Ad Redemptio escrita por Glasya


Capítulo 16
Família


Notas iniciais do capítulo

Saindo de um bloqueio criativo, resolvi colocar em prática uns conselhos que recebi hehe
Vai ter mais de Hades e seus capangas daqui pra frente.

E não sei o que acontece, todo capítulo tem saído com 2k+ de palavras :o



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Frollo acordou bem mais tarde que o de costume naquele dia. As noites em claro e o constante… Esforço físico… Finalmente cobravam sua parcela, e mesmo tendo dormido demais ainda se sentia cansado. Certamente suas olheiras haviam piorado a essa altura e suas costas doíam, mas ao menos teria conforto nos braços de Esther… 

 

Seu coração deu um pulo ao notar que ela não estava ao seu lado na cama. Levantou-se de supetão, se perguntando se havia dormido tanto assim. Ela não era de acordar cedo, afinal. Atravessou a sala da lareira a passos largos, exasperado. “Ciganos não vivem entre quatro paredes…” — O medo de ela ter simplesmente o abandonado começava a consumí-lo. — “Por que? Por que ela faria isso? Ela poderia ter tudo! Jóias, ouro, peles! Teria a vida de uma rainha, banhada em luxo e riquezas como jamais imaginou!”

Frollo percorreu os corredores de seu palácio abrindo porta atrás de porta, seu desespero aumentando a cada cômodo vazio com o qual se deparava. A pressão em seu peito era tão forte que o fazia querer gritar.

 

— ONDE ELA ESTÁ!? — Finalmente gritou, para si, para Deus, para o palácio, para os guardas.

 

— Ela desceu para a sala de jantar, senhor. — Respondeu um dos guardas, sem se mover de seu posto.

 

— E por que não me disse ANTES!?

 

— O senhor não perguntou, senhor.

 

— Me viu procurar como um louco todo esse tempo! — Levou uma das mãos bruscamente à testa, quase como um tapa. — Vocês são pagos para fazer isso comigo, não são?

 

— Como assim, senhor?

 

— Esqueça! Santo Cristo, é como falar com uma porta. Apesar de estar inclinado a acreditar que a porta me daria menos respostas estúpidas. — Massageou a têmpora e cerrou os punhos firmemente, marchando para a sala de jantar.

 

As risadas de Gothel eram audíveis do outro lado da porta, isso era um alívio e ao mesmo tempo uma preocupação; do que ela estava rindo? Estaria confraternizando com os servos pelas suas costas? Ou pior, o traindo com um de seus servos? A simples possibilidade o deixava irado; abriu a porta em um movimento brusco, batendo-a firmemente contra a parede. Lá estava ela, sentada de lado em uma das cadeiras com uma taça de vinho em mãos, jogando a cabeça para trás enquanto ria sonoramente. À sua frente estava um rapaz magro, alto, de cabelos castanhos e olhos azuis; um rapaz que Frollo conhecia bem melhor do que gostaria: seu petulante irmão mais novo, Jehan. Ele se sentava sobre a mesa sem sombra de decoro algum, provavelmente contando alguma história idiota sobre suas infâncias.

 

— Cloudy! — Ele abriu os braços, pulando da mesa e virando rapidamente a cabeça para Gothel. — Significa “nublado” em inglês¹, eu o chamo assim por causa desse jeitão ranzinza dele.

 

— Quantas vezes preciso dizer para que não me chame assim?

 

— Claude, que bom que já acordou! Não havia me dito que tinha um irmão… — Esther se pronunciou, com um sorriso de divertimento nos lábios. Certamente estiveram fazendo troça dele esse tempo todo. Isso se Jehan não estivesse flertando com ela; conhecia seu irmão o suficiente para saber que além de beberrão ele era um devasso. 

 

— Eu… Eu devo ter esquecido de mencionar.

 

— Sério, mano? Como você se esquece de mim assim?

 

“Eu gostaria de nunca me lembrar.”

 

— Você sumiu por dois anos, sem nem me avisar nada… — Jehan continuou a choramingar. — E agora volta de repente e sequer pensou em mim! Eu passei dificuldades aqui, sabia?

 

— Não consigo imaginar que tipo de "dificuldades" seriam essas. Não conseguia decidir em que bar imundo gastar o meu dinheiro?

 

— O que? Não, que isso… Mano, você sabe que o dinheiro é pra faculdade...

 

— Sei muito bem pra onde vai esse dinheiro… 

 

— Você quer mesmo discutir isso agora, Cloudy? Na frente da sua adorável visita? 

 

— Claude, por que não se senta? Vamos, coma um pouco… — Gothel estendeu a mão em sua direção, mas ele controlou seu impulso de segurá-la. — Vocês podem discutir o que quer que precisem depois do café.

 

— "Nós, pois, jejuamos e clamamos ao nosso Deus, e Ele se fez em nossas orações."² — Rebateu entre os dentes, voltando a encarar Jehan. A simples ideia de sentar-se junto deles à mesa o embrulhava o estômago.

 

— Sempre tem um versículo pra tudo, não é, maninho? — O jovem pegou um pedaço de pão, enfiou-o na boca quase por inteiro e seguiu falando entre as mastigadas. — Bem, eu vou indo. Tenho que tomar meu banho de primavera³ e mudar essas roupas… Cloudy, me empresta algumas?

 

Ele não precisou responder. Um simples olhar já disse a Jehan tudo o que Claude pensava sobre emprestar coisas ao irmão, obrigando o jovem a sair da sala com suas mãos erguidas apologeticamente.

 

— Tem certeza que não vai comer? — Perguntou Esther, partindo delicadamente um pedaço de torta que estava em seu prato com um garfo. 

 

— Estou em jejum. — Seu tom saiu bem mais ríspido do que pretendia, então tentou fazer com que as próximas frases soassem mais brandas. — Ainda é a quaresma, afinal.

 

— Claude, se você jejuar mais vai acabar sumindo. — Ela esticou o braço, apontando o pedaço de torta em sua direção. 

 

— Você e Jehan pareciam bem à vontade. — Afastou o garfo de Esther do rosto com uma das mãos, tentando soar o mais indiferente o possível.

 

— Ele é um rapaz muito divertido.

 

— Imagino.

 

— Ora, vamos, coma um docinho pra desfazer essa careta azeda… — Ela sorriu jocosamente e voltou a aproximar a torta de seu rosto. 

 

Seu corpo estava tão habituado à diligência e severidade do jejum que sequer sentia fome. A única coisa que sentia era a raiva latente que queimava seu interior desde que viu aqueles dois juntos, rindo e conversando tão próximos como se fossem velhos amigos, ou talvez amantes. O simples pensamento fez seu estômago e esôfago queimarem. Afastou novamente o garfo de Esther.

 

— Não estou com fome. Sobre o que falavam? E por que pararam assim que cheguei?

 

— Hum? — Ela lhe lançou um olhar confuso.

 

—  Você e Jehan. — Esclareceu, entre os dentes.

 

— Ah, sim. Nada de mais, na verdade. Ele me falava sobre a faculdade, as namoradas, as festas…

 

— Como o depravado que é.

 

— Como o jovem que é. Não aja como se nunca tivesse sido assim.

 

— Eu nunca fui assim!

 

— Sério? — Ela soltou uma risada incrédula. — O que fazia pra se divertir quando estava na faculdade?

 

— Eu estudava. E no tempo livre, estudava ainda mais. Eu pensava no futuro, diferente desse cabeça-de-vento. Me formei como o primeiro da classe e me dediquei por vinte anos ao jurídico. Acha que fui nomeado ministro por minhas "amizades" na corte? Não! Foi por excelência em meu ofício!

 

Sempre teve o desprezo de seus iguais entre os círculos nobres, o que só aumentou sua satisfação ao ver o olhar surpreso em seus rostos quando a coroa o nomeou um de seus ministros. Uma verdadeira prova de que os humilhados são de fato exaltados quando a hora é certa.

 

— Que dedicado… — Ela ergueu uma mão para acariciar seu corpo mas ele se afastou de seu toque, andando para o outro lado da cadeira onde Esther se sentava.

 

— Mas talvez você prefira os arruaceiros. — Não conseguiu conter o amargor em sua voz.

 

— Eu certamente não prefiro os inseguros.

 

As palavras o atingiram como uma faca. Então era isso? Ela o trocaria por alguém mais extrovertido e seguro de si? Ele era apenas uma distração até que aparecesse alguém melhor, mais divertido, mais interessante?

 

— BRUXA INGRATA! — A raiva queimava dentro de si, e agora subia por sua garganta e saía em suas palavras. — DEPOIS DE TUDO, É ASSIM QUE ME AGRADECE?

 

— “Depois de tudo” o que, exatamente?

 

— Você agora é uma cidadã francesa. Eu mesmo assinei seus documentos! Eu estava disposto a me casar com você, tudo o que é meu passaria a ser seu! Você teria uma vida digna da realeza! Mas preferiu jogar tudo fora em prol de um rapazola devasso e mimado! — Bateu os punhos contra a mesa, fazendo tremer toda a prataria. — Mas o que eu deveria esperar de uma cigana?

 

***

 

Gothel revirou os olhos. Não tinha paciência para esse tipo de merda. Poucas coisas cansam tanto sua beleza quanto a insegurança alheia, mas talvez devesse acrescentar homens dramáticos em sua lista. Terminou pacientemente seu pedaço de torta enquanto Claude fazia um escândalo na sala de jantar discorrendo sobre como havia sido bom para ela, com direito à batidas na mesa e tudo. Observava calmamente sua expressão irada, as veias que lhe saltavam da testa e as lágrimas que se formavam nos cantos de seus olhos. Então, enquanto terminava seu suco de maçã, ouviu-o discursar sobre ciganos e como aparentemente todos eram aproveitadores e pouco confiáveis. Ele ainda se perguntou algumas vezes como Deus permitiu que se apaixonasse por uma cigana, e ela se perguntou internamente o que havia visto nele.

 

— Já acabou? — Perguntou ao juiz assim que ele se calou, colocando o copo vazio sobre a mesa.

 

— É isso? É só o que tem a me dizer!?

 

— Na verdade, tenho algumas coisas a te dizer. — Se levantou lentamente, com olhos fixos nos dele, e viu-o se encolher levemente conforme se aproximava. — Em primeiro lugar… VOCÊ. NÃO. GRITA. COMIGO.

 

A última palavra foi acompanhada de uma forte batida na mesa, fazendo com que alguns copos virassem e fossem ao chão. 

 

— Em segundo lugar… — Continuou, deslizando as mãos pelos braços de Claude até seus ombros e o empurrou para baixo, colocando-o sentado em uma cadeira. — Você não me acusa de nada sem provas. E em terceiro lugar…

 

Deu a volta na cadeira e sentou-se no colo de Frollo. Ainda mantendo seu semblante impassível e tom de voz calmo, aproximou os lábios de um dos ouvidos dele.

 

— Você não é meu dono. Entenda que estou aqui por minha própria vontade, e também posso desaparecer com a mesma facilidade. — Levantou-se, pegando uma uva da mesa. — Eu salvei sua vida, você me deu documentos, o sexo é bom… Podemos manter essa relação de apoio mútuo, ou você pode continuar seu pequeno rompante de ciúmes sozinho.

 

Caminhou em direção à porta, parando a meio caminho da saída para encarar Claude por cima dos ombros.

 

— E só pra constar, eu não estava flertando com seu irmão.

 

Saiu, ainda decidindo para onde iria. Deveria desaparecer por uns dias para dar-lhe uma lição? Não, seria arriscado demais enquanto não tivesse confirmada a localização da pedra. Muitas coisas se passavam em sua cabeça ao mesmo tempo, e se julgava ridícula pelas falas inflamadas de Claude fazerem parte delas. 

 

“Como assim, casamento? Ele é maluco?” — A pergunta interna era retórica, mas fazia uma ideia de qual seria a resposta. Ele não poderia estar falando sério quanto a isso, poderia? E toda aquela história sobre documentação, por que ele faria algo assim? Esse era o objetivo? Ele já havia sujado a própria imagem o suficiente entrando de braços dados com ela na Igreja no domingo, por que jogar seu nome na lama ainda mais se casando com uma plebeia cigana? — “Que idiotice sem tamanho! Que homem sem a mínima noção de estratégia política! Ou talvez… Isso faça parte de sua estratégia política? Cair nas graças do povo se passando por um nobre diferente dos demais, e assim evitando perder a cabeça quando o antigo regime cair³… Não, isso nem faz sentido. Ainda faltam trezentos anos para a Revolução Francesa.”

Enquanto sua mente divagava pelas possíveis motivações do juiz Frollo, seus pés acabaram por levá-la aos estábulos. Não seria sua primeira escolha consciente de local pacífico, mas pensou que teria menos dor de cabeça na companhia dos cavalos. Agora mais do que nunca precisava sumir; casamentos só eram felizes para as princesas dos contos de fadas, e se estivesse em um conto de fadas ela definitivamente seria a bruxa má. Principalmente se o casamento em questão fosse com alguém como Claude Frollo; era certo que ele era inteligente, eloquente, culto, e até bom amante apesar da inexperiência… Mas tinha a maturidade emocional de um adolescente, deixando-se levar muito facilmente por suas inseguranças. Seus rompantes de raiva e o hábito perturbador de falar e gritar sozinho também advogam contra ele, apesar de não necessariamente serem determinantes; afinal, seria hipócrita de sua parte se dissesse que nunca havia feito tais coisas. 

 

Loucuras à parte, ciúmes era algo com o qual Esther nunca soube lidar. Mais de um cônjuge já a havia acusado de coisas que não havia feito sem nunca lhe dar ouvidos ou mesmo uma chance de se explicar. Não reviveria essa situação humilhante. Recostou-se à uma pilastra de madeira no interior dos estábulos e pensou em seus próximos movimentos. Iria embora assim que tivesse o que precisava, mesmo que isso significasse ter que partir seu próprio coração; antes isso que tê-lo partido por um terceiro.

 

Ao seu lado, o enorme cavalo negro ao qual Frollo chamava “Bola de Neve” lhe chamou a atenção; ele estava inquieto, o relinchando e se debatendo, batendo firmemente os cascos contra o chão em desaprovação. Havia uma voz estridente a tentar acalmar o animal, mas ao olhar ao seu redor Gothel não viu um único cavalariço. Isso já era estranho o suficiente, a julgar que estava no lar de um dos lordes chanceleres da França, e aquela voz falha e arranhada não parecia sequer uma voz humana.

 

Decidiu checar. Pegou o punhal de sua bota e se aproximou do estábulo de Bola de Neve, mas antes que pudesse abrir o portão, o mesmo se abriu violentamente contra seu corpo, jogando-a no chão. Precisou rolar rapidamente para não ser pisoteada pelo cavalo, que agora escapava do curral e corria livre pelo pátio do palácio.

 

Pôs-se de pé e bateu os restos de feno das roupas, quando um vulto em sua visão periférica chamou sua atenção; dentro do curral de Bola de Neve havia um pequeno ser de pele azulada, cauda pontuda e chifres caprinos.

 

— Pânico? — Franziu o cenho. Reconheceria aquele verme em qualquer lugar. Um dos irritantes servos de Hades, que gostava de lhe atormentar com piadas sobre velhice.

 

Os olhos da criatura se arregalaram ao vê-la, e desatou a correr a uma velocidade incrível para pernas tão curtas. Gothel saiu em seu encalço, tentando diminuir ao máximo a distância entre ambos; conhecia as habilidades de metamorfose do pequeno desgraçado, então qualquer deslize poderia perdê-lo de vista. 

 

O infeliz era rápido, e seu tamanho o dava enorme vantagem ao escalar as abóbodas do palácio. Vendo que não conseguiria alcançá-lo a tempo arremessou seu punhal, mas tudo o que conseguiu foi cravá-lo em uma fenda na pedra. Praguejou internamente, tanto pela fuga de seu alvo quanto pela perda temporária de seu punhal; ainda era dia e as ruas de Paris estavam fervilhando com transeuntes e guardas, teria que esperar a madrugada se quisesse recuperá-lo.

 

Gothel já imaginava que uma hora ou outra Hades enviaria seus servos para arrastá-la de volta ao submundo, mas não esperava que essa hora chegasse tão cedo. E definitivamente não estava disposta a voltar. Até onde se lembrava, o deus do submundo nunca enviava apenas um deles, o que significava que Agonia também estava ali em algum lugar. Este último não era tão ágil quanto Pânico, o que o fazia um alvo relativamente mais fácil. Precisava encontrá-lo e interrogá-lo… E mandar um pequeno “recado” ao seu mestre.


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Notas finais do capítulo

¹Presumidamente na fic eles estão falando em francês.

²Esdras 8:23

³Nome pelo qual ficou conhecido o período absolutista da França (pré-Revolução Francesa, que aconteceu de 1789 a 1799). Como Gothel é do final do século XVIII (mais precisamente da década de 1790 a 1800), faz todo o sentido ela saber do que se trata mesmo estando na Alemanha.



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