A Criança do Labirinto escrita por Daniela Lopes


Capítulo 12
Castigo


Notas iniciais do capítulo

Helen conhece o terror nos corredores do Labirinto, mas sua tentativa de fuga pode ser uma chance de reaproximação com Jareth. Ainda presos em sentimentos contraditórios, percebem que ainda há uma centelha. Ao redor deles, os habitantes do castelo assistem ao dilema e tentam intervir para salvar alguma coisa.



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Helen viu o corpo. Um amontoado de pelos escuros cobrindo um corpo volumoso, com uma imensa corcova, uma cauda lisa, roliça e comprida como o rabo de um rato. Na frente, onde seria o peito da criatura, pareciam pender dois pequenos braços, com mãos de dedos finos e compridos, com unhas curtas, mas afiadas. Um pescoço alongado sustentava duas cabeças separadas apenas por uma pequena dobra de pele escura e Helen foi encarada por dois pares de olhos muito negros, rostos achatados com narizes pequenos, bocas pequenas, mas cheias de dentes afiados, que sorriam para a jovem mulher.   

A criatura inclinou as cabeças, cada uma para um lado e sorriu, fazendo as pernas de Helen fraquejarem. As duas cabeças falaram ao mesmo tempo:

—O que temos, o que temos aqui? Quem é quem você é?

            Helen se afasta devagar, olhando na direção de onde poderia achar a porta por onde entrou, mas no escuro, sabia que seria impossível encontrar. O ser sorriu de novo:

—Nós dormimos por um longo longo tempo! O que seria, o que seria bom comer numa noite como esta noite? Você pode responder pra nós?

            Helen gagueja:

—O-ouça! Eu estou esperando um anão amigo meu! O nome dele é Hoogle! Ele vai...

            A criatura fecha o semblante e ruge baixo:

—Anão escorregadio! Anão mentiroso! Desde o nosso despertar que ele promete trazer caça. Não podemos sair do Labirinto, então vivemos precisamos viver aqui... Ele mandou você mandou?

—N-não! Eu... Estou de partida! Vou visitar uma amiga na floresta e estou com pressa. Foi um prazer conhecer você... Qual seu nome?

            O ser fica pensativo e balbucia alguma coisa que a jovem não compreende e se aproveita disso para andar devagar, afastando-se dele. Então ele ergue as cabeças e emite um longo chiado, girando o corpo volumoso e disparando atrás de Helen, que inconsciente, segura o pingente presenteado por Jarod Crestani, enquanto tenta fugir.

            Numa curva à frente, ela pisa numa pedra solta e cai de lado, batendo as costas na parede do corredor e perdendo o ar no impacto. O ser passa por ela devido a velocidade do galope, mas vira rapidamente o corpo e se prepara para saltar. Helen segura a barriga e geme:

—Não!

            Jareth está sentado, cabeça baixa, meditando sobre tudo que havia acontecido naquele dia, quando ergueu os olhos e as esferas de cristal giraram ao redor dele. Correu até a janela e olhou o Labirinto mergulhado na escuridão. Uma esfera pousou em sua mão e ele viu Helen aterrorizada. Viu também uma criatura saída de pesadelos caminhando na direção dela, pronta para atacar a mulher indefesa.

            O corpo de Jareth transformou-se numa coruja em questão de segundos e se lançou através da janela, alcançando o labirinto e partindo na direção do corredor onde a terrível cena se dava. Seu pouso se deu frente à Helen e transformou-se no Rei goblin diante do terrível ser, que estacou e cheirou o ar. Reconhecendo o invasor, a criatura recou um pouco e murmurou:

—O Rei goblin Rei dos duendes pessoalmente em pessoa...

            Os olhos de Jareth são chamas e o corpo dele está tenso. Helen ergueu o olhar e percebeu que estava fora de perigo, mas longe de estar livre. Enquanto isso, a criatura avaliava a possibilidade de atacar o Rei:

—Muito tempo, majestade Rei goblin... Nós ficamos lá embaixo, presos, inertes, mas parece que alguma coisa mudou aqui e nós podemos sair, podemos caçar de novo... Sua vontade nos liberou de lá e agora interrompe nossa refeição?

            Jareth fala com voz grave e rouca, visivelmente furioso:

—Nenhuma criatura que habita o MEU Labirinto tem direito de tomar qualquer decisão sem minha permissão... Eu não permiti que saísse, menos ainda colocar em risco meu herdeiro! Essa mulher está sob minha proteção e você ousou feri-la... Eu não posso perdoar essa afronta...

            A criatura recua. A aura ao redor de Jareth brilha terrivelmente e Helen sente o ar ao seu redor ficar mais quente. Incapaz de fugir da ira do Rei goblin, o ser decide atacar antes e salta sobre o rei com toda sua fúria e peso. Jareth sorri, seus olhos estão brilhando e suas mãos tocam o peito do monstro parando o salto em pleno ar.

            Helen não entendeu bem o que aconteceu em seguida. Um clarão tomou todo o corredor e um grito estridente de dor ecoou pelo Labirinto. Uma forma esguia e cambaleante tombou no solo, chiando, arrastando-se ferida e exalando um fétido miasma que se dissipou ao primeiro vento.

            O que era antes a imensa e pesada criatura reduziu-se a uma massa fina e disforme com olhos saltados. Jareth caminhou até a coisa para terminar de aniquilá-la, quando sentiu sua capa segura. Ele virou-se e viu Helen deitada, encostada na parede do corredor, fraca e assustada. Ele ignorou a criatura e voltou-se para a mulher, verificando se ela estava ferida gravemente.

            Ergueu-a nos braços sem dificuldade, sentindo o tremor do corpo dela e o medo que ela sentiu. Ela manteve os olhos fechados todo o tempo em que ele seguiu com ela para fora do Labirinto. O calor do corpo dele trazendo certo conforto e por fim a voz dele, devolvendo-a para a realidade:

—O que fez foi arriscado e irresponsável...

            Ela suspirou:

—O bebê...

—Está bem... Nada aconteceu a ele, por sorte...

—como... Soube que eu estava...

—Você me chamou...

—Eu...?

            Ela tocou o pingente e exclamou, encarando o Rei goblin. Ele deu um leve sorriso e subiu as escadas com ela, aninhada em seus braços. Os goblins, duendes e fadas espreitavam atrás de colunas, debaixo dos móveis, nos nichos das paredes. Murmuravam e cochichavam entre si sobre o ocorrido e Helen sentiu toda a preocupação deles. Ela olhou por cima do ombro de Jareth e acenou para seus improváveis amigos e eles ofereceram a ela acenos e sorrisos aliviados, aquecendo o coração da moça.

            Ela cobriu o rosto com as mãos e chorou, deixando Jareth desconsertado. Bone e Breda esperavam a jovem com roupas limpas, água quente para banho e uma cama arrumada para que descansasse o corpo. O Rei goblin encarou as duas com olhos terríveis e Helen percebeu:

—Elas não tem culpa de nada... Eu as proibi de interferir nos meus atos e de alertar você sobre minha fuga. Estavam obedecendo minhas ordens...

—Eu sou o rei.

—Eu sou a mãe do pequeno mestre...

            Jareth se cala diante do argumento. Sabia que Helen protegia as servas e deixou passar. Não era momento de criar discussão por decisões tomadas baseadas em emoções confusas. Ajudada pelas servas, Helen banhou-se, trocou de roupas e foi conduzida à cama para repousar. Devolveu a raiz para Breda e agradeceu a tentativa de ajuda, deitou-se e ficou a olhar o teto da cama, ainda sentindo o corpo trêmulo da terrível experiência que passou naquele lugar.

            O Rei goblin entrou no quarto após Bone informar que Helen estava pronta para recebê-lo. Ele sentou-se ao lado dela, na cama e olhou-a por um tempo. Ela estava abatida e desapontada por ter falhado em sua tentativa de fugir dele. Então ele tocou a mão dela:

—Como se sente?

—Uma idiota...

            Ele ri, mas ela nota um quê de entendimento naquela risada. Ela esperou o sermão, mas Jareth também parecia cansado para tal feito:

—Acreditou que ia conseguir superar meu labirinto? Foi muito perigoso... Mas admito que foi corajoso...

            Ela fecha os olhos e vira o rosto para o lado. Era o fim da conversa e Jareth segue para a porta, falando com Breda e Bone:

—Se ela tentar algo de novo, vocês serão punidas por não me avisarem...

            De cabeça baixa, as servas concordam e Jareth deixa o quarto. As duas correm até a cama e Bone abraça Helen, chorosa:

—Quase virou comida de bicho! Quase mesmo!

            Breda toca a mão da moça:

—Nunca vi o Rei tão bravo, mas também tão preocupado... Você assustou todos nós, hein?

            Helen sorri, cansada:

— A mais assustada fui eu... Tudo em que pensei naquele momento foi no bebê! Céus, tive tanto medo! Tanto medo!

—Descanse agora, Helen. Se tiver fome, nos avise...

            Helen dormiu a noite toda. Não se deu conta das vezes que Jareth esteve no quarto, observando-a dormir, em silêncio, talvez preocupado que ela tivesse algum terror noturno ou pesadelos devido ao que passou.

            Maria soube do ocorrido e visitou a jovem em seu leito nos dias que se seguiram. Pediu que Helen tivesse paciência e fé. Tudo poderia melhorar com a vinda da criança, mas a moça não se manifestou sobre como se sentia e não contou a Maria que o Rei goblin havia proibido os seres do castelo de estarem perto dela.

            Passado o susto, Helen seguia uma rotina entre o quarto e o jardim de Hoogle, abandonado pelo anão e agora a única fonte de distração da jovem mulher. Ajoelhada junto do cercado de pedras, ela plantava uma muda de rosa, enquanto Bone trazia frutas e pão para o lanche da mulher. Helen lavou as mãos e apanhou uma fruta desconhecida, mas que cheirava bem. Olhou Bone e falou:

—Coma comigo.

—Não posso, senhora.

—Eu estou te convidando, então a culpa será toda minha.

            Bone apanhou a fruta, cheirou e deu uma generosa mordida. Sorriu de boca cheia ao sentir o sabor e suculência, fazendo Helen rir e quase engasgar. Ficaram as duas ali, sentadas, comendo, olhando o horizonte e o movimento de criaturas um pouco além daquele terraço. Bone baixou o olhar para a fruta em suas mãos e falou:

—Todos sentem falta de ficar perto da senhora...

            Helen sorri:

—Também sinto falta deles... Queria cozinhar para todos como naquele dia, lembra?

—Foi divertido! E eles tentaram limpar tudo! Ah! Foi terrível!

            Elas riram de novo e Bone suspirou:

—A senhora... Ama o mestre?

            Helen tocou o pingente:

—Entreguei meu coração para um homem em quem acreditava... Agora estou totalmente perdida. Seu mestre me assusta e confunde. Preferia nunca tê-lo conhecido...

            O olhar de Bone é triste, mas Helen toca o alto de sua cabeça, afagando seus cabelos:

—Mas penso que se nada tivesse acontecido, eu não teria conhecido você, Breda e os outros... E não teria a oportunidade de ser mãe. Então eu me apego a esses sentimentos bons para esquecer o que me machuca, não concorda?

—Sim! 

            Helen coloca as sementes da fruta num canto da bandeja, toma um gole de água de um jarro ali perto e retoma as atividades, agradecendo Bone pelo alimento. Quando saía pelo corredor de volta à cozinha, Bone se deparou com Jareth parado atrás de uma coluna. Apoiado pelo ombro, olhar baixo e rosto contraído. Percebeu que ele também sofria por alguma coisa, mas não se atreveu a falar nada com seu mestre, desaparecendo das vistas dele.

            Jareth olhou quando Helen levou o pingente até os lábios e beijou-o com ternura, para em seguida enxugar uma lágrima, balançar a cabeça e voltar ao cuidado com o jardim. Ele tocou o colar que usava e respirou fundo. Sentia seu coração dolorido, frustrado por não conseguir sentir por Helen o que sentia por Sarah. Sua natureza mística não entendia que era possível amar pessoas de formas diferentes, em épocas diferentes da vida, enquanto sua natureza humana não tinha tal experiência.

            Saiu dali rumo aos aposentos da mãe, mas ela repousava. Quando pensava em sair, Albert, o falso conde chamou-o:

—Jareth. Tem um minuto?

            O Rei goblin olhou o simulacro e seguiu-o até a varanda onde Maria gostava de se sentar para ler ou pensar na vida. Albert olhou a paisagem, que ganhava tons alaranjados do entardecer, e falou:

—Como está a moça?

—Ela passa bem. Agora a pouco a vi no jardim e...

—Porque não falou com ela?

            Surpreso, Jareth encarou o ser e este sorriu:

—Está fugindo, mas não consegue se afastar... Faz sentido pra você?

Jareth suspira:

—Não... Eu... Admiro a força e a coragem dela. Me deixa furioso, mas quando alguma coisa se aproxima para fazer mal a ela, eu...

            Albert toca um livro aberto sobre a mesa que Maria usava:

—Mestre Jareth... Quando me recriou... No que estava pensando?

—Em Maria... Na família que ela sonhava ter, nos sacrifícios que ela fez por mim e no amor que ela perdeu porque o Conde Tyton foi um covarde e egoísta.

            Albert sorriu e balançou a cabeça em concordância:

—Quando pensa em Sarah williams, o que sente?

—Raiva, desejo... Desespero.

—E quando pensa em Helen... O que gostaria de fazer por ela?

            Jareth não responde e Albert se aproxima, tocando o ombro dele:

—Pense com calma. Há tempo pra tudo nesse mundo...

            O Rei olha o falso conde e pergunta:

—Você... O que sente por minha mãe?

—Amor.

—Como sabe?

—Eu não sei, mas ela sabe e me mostra a cada dia. E vejo no olhar dela que estou no caminho certo. Eu fui criado apenas por causa dela, então essa é minha função primordial, mas eu... Sinto que posso oferecer mais à Maria.

            Jareth sorri de leve e sai dali. Seguiu até o salão do trono e percebeu que o mesmo passou a estar vazio de seus servos barulhentos desde que os proibiu de ficarem ao redor de Helen. Sentiu falta da algazarra que faziam e decidiu andar pelo castelo, descobrir onde ficavam e o que estavam fazendo quando não executavam suas ordens.

            Cada corredor, salão, aposento, escadaria, nada acusava a presença dos duendes, fadas, anões ou goblins e isso deixou Jareth intrigado. Então escutou um murmúrio distante, num das torres ao norte e seguiu para lá. Subiu as escadas estreitas que serpenteavam ao redor da torre e viu a porta semiaberta. Pela fresta, viu uma agitação de criaturas de um lado a outro e abriu a porta devagar. O que viu fez seu coração se agitar, surpreso.

            Numa espécie de ateliê improvisado, os servos do castelo gastavam seu tempo ocioso moldando, pintando, tecendo, esculpindo, talhando coisas parecidas com Helen. Eram esculturas, bonecos, pinturas, tapetes, baixos relevos que lembravam o rosto dela ou a mesma de corpo inteiro.

            Quando viram seu mestre ali, houve uma pequena algazarra, mas Jareth os conteve com sua voz imperiosa:

—QUIETOS!

            Ficaram imóveis e ofegantes, assustados por ele ter descoberto o que faziam escondido dias a fio. Jareth passou por cada trabalho e encarou Hoogle no canto da sala:

—Então...

— Sentimos muito, mestre...

—Pelo quê?

            Os seres se entreolharam e não souberam o que dizer. Jareth sentou-se num banquinho e suspirou:

—Vocês... Admiram Helen tanto assim?

            Todos balançam a cabeça e Jareth pensa por um segundo:

—Querem voltar a falar com ela?

            Todos concordam em silêncio e o mestre sorri:

—Então eu autorizo que falem com ela e a visitem pelo menos uma vez ao dia, mas sem exageros ou vou acabar com a raça de cada um aqui.

            A gritaria é geral e Jareth sorri ao perceber a alegria dos seres de seu castelo. Aquele som fazia falta para ele, mesmo que fosse motivado por outra pessoa. Quando todos saíram, ele fechou a porta atrás de si, mas não deixou de olhar uma pintura rústica retratando Helen no jardim. Uma imagem que o rei estava habituado a observar ao vivo sempre que podia.

            Helen acordou no dia seguinte com o quarto cheio de criaturas do castelo. Eles traziam o desjejum para ela, para eles também e para alegria de todos, ela estendeu cobertores no chão, sentando com eles para comer o alimento. Pela janela, uma coruja branca observava a atividade que durou quase toda a manhã, quando Helen contou algumas histórias do mundo humano e ouviu as do reino.

            A atividade matinal apesar de alegre foi exaustiva e Helen decidiu ficar no quarto, onde pequenas fadas ficavam trançando seus cabelos, causando ciúme em Bone e risos na moça. Breda preparava chás para os enjôos que iam e vinham em períodos cada vez mais espaçados. Era possível ver uma leve saliência no vestido da mulher e Breda falava:

            _O pequeno mestre está a crescer bem!

            _Sério? Eu... Estou preocupada. No mundo humano minha barriga estaria deste tamanho!

            E fez a medida com as mãos, provocando risada geral entre as ocupantes do quarto. Helen decide se deitar e tirar um cochilo, Breda pergunta se ela tinha fome, mas a moça sorri:

—Estou... Tão feliz de tê-los visto hoje que fiquei satisfeita só com o café da manhã.

Bone coça o nariz:

—O mestre descobriu que os servos estavam na torre, fabricando presentes para Helen... Então ele permitiu que todos viessem vê-la uma vez por dia... Todos ficaram muito felizes e voltaram a circular pelo castelo.

Helen encara Breda, que está sorrindo:

—Que cara é essa, Breda?

—O Rei goblin não é fácil de dobrar, menina! Acho que você...

Helen franze o cenho:

—Eu não tenho nada a ver com isso, sua boba! Pare de criar fantasias!

Após dizer isso, Helen adormece profundamente e seu sono é tranquilo. Hoogle está no jardim, mexendo a terra, plantando mudas novas e regando os canteiros, quando percebe a presença de Jareth:

—Mestre?

Jareth olha ao redor e fala:

—Onde está...

—A senhora ficou no aposento hoje. Estava cansada e decidiu ficar em repouso.

O Rei goblin sai dali aborrecido e segue até os aposentos de Helen. Bone abre a porta e Breda coloca o dedo indicador nos lábios:

—Shh! Ela está dormindo!

Jareth entra:

—Ora! Que tanto ela dorme?

—É normal nesse estado, Rei goblin... Não importa a qual mundo pertença, fêmeas grávidas ficam sonolentas mais que o normal. É uma forma de compensar as mudanças físicas e manter energia até o nascimento... Venha ver. A barriga dela já aparece sob a roupa!

Jareth segue até o leito e analisa o ventre de Helen. A saliência era aparente e ele sentiu uma estranha agitação dentro de si, misto de emoção e dúvida. Ele ergueu a mão e aproximou-se, incerto se devia tocar a barriga da mulher. Breda segurou Bone pela mão e saiu discretamente do quarto, deixando Jareth a sós com Helen.     

Quando percebeu que estava sozinho, Jareth relaxou o corpo e suspirou. Helen respirava lenta e suavemente, parecendo confortável na grande cama de dossel. Seu rosto estava mais corado e os cabelos haviam crescido um pouco mais, acentuando os cachos ruivos. O Rei inclinou-se sobre ela e murmurou:

—Vai me odiar pra sempre, não é? Mesmo se eu disser que estou... Que me sinto mal por tê-la arrastado para tudo isso?

O ressonar de Helen é a resposta que Jareth recebe para sua declaração de pesar. Ele se aproxima mais dela, aspira o cheiro dos cabelos da moça e roça os lábios nos dela para, em seguida, depositar neles um beijo casto. Essa era uma tortura a qual Jareth se submetia como expiação para o que Helen passava ali. Sua dúbia natureza não sabia agir de outra forma.

Saiu do quarto e seguiu para a torre, onde permaneceu junto dos trabalhos de seus servos. Todas as imagens possíveis de Helen McVeigh, a mulher por quem não conseguia se apaixonar, mas que o atraía inexplicavelmente.

Noite alta sobre o Labirinto e uma criatura amorfa e serpenteante arrasta-se pelos corredores. O ser geme e balbucia, insanamente, palavras de vingança:

—Rei cruel... Rei malvado... Injusto com nós... Só queria caça, só queria viver no labirinto, mas veio... Veio a mulher e fez o Rei matar nós... Matar? Matar não! Pior que a morte nós estamos... Rei cruel vai pagar caro. Nós levar a mesma dor pra ele! Nós levar o mesmo desespero pra ele sentir que não pode ferir e ficar assim... Vingança nós provamos em breve... Rei Jareth.

E murmurando essas palavras como um mantra, a criatura continua sua jornada vagarosa, mas obstinada rumo ao interior do Labirinto, ocultando-se nas sombras das paredes de pedra, escondendo-se de uma ou outra criatura que passasse pelos longos corredores.

Maria acordou cedo, arrumou-se e foi visitar Helen. Ao chegar ao aposento, não encontrou ninguém e ficou preocupada:

—Onde está Helen? Será que está tudo bem com o bebê?

Então ela vê dois goblins correndo pelo corredor à frente e decide segui-los, dada a agitação que vinha deles. Desceu as escadarias e viu-se na antessala que levava aos jardins de Hoogle. Percebeu a movimentação de criaturas de todos os tipos e sorriu ao ver Helen no centro daquela alegre bagunça. Era um café da manhã incomum, mas ninguém parecia incomodado pela informalidade do mesmo.

Todos comiam, bebiam, riam e conversavam, enquanto Helen ouvia um ou outro que chamava por sua atenção. Quando viu Maria, acenou para ela e falou:

—Maria! Já tomou seu café da manhã?

A mulher sorriu para Helen e atravessou os canteiros que floresciam, saltando um duende mais distraído no caminho:

—Ora vejam! Isso aqui está uma festa! Posso me juntar a vocês?

—Por favor! Onde está Maddy?

—Deve estar chegando aí. Ela sempre vem atrás de mim!

Então elas veem a pequena serva de cabelo escuro e rosto sério se aproximar timidamente. Helen acena e sorri:

—Maddy! Venha comer conosco!

Bone toma a serva pela mão e segue com ela até a grande mesa cheia de comida cheirosa. Acostumados a um cardápio gosmento, às vezes gorduroso ou cheio de estranhos visitantes que se mexiam, os servos são apresentados à comida de Helen, que ela chamou de “cardápio de taverna”, adaptando tudo que encontrou nas dispensas do castelo em uma comida cozida, temperada e suculenta.

Maria colocou uma porção de grãos cozidos, carne de um animal que Helen acreditou ser um javali, folhas temperadas e porções de frutas picadas com mel silvestre. Ela observava o comportamento dos duendes, fadas, goblins e anões e comentou:

—Normalmente, numa hora dessas, eles estariam se digladiando pela refeição. Você conseguiu uma proeza!

—Que nada! Os mais altos e fortes me ajudaram a preparar tudo e os menores arrumaram tudo aqui fora! Acho que gostam de se sentir úteis!

            _Concordo, apesar de que alguns têm a cabecinha meio fraca...

            Elas começam a rir, enquanto os servos do castelo se divertem. Breda se aproxima da mesa das mulheres e fala:

—Senhora Maria.

—Olá, Breda! Com está sua estadia após ser sequestrada pelo Rei goblin?

—Não posso reclamar. A senhora Helen é uma pessoa gentil e corajosa. Estou feliz por atendê-la até o fim da gestação! Por falar nisso, Helen? Posso ter uma palavra a sós com você?

—Sim!

            Elas se afastam dali, deixando Maria curiosa. Numa curva do corredor próximo, ambas param e Breda segura a mão de Helen:

—Senhora... Preciso perguntar uma coisa.

—Está me preocupando...

—O quanto você quer esse bebê?

—Com toda a minha alma...

—E o que falta pra que ele não saia do seu lado?

            Helen abre a boca, mas fecha em seguida. A curandeira balança a cabeça:

—Esse cabo de guerra entre você e o Rei goblin não vai fazer bem a essa criança. Acha que será feliz quando nascer, sabendo que faz a mãe e o pai sofrerem tanto?

—Não depende apenas de mim...

—Tem certeza? Desde que o mestre salvou você daquele monstro, ele tem dado indicações de boa vontade... Talvez até esteja arrependido do que te fez. Liberou a visita dos servos a você. Ele... Frequenta o quarto quando você está em repouso. Quer saber se está tudo bem e se seu sono é tranquilo.

Helen arregala os olhos:

—O quê? Ele entra no meu quarto enquanto estou dormindo? E... Você me deixa sozinha com ele?

A curandeira dá uma sonora gargalhada:

—Hahahahahaha! E o que acha que ele vai fazer a você enquanto dorme?

O rosto de Helen cora violentamente e ela fecha o semblante:

—Muito bem, sua traidora! Diga logo o que quer!

Breda suspira:

—Ele é o senhor desse lugar e não foi convidado a tomar o desjejum conosco. Seu caráter e temperamento não o tornam a pessoa mais fácil de lidar e não está habituado a ser ignorado dessa forma...

Helen baixa o olhar e respira profundamente. Sua mão aperta a de Breda:

—Como... Eu vou fazer isso?

—Apenas faça.

A jovem mulher se afasta da curandeira e segue para o salão do trono. Seu corpo estremece com a possibilidade do confronto, mas ela continua. Se queria uma trégua com o Rei do Labirinto para ter acesso ao filho, dançaria em brasas. A ideia pareceu esdrúxula e ela segurou o riso, então viu o trono e sentado nele, um silencioso Rei dos goblins.

Helen sentiu toda a coragem se esvair. Seu desejo era sair dali de fininho e fugir pra longe dele, mas a voz do Rei paralisou-a:

—Meus servos tem razão... Seu cheiro é algo cativante.

Ela engole em seco e se aproxima. Ele vira a cabeça devagar, preguiçosamente e espera. Helen olha para a janela, as paredes e depois para ele:

—O desjejum... Eh... Esperamos que se junte a nós para...

Ele se levanta e desce até ela. Sua presença forte e sobrenatural deixava a jovem intimidada. Não tanto por temer o que ele era, mas por somar o que ela conheceu dele à sua natureza mística. Jareth mirou os olhos verdes de Helen:

—Eu agradeço o convite, mas a reunião é mais agradável sem mim. Minha presença intimidaria os meus servos e eles não teriam coragem de chegar até você.

—Não creio nisso, uma vez que foi você que os autorizou a me verem de novo. Estão... Felizes por sua causa. E sua mãe não está feliz vendo o filho tão isolado em seu próprio castelo.

Jareth sorri e segura uma mecha do cabelo de Helen, fazendo-a recuar um pouco:

— Ainda se sente uma prisioneira em meu reino?

—Um pássaro ganhou uma gaiola de ouro, água fresca e alimento abundante, mas ainda é cativo... Eu...

Ela se cala. Não queria começar um embate com Jareth e menos ainda deixá-lo furioso a ponto de impedi-la de ver a criança. Suspira e o encara:

—Eu quero que tome o desjejum conosco... Por favor. Acho que será especial para todos lá no jardim... Vão crer que seu Rei não está zangado com eles.

Aquelas palavras aqueceram o peito de Jareth e ele sorriu de leve. Ergueu um braço e sem jeito, Helen segurou-o, sendo conduzida até o jardim, onde todos os seres místicos e Maria receberam a cena com exclamações e sorrisos.

Albert já estava entre eles e Jareth sentou-se ao lado do falso Conde Tyton, tendo Helen na ponta oposta, ao lado de Maria. Servido de todos os pratos, o Rei goblin comeu, bebeu e conversou por algum tempo com os presentes. Seus servos tentavam chamar sua atenção com alguma folia e Jareth ria.

Helen estava calada e Maria tocou sua mão:

—Um grande passo, minha querida! Estou orgulhosa de você!

A moça sorri e exclama, puxando a mão de Maria para o ventre:

—Oh! Sinta! Ele se moveu!

Todos os olhares se voltam para a mulher e Jareth a encara, o semblante inescrutável quando pousou os olhos no rosto dela, que não o percebeu. Maria segurou a barriga discreta e sorriu:

—Que forte! Vai ser uma linda criança, Helen!

Então os olhos da moça se enchem de lágrimas e Jareth se levanta, transformando-se em uma coruja, alçando voo para além do castelo. Helen acompanhou a partida dele e voltou-se para a mulher ao lado:

—Acha que ele se aborreceu comigo?

—Não. Ele está assim consigo mesmo. Vamos esperar...

A ceia termina e todos colaboram com a limpeza, para em seguida retomarem com suas atividades no castelo. Maria e Albert se despedem da jovem, combinando um jantar na ala do castelo que Maria ocupava. De volta ao aposento, Helen troca o vestido pela camisola e vai até a janela. Ela olha o labirinto com calafrios e tenta apagar da mente o que passou lá. Então se recorda do modo gentil como Jareth tratou dela depois de salvá-la do monstro assustador.

A confusão que sentia deixava a jovem mulher perdida em pensamentos. Se Jareth a visitava enquanto dormia, isso era uma demonstração de que ele se preocupava com seu bem estar, apesar de parecer sempre frio e distante. O passado do Rei goblin parecia feri-lo sempre que a memória de Sarah se fazia presente. Breda e Maria insistiam que Helen deveria se empenhar em curá-lo, mas se ele não a amava, qual o sentido nisso.

Helen suspirou. Se ela não o amava, porque gastar energia em fazê-lo esquecer da garota do quadro? Então ela tocou o ventre, a recordação mais forte de que, um dia, ela amou um estrangeiro de nome Jarod Crestani para em seguida descobrir que havia sido enganada. O que ainda restava no Rei do homem por quem se apaixonou?

Ela seguiu para a cama e deitou-se, fechando os olhos, tentando se acalmar. Então escutou o som do bater de asas e ficou quieta. Passos seguiram lentamente até a cama e ela percebeu que seu lado esquerdo inclinou-se de leve. Uma respiração profunda agitou as mechas de cabelo que lhe caíam na testa e Helen esperou. Um sussurro baixo fez sua pele arrepiar:

—Eu... Sinto falta...

Ele não termina. Inclina-se sobre ela e pousa os lábios nos dela, suavemente. Helen abre os olhos de uma vez e exclama, assustada. Jareth se ergue e a encara, assustado. Ela segura o colar sem perceber e ficam ali, ofegantes e tensos. Ele sai da cama e caminha pelo quarto, aparentemente aborrecido pelo flagrante, Helen se senta na cama:

—V-você...

Ele a olha:

—Foi um erro. Eu não devia estar...

—Breda me contou que vem ao meu quarto saber como está minha saúde...

Ele para de andar e se aproxima. Percebe no rosto de Helen uma tentativa de não explodir com ele pelo que fez minutos atrás. Ele baixa o olhar:

—Ela me falou que no seu estado, é normal sentir muito sono...

—Sim. Maiores esforços me deixam muito sonolenta, mas após uma soneca, eu me sinto melhor e...

Jareth avança na direção dela e a toma nos braços. Helen grita com o susto, mas então sente o corpo apertado pelo abraço do Rei goblin, os lábios dele em sua boca e as mãos dele afagando suas costas e cintura.

Ele prensou o corpo dela contra o colchão. Sua boca extraindo o máximo de doçura de Helen, o calor em seu peito se espalhando até que ele afastou-se, ofegante:

—Helen, eu...

Ele olhou o rosto dela. Seus olhos cheios de lágrimas e o rosto corado deixaram-no apreensivo:

—Eu... Machuquei você?

Ela balança a cabeça e respira fundo. Ainda deitado sobre ela, abraçando-a tão intimamente que sentiu seu tremor. Helen fecha os olhos:

—O que você... Quer de mim, Jareth?

Os olhos dele analisam o rosto familiar. O corpo esguio dela encaixado perfeitamente em seus braços, o ventre levemente estufado indicando que o que havia entre eles era bem mais complexo. Ele fecha os olhos também:

—Eu quero amar você... Quero que não tenha medo de mim... Quero que me faça esquecer...

—Sarah.

O nome da jovem o faz abrir os olhos e se levantar devagar, liberando-a de seu contato. Helen sente o corpo em brasa e cobre os olhos com o antebraço, tentando se recuperar da explosão de sentimentos que se agitavam dentro dela. Jareth esfregou o rosto com as mãos:

—Eu peço desculpas por invadir seu quarto e agir de forma tão... Passional.

—O que me pediu há pouco...

—Esqueça isso. Você não é obrigada a lidar...

—Eu aceito.

Ele a encara, surpreso com o que ela acabava de dizer. Levantou-se e seguiu para a porta do aposento, mas ainda ouviu Helen falar:

—Jareth... Eu não tenho mais medo de você.

Ele deixa o quarto e segue para o salão do trono. Seu corpo inteiro está trêmulo e agitado. Ele toca a boca e fecha os olhos. Havia sentido aquele desejo antes, no mundo dos homens, quando se passou por Crestani e conheceu uma jovem mulher gentil e corajosa, que entregou seu amor a ele sem dúvidas ou receios. Jogou-se no trono e inclinou a cabeça para trás, rindo de sua condição:

—Muito bem, Rei goblin... Quando foi que deixou sua humanidade assumir o controle?

Continua...

 


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Notas finais do capítulo

O capítulo ficou maior que os demais por eu crer que dividir alguns eventos não seria legal devido ao título do mesmo. Quando inseri a criatura do Labirinto, tentei imaginar como ela se movia ou falava. Rascunhei o formato dela e percebi que devia ser assustadora, mas inteligente. Como ela tem duas cabeças, sua fala foi algo curioso de se criar, pois são duas mentes trabalhando juntas e separadas ao mesmo tempo. Tentei transmitir isso quando ela repete palavras em sequência, dando a entender que estão a falar da mesma coisa com palavras diferentes ou sinônimas. Por causa dela, muita coisa vai mudar na história e entre Helen e Jareth.
Espero que gostem!
Um abraço!



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