaaaaa verdade, o reinado de Carlos VIII não foi tão "afável" assim, mas se comparado a seu antecessor Luís XI (rei da França durante o período em que se passa o filme O Corcunda de Notre Dame), ele era um amor. O que não é um bom comparativo, já que no geral os reis da França costumavam ser bem cretinos... Robespierre guilhotinou foi pouco.



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