O que dizem de nós. escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 7
Tsarin


Notas iniciais do capítulo

Esse foi o maior capítulo até agora! 4.208 palavras.

Música da vez é Primavera, de Ludovico Einaudi: https://www.youtube.com/watch?v=qYEooPeyz5M



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— Você está descobrindo feitiços que eu nunca nem ouvi falar.

— Tente não soar tão desconfiado – Elyn provocou, enquanto deslizava com destreza o pincel no lado interno do pulso de Arcaent, desenhando um símbolo em tinta preta. – Você não tinha motivos para ler livros de magia de cura, é natural que não conheça algumas coisas.

Era verdade. Em Yrilla, Elyn seria treinada por um curandeiro, alguém que a guiaria de maneira apropriada naquela arte. Um ilusionista não era o professor adequado para uma curandeira. Arcaent podia ensinar o básico da magia, mas os estudos específicos Elyn tinha que descobrir e aprender sozinha.

— Terminei – concluiu. Arcaent avaliou o símbolo. Um signo, a representação de uma palavra. Duas palavras, na verdade. “Frio” e “proteção”. Elyn tocou o signo com a ponta dos dedos, com cuidado para não borrar a tinta fresca, e murmurou algumas palavras. Arcaent imediatamente sentiu o frio tornar-se ameno. Mesmo que estivessem no meio da neve e em todas as direções só conseguissem ver a alvura do inverno, a magia manteve seu corpo confortavelmente protegido do clima. Elyn sorriu satisfeita, estendendo o próprio pulso para que Arcaent desenhasse o signo. – Minha vez. O feitiço dura até a tinta apagar.

— Incrível.

Quando Arcaent terminou, Elyn repetiu as palavras, ativando a proteção sobre si mesma.

Não passaram por outros incidentes após o de Nordalius. Não tinham cruzado com outros soldados após afastarem-se das estradas, e só viam outras pessoas quando precisavam ir a uma cidade ou vila arranjar comida ou as roupas pesadas que agora usavam para suportar o clima. O inverno não era gentil no norte, muito menos em Yhriam, onde finalmente chegaram após um mês e meio de viagem.

Yhriam. O lugar que Arcaent deveria poder chamar de lar, mas não conseguia. Esperava apenas que sua família ainda vivesse ali após todos aqueles anos. Mesmo sendo uma pessoa reservada, Arcaent não conseguia controlar a expectativa, muito menos a apreensão. Ele não tinha ideia de por onde começar a procurá-los. Mesmo sem dizer uma palavra sobre o assunto, Elyn estava sempre ali, de braços dados com ele, mãos entrelaçadas, um lembrete silencioso de que, o que quer que acontecesse, ele não iria lidar com aquilo sozinho.

Em Yhriam, arranjaram um mapa da região. Circularam as áreas agrícolas e mapearam a melhor forma de atravessar os campos vastos. Ficarem presos na neve distantes de qualquer vila ou cidade poderia significar a morte. Cruzar um reino como se desenhassem um “x” em seu mapa parecia uma forma horrível de procurar pessoas que ele não sabia onde moravam e cujos nomes ele não lembrava. Mas era a única ideia que tinham.

Arcaent pensou se valia mesmo a pena. Parecia ilusão achar que poderia reencontrá-los. Sozinho talvez tivesse recuado, mas Elyn estava tão interessada em encontrá-los quanto ele mesmo. Uma vez, Arcaent não se conteve e perguntou por quê. Nunca teve muitas amizades, e a ideia de se importar tanto com algo simplesmente porque é importante para uma pessoa próxima ainda lhe parecia estranha. Elyn sabia disso, é claro, e conhecendo seu jeito fechado, ela preferiu não explicar novamente que desejava apenas que Arcaent fosse capaz de deixar a ferida do passado para trás. Em vez disso, respondeu com uma brincadeira:

— Eu quero saber seu sobrenome.

Arcaent também não entendeu a resposta de primeira.

— Por quê? – repetiu.

— Porque quero saber se seu sobrenome combina com o meu nome. – Ela sorriu com malícia. A intenção era obviamente provocá-lo, mas Arcaent não achou a sugestão nada desesperadora. Muito pelo contrário. – Eu acho que não posso mais usar “Elyn de Ryioniss” por aí.

Mesmo com a positividade de Elyn, a busca vinha sendo frustrante. Um mês havia passado desde que chegaram a Yhriam, e o pico do inverno desencorajava que continuassem mais um passo.

— Talvez devêssemos esperar a primavera – Arcaent sugeriu, na noite anterior, acampados na floresta gelada com a barraca recém-adquirida e os novos mantos de pele.

E quando ele dormiu, Elyn usou o brilho da joia em seu pingente para folhear seu livro de magia de cura no meio da noite, em busca de algo que facilitasse a jornada dos dois. Elyn sabia que às vezes era preciso adiar um objetivo para poder alcançá-lo, mas algo no tom de Arcaent a deixou apreensiva. Sentia que se adiassem a busca uma vez, adiariam novamente e novamente, até que desistissem.

Descobriu aquele feitiço de proteção e convenceu Arcaent de que poderiam insistir mais um pouco antes de pensar em adiar.

A insistência os recompensou dias depois.

Desencorajados, eles não estudavam mais as paisagens de Yhriam com os olhos ávidos de quem espera reconhecer alguma familiaridade. Em vez disso, estavam viajando pelo reino da mesma forma como viajavam antes, prestando atenção aos lugares em que passavam como se tudo ali fosse uma coisa nova. E, tanto para Elyn quanto para Arcaent, era mesmo uma coisa nova. Ela nunca tinha visitado aquele lugar. E ele, sendo levado tão jovem, nunca tinha voltado ali até então. Conhecia tanto daquelas terras quanto Elyn conheceria.

Elyn soube que tinham encontrado o que procuravam antes que ele sequer dissesse algo. Quando caminhavam por um campo largo sem pressa alguma, guiando os cavalos e conversando bobagens. Então Arcaent parou, de repente alheio ao que quer que Elyn estivesse falando, e ela viu a sombra da familiaridade nos olhos dele, encarando o horizonte distante. Sua expressão indecifrável, um tanto apreensiva, mas a certeza continuava: ele reconhecia aquele lugar.

— É aqui? – Elyn perguntou, cautelosa. A ideia de finalmente terem encontrado o local a deixava eufórica, mas ela reprimia bem sua reação, sabendo que a situação era delicada para Arcaent.

Ele não respondeu.

Poucos metros os separavam de uma cerca baixa de madeira gasta, e além dela o campo se abria para uma fazenda com as atividades paradas pela estação. Uma casa rústica destacava-se distante no meio da neve branca, um brilho oscilante na janela indicava uma lareira acesa e fumaça manchava o céu cinza claro. Não era tudo branco e frio em suas lembranças. A estação era diferente quando Arcaent foi levado embora. Havia plantas e flores por toda a parte. Mas ainda assim, a paisagem era a mesma do quadro em sua mente. A casa, as colinas além dela. Quase podia ver a mulher também. Correndo pelo campo, desesperada para recuperar o filho tomado dela. Era apenas uma lembrança, mas era vívida como se ela estivesse na sua frente.

A lembrança se desfez quando Arcaent olhou para Elyn, que segurava seu braço em um gesto singelo de apoio. Ela guiou o caminho, aproximando-se da cerca. Arcaent achava uma má ideia apenas andarem até lá, mas não conseguiu objetar. Talvez fosse outra família. Pior. Talvez fosse a família dele, mas não o quisessem mais ali.

Elyn passou a mão sobre uma velha placa de metal pregada na cerca, parcialmente congelada, mas ainda legível. A placa certamente tinha mais que 20 anos, então, se fosse o lugar certo, e Arcaent tinha certeza de que era, pertencia à família dele.

— “Tsarin”… – Elyn leu em voz baixa, levantando os olhos para ele com um sorriso mais caloroso do que o feitiço que os protegia. – Você é Arcaent Tsarin. Eu gostei.

A cerca era baixa, então Elyn não teve dificuldade em passar para o outro lado, mas ele não a seguiu de imediato.

— E se eles… – Arcaent deixou escapar, sem pensar. Elyn o incentivou a continuar o que dizia. Não tinha soltado a mão dele, mesmo que agora estivessem em lados opostos da cerca. Arcaent inspirou, convencendo-se a terminar a frase. – E se eles forem como todos?

Elyn ouviu as perguntas não ditas. “E se eles odiarem feiticeiros? E se eles não me quiserem aqui?”

— E se eles não confiarem em mim? – Arcaent arriscou perguntar.

E se…? E se…?

Elyn sorriu. O tempo passa, mas aquelas palavras sempre seriam suas maiores preocupações.

— E se confiarem? E se não forem como todos? – Houve um momento de silêncio em que apenas sustentaram o olhar um do outro. Elyn desviou o rosto para a casa, voltando a encará-lo logo depois. – Você deseja que sua família queira a sua presença. Eu entendo. Mas Arcen… Eles não podem confiar em você da forma que você espera. Ainda.

Arcaent estreitou os olhos.

— Que reconfortante.

— Não posso ser reconfortante sobre isso. É a verdade. Eles não podem confiar em você ainda. Não porque você é um feiticeiro, não tem nada a ver com isso, mas porque eles não conhecem você. – Elyn se aproximou, abraçando-o a despeito da cerca entre os dois. – Você foi levado embora tão pequeno e cresceu longe deles. Talvez eles lhe vejam como um estranho, e por isso talvez esse reencontro não seja como seu coração deseja, mas isso vai mudar quando virem a pessoa que você se tornou, apesar de tudo o que aconteceu. Confie em mim, Arcen. Eu garanto que a sua família vai amar finalmente poder lhe conhecer. Como eu também amei lhe conhecer.

Arcaent segurou o abraço por alguns instantes, afastando-se com a determinação renovada.

— Você não está usando aquele seu poder em mim, não é? – Ele perguntou de brincadeira, atravessando o cercado depois de amarrar as rédeas dos cavalos. Ele poderia sentir a magia se Elyn usasse a bênção de Iyrteran, então não era uma opção. Mas Elyn, brincalhona também, ergueu a sobrancelha de forma significativa.

— Os resultados importam mais que os métodos, Sr. Tsarin.

Arcaent podia se acostumar com aquele nome.

.

Estavam quase alcançando a casa, a frente ladeada de árvores cobertas de neve. Teriam continuado até bater na porta, mas a caminhada foi interrompida pelo som de algo atingindo a neve fofa. Uma criança caiu de uma das árvores.

— Asra! – gritou a outra, ainda equilibrada nos galhos.

Elyn soltou Arcaent e correu na direção dela, ajudando-a a se levantar.

— Você se machucou?

— Estou bem! – A menina riu, espanando a neve das roupas. Asra era uma criança pequena, de talvez cinco anos, de rosto redondo e cabelos escuros.

A outra criança era mais velha, mas não devia ter mais do que doze, treze anos. Os cabelos louros estavam desgrenhados mesmo presos em um rabo, como se tivesse feito o penteado às pressas. Ela desceu da árvore com habilidade, o olhar preocupado para a irmã.

— Não conte para a mãe!

— Você me empurrou!

— Não empurrei!

— Mãe, Kasja me empurrou da árvore! – Asra gritou, dando um passo em direção de casa, mas caiu assim que pôs o peso na perna esquerda, segurando o tornozelo com um gemido de dor.

— Posso ver isso? – Elyn perguntou, ajoelhando-se.

— É mentira dela, moça, ela não se machucou! – Kasja acusou. Elyn deu um olhar cúmplice para Kasja quando conferiu que Asra não estava mesmo machucada, e só queria que a mãe brigasse com a irmã mais velha.

— Não diga isso. Está terrível, vamos ter que amputar.

— O quê? – Asra se levantou imediatamente, esquecendo a farsa, e se escondeu atrás da irmã que estava tentando incriminar. – Não precisa, já curou…

— Tão rápido? Deve ser um milagre!

Kasja não disfarçou o riso da brincadeira de Elyn com a pequena Asra. Mas logo desviou o olhar dela para Arcaent, que se manteve distante durante todo o acontecido, e voltou para Elyn.

— Quem são vocês?

— Eu… – Elyn começou.

— Afaste-se delas! – O dono da voz saiu da casa, segurando um machado comum, andando firme até as crianças. Elyn recuou tão depressa que tropeçou, mas isso não o tornou mais compreensivo. – Mandei se afastar!

Arcaent se colocou entre os dois, ajudando Elyn a levantar, ficando os dois a uma distância segura. A voz do homem era ameaçadora, mas os olhos eram cautelosos, protetores, e revezavam entre Elyn e Arcaent avaliando se representavam algum perigo. O olhar dele tornou-se mais rígido ao perceber a joia no cajado de Arcaent.

— Meninas, vão para dentro.

— Pai, ela só…

— Agora! – A ordem firme foi logo obedecida pelas crianças, que correram para dentro de casa. Além da porta, Elyn pôde ver rapidamente Asra agarrar a saia de uma mulher, mas as duas logo sumiram da vista. O homem apontou o machado para eles. – Vocês não vão levá-las!

Arcaent não disse nada, apenas o encarou como se estudasse a imagem do homem na frente deles.

— Não viemos por isso… – Elyn disse.

— Eu não ligo para pelo quê vieram, vão embora agora.

— Estamos procurando alguém – insistiu, segurando o braço de Arcaent como um incentivo. – Arcen…

Arcaent deu um passo a frente, ainda sem saber como explicar a situação. O homem abaixou o machado sem abandonar a postura defensiva e cruzou os braços, esperando. O olhar intenso e perscrutador sobre Arcaent, desconfiado.

— Nós…

Mal começou a falar e Elyn viu algo mudar no rosto do homem. O olhar hostil se desfez em reconhecimento frágil, como se tivesse visto um fantasma. O machado caiu na neve.

— Arcaent? – perguntou, a voz baixa quase inaudível sob o ruído do vento. O homem abriu um sorriso incrédulo que logo disfarçou, como se não quisesse se deixar enganar por uma lembrança que provavelmente não era real. Um fantasma. – É você?

Eles não eram tão parecidos, Elyn percebeu. Exceto os olhos. Não tanto pela cor, os de Arcaent eram mais escuros, mas o formato era parecido, e havia a mesma seriedade em seu olhar.

Arcaent não tirou os olhos dele. Respondeu com um movimento de cabeça, mas apesar da falta de palavras, era visível o alívio pela mudança no comportamento do irmão. Elyn sorriu, observando-os. O irmão se aproximou, ainda atônito. Quando finalmente se convenceu de que não estava vendo coisas, praguejou baixo e empurrou Arcaent.

— Você demorou! – Ele reclamou, em seguida puxando Arcaent para um forte abraço. Elyn não se apiedou da expressão confusa no rosto dele. Era bom que se acostumasse logo. Afinal, Arcaent era o irmão mais novo. – 23 anos! Foi tão difícil assim achar o caminho pra casa?!

Afastando-se, Arcaent sorriu.

— Foi bem difícil, na verdade…

Apesar do reencontro ter sido melhor do que esperavam, ainda havia uma sombra de dúvida no rosto de Arcaent, mesmo que sorrisse ao responder o irmão. Elyn lembrou de quando Arcaent lhe contou sobre a família, de como tão pouco deles restara em sua memória. Devia ser uma sensação horrível ter que perguntar ao próprio irmão qual era seu nome.

— Então, você é mesmo o irmão do Arcen? – Elyn interrompeu, estendendo a mão. – Eu sou Elyn.

— Ah, claro, desculpe! Meu nome é Iairos. Prazer conhecê-la – respondeu, cumprimentando-a rapidamente. Arcaent lançou-lhe um olhar agradecido, antes de Iairos voltar-se para ele. Não tinha nada do homem ameaçador de antes. – Vamos, vocês precisam entrar! Precisa conhecer as meninas, Arcaent. Do jeito certo, dessa vez.

.

Liserli pôs a mesa. O caldo quente que serviu era a melhor coisa que Arcaent e Elyn podiam pedir depois de todas as semanas na neve. Asra andava agarrada à saia da mãe, lançando olhares desconfiados para Elyn, sentada no chão perto da lareira, aproveitando cada colherada do jantar. Elyn sorriu para ela, mas a menina não tinha esquecido a brincadeira de antes.

— Você queria arrancar o meu pé!

— Ora, foi só uma brincadeira.

— Você é má.

— Só de vez em quando. Você me perdoa? – perguntou. Asra balançou a cabeça de forma decidida, negando. Elyn deixou a tigela de lado. – Nem se eu fizer uma trança nesse seu cabelo lindo?

Os olhos da pequena Asra reluziram como se Elyn tivesse lhe oferecido ouro, e antes que percebesse, ela estava em seu colo. Kasja observava de seu lugar à mesa. Mesmo sendo mais velha, parecia mais tímida. Ouvia partes do que o pai e Arcaent, que ela logo se empolgou em chamar de tio, falavam, mas parecia mais interessada em se aproximar de Elyn. A família só tinha quatro cadeiras na mesa. Iairos e Liserli ofereceram lugares para as visitas, mas Elyn disse que não precisavam tirar Kasja de onde estava por causa dela. Quando terminou a trança, Asra saiu eufórica para mostrar o penteado para a mãe.

— Quer que eu faça em você também? – Elyn perguntou para Kasja, que abriu um sorriso animado e foi até ela.

Liserli parecia menos à vontade com a presença deles do que o resto da família, apenas ouvindo a conversa e fazendo poucos comentários. Elyn não a culpava por isso. Se tivesse filhos pequenos, também não iria querer dois estranhos dentro de casa.

— Então… Há quanto tempo foi? – Arcaent perguntou, em voz baixa. A animação de Iairos diminuiu um pouco ao falar de um assunto tão triste.

— Faz anos. A mãe foi três anos depois que você… Foi uma gripe. O pai foi cinco anos depois dela.

Arcaent encarava a mesa, absorvendo o que ouvia. Ambos já estavam mortos quando ele ainda tinha 11 anos, e ele sequer imaginava. Lamentava não poder ter visto eles novamente, mas sentiu um alívio egoísta por ter acontecido há tanto tempo. Com 11 anos, Arcaent ainda estava em Yrilla. Não dependia dele a escolha de voltar ou não para Yhriam. Quando a Ilha dos Feiticeiros caiu, aos 16 anos, ele seguiu em frente em vez de olhar para o lugar de onde veio. Não teria se perdoado sabendo que poderia ter visto seus pais se tivesse decidido voltar antes.

— Só eu fiquei aqui. Challys continuou em Yaz, mas mandava dinheiro até eu aprender a cuidar da fazenda.

— Challys?

— Nossa irmã.

— Eu tenho uma irmã?

— Não é surpresa que não lembre dela. É mais velha que eu e estudava na capital. Você só a viu umas duas vezes, antes de… – Iairos sempre interrompia a própria fala quando se referia à partida de Arcaent. – Você deveria visitá-la. Ela ficou horrorizada quando soube o que aconteceu, passou seis meses aqui cuidando da mãe. Ela ficaria muito feliz de saber que você está bem.

— Eu não sei…

— Ela não se incomodaria com você ser um… Challys sempre foi bem… aberta… com povos mágicos. Ela até casou com um.

— Um feiticeiro? – perguntou. Isso era incomum.

— Não… Outra coisa. – Quem respondeu foi Liserli, de modo vago, voltando a ouvir em silêncio.

— Eu fiquei bem surpreso, Arcaent – Iairos voltou a falar. – Não sabia que levaram você para virar um deles.

— Não é muito conhecido, mas todas as crianças levadas são feiticeiras.

— Então existem muitos de vocês – Liserli comentou, observando com um sorriso mais educado do que sincero enquanto Elyn terminava a trança de Kasja. – Todo mundo conhece uma família que teve uma criança raptada. Se são todas feiticeiras…

Elyn tinha outra hipótese para isso, mas preferiu não responder com Asra e Kasja presentes. Assim como feiticeiros não eram perversos apenas por possuírem magia, as pessoas não eram santas apenas por não possuírem magia. Era muito fácil que um crime contra uma criança fosse disfarçado com a desculpa de que os feiticeiros a tinham levado embora.

O jantar seguiu quase como um interrogatório. Primeiro Arcaent, querendo saber como a família tinha vivido todos aqueles anos. Depois Iairos, igualmente curioso. Arcaent não entrou em detalhes sobre o período em Yrilla, mas contou sobre como tinha conhecido Elyn, evitando as partes violentas por causa das meninas. Os olhos de Asra brilharam ainda mais quando voltou para Elyn, perguntando:

— Você é uma princesa de verdade?

— Sou sim – sorriu, achando divertida a empolgação dela.

— Mas você não tem tiara!

— Eu tinha seis!

— E não trouxe nenhuma? Eu não acredito! – Asra voltou para perto da mesa quando a mãe repreendeu sua resposta. Kasja, por outro lado, queria ouvir mais detalhes.

— Você fugiu por causa do tio Arcaent? Que romântico, parece uma história!

Elyn não disse que já tinha fugido antes de conhecer Arcaent. Tudo o que Kasja queria era ouvir uma história digna das canções, então escolheu manter essa linha. Não precisava despejar sobre a criança todo o problema com a sua família.

.

Arcaent observava a paisagem tranquila da noite, que, com o fim da nevasca, parecia que o próprio tempo estava congelado. Contrariando a calma que via além da janela, ouvia a discussão sussurrada entre Iairos e Liserli, em outro cômodo. As meninas já tinham se recolhido há horas e Elyn dormia enrolada em mantos perto da lareira. O casal devia pensar que todos já estavam dormindo.

— Você deveria ter me perguntado antes… – Liserli disse. – Sei que ele é seu irmão, mas você não o conhece.

— Queria que eu tivesse mandado eles de volta para a neve?

— Não… Eu só não sei se é uma boa ideia…

A discussão não se estendeu muito. Iairos e Liserli pareciam um casal muito equilibrado, e em poucas palavras eles se calaram. Liserli subiu as escadas, mas Iairos permaneceu na copa por mais tempo, e quando finalmente saiu, pareceu surpreso ao ver Arcaent acordado.

— Você ouviu tudo, não? Desculpe por isso…

— Não se desculpe. É compreensível.

Iairos suspirou, cansado, sentando-se perto dele, e cruzou os braços encarando a vista além da janela. Vendo que Elyn estava dormindo, falou em voz baixa:

— Sabe, eu não esperava mais que você voltasse… Você era tão pequeno que pensei que teria esquecido da gente. – Arcaent apenas ouviu. Antes ele dizia que não tinha motivos para voltar, mas agora sentia vergonha de já ter pensado assim. Então Iairos olhou para ele, hesitante. – Eu não vou me arrepender disso, vou? – Arcaent não entendeu de imediato. – Desculpe perguntar isso… Mas nossa família já sofreu por causa de feiticeiros antes. Você não vai fazer eu me arrepender de ter deixado vocês entrarem, não é? Eu vou confiar em você, mas preciso ouvir primeiro.

— Iairos, eu jamais faria alguém passar pelo que passamos. Muito menos a sua família.

Iairos abriu um sorriso sincero e, pela primeira vez, livre de qualquer preocupação.

— Que bom que voltou – respondeu, levantando-se. – Até amanhã, irmão.

Arcaent esperou que ele subisse as escadas, então deixou a janela e se deitou ao lado de Elyn. Mesmo cuidadoso para não despertá-la, Elyn virou para seu lado, abrindo preguiçosamente os olhos.

— Já é de manhã…?

Arcaent roçou os dedos em seu rosto, a carícia provocando um sorriso sonolento.

— Eu lhe devo tanto, minha estrela… – Elyn franziu as sobrancelhas, sem entender. – Por me fazer vir até aqui.

— O quê? – Ela levantou o rosto, o olhar um pouco mais desperto. – Não me deve nada, Arcen. Quando fugimos, deixei meu irmão para trás. Nada me deixaria feliz do que você poder reencontrar o seu.

.

O dia seguinte trouxe responsabilidades. Como a fazenda estava parada pelo inverno, Iairos precisava ir até Yaz para repor a despensa, convidando Arcaent para ajudar. As meninas também ficaram empolgadas, adoravam ir até a cidade.

— Você não, Kasja, vou precisar de ajuda – disse Liserli, deixando a mais velha desanimada.

— Ah, deixe ela ir, eu lhe ajudo por aqui! – Elyn sugeriu, e apesar da relutância, Liserli aceitou. Arcaent a puxou para o canto antes de sair.

— Então você não vem com a gente?

— Não se preocupe comigo! Seu irmão esperou vinte anos para poder conversar com você, eu posso aguentar uma tarde.

Liserli não parecia confiar na ajuda que Elyn, criada como uma princesa, poderia oferecer nos deveres domésticos. E não estava completamente errada, pois teve que explicar algumas vezes o que precisava que Elyn fizesse. Coisas que Kasja, de 12 anos, sabia fazer. Mas notou que a anfitriã, antes cautelosa, parecia menos fechada agora.

Surpreendentemente, Elyn e Liserli se divertiram na companhia uma da outra. Almoçaram juntas rapidamente e continuaram com as tarefas. Ao anoitecer, estavam de volta à cozinha por causa do jantar.

— Eles chegaram. – Liserli deixou o lugar para ajudá-los a trazer as compras para dentro.

Elyn ouviu os risos distantes das meninas ao entrarem em casa, e pouco depois sentiu braços lhe envolverem por trás.

— Foi só uma tarde, Arcen… – brincou.

— Uma tarde é muito – ele sussurrou em seu ouvido.

Logo o jantar estava posto. Tinham arranjado dois bancos extras para que todos pudessem ficar à mesa.

— Vejo que trabalharam bastante – Iairos comentou para Liserli.

— Eu tive uma boa ajuda.

Arcaent devolveu o copo para a mesa, com um olhar incrédulo.

— Deixou Elyn ajudar na cozinha? Isso é um perigo… Nenhum acidente aconteceu? Eu ainda tenho a marca da queimadura!

Elyn lançou um olhar ofendido, mas não se defendeu. As meninas riram da provocação de Arcaent, e não deixaram um minuto de silêncio no jantar, fazendo perguntas sobre eles.

.

Elyn e Arcaent preparavam os cavalos.

— Têm certeza que não preferem ficar? – Iairos perguntou. Até Liserli, que com o passar das semanas reconheceu que seus receios eram infundados, aproximou-se.

— Não seria nenhum incômodo para nós.

De joelhos, Elyn conversava com as meninas no nível do rosto delas, tranquilizando-as sobre a despedida. Kasja e Asra estavam tristes com o fim da visita e, como os pais, insistiam para que ficassem mais um pouco.

Arcaent virou-se para o casal.

— Temos certeza. Nós conversamos. Ainda há muito para se ver em Teris. Mas obrigado por nos receberem.

Elyn se afastou das meninas e se despediu do casal, agradecendo pela hospitalidade. Montaram em seus cavalos.

— Só não demore outros vinte anos para aparecer de novo, Arc. – Iairos brincou, despedindo-se.

— Ah, nem se preocupe, eu não vou. É uma promessa.

Com o primeiro amanhecer da primavera, Elyn e Arcaent guiaram os cavalos para longe. Olharam para trás uma última vez antes de seguirem caminho, vendo Liserli e Kasja voltarem para dentro, enquanto Iairos começava as atividades da fazenda no início da boa estação, seguido por Asra que gostava de lhe fazer companhia.

Arcaent foi sincero em sua promessa. Com Elyn, tinha aprendido a amar a vida dos andarilhos, mas nada se comparava à sensação de ter pessoas queridas para quem voltar.


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Notas finais do capítulo

Esse é o penúltimo capítulo, gente!
Só por curiosidade, Elyn e Arcaent se conhecem há cerca de 6 meses. A história de Desarranjado, a drabble, acontece mais ou menos em dois meses. Mais dois meses da fuga da torre até os caps 5/6 de O Que Dizem de Nós. Um mês e meio de viagem para Yhriam e um mês em Yhriam procurando os Tsarin. Ou seja, eles se conhecem há seis meses, dos quais passaram 4 meses e meio viajando. (Acho que dá para contar o tempo que eles passaram com Iairos e Liserli como metade de um mês e arredondar esse tempo para 7 meses, então...)
Até o próximo!