O que dizem de nós. escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 4
Fantasmas na Torre


Notas iniciais do capítulo

ERRATA: No capítulo anterior, Arcaent apelidou Elyn de Rishtaren, mas foi um erro. O correto é Rishteran, que significa algo tipo "destino". Li errado minhas anotações e usei errado no texto kkkkkk
Música de hoje é Last Carnival (coloquem em loop pq os capítulos estão saindo maiores do que o esperado): https://www.youtube.com/watch?v=Tsr0l7T3XfA



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/797308/chapter/4

— Você não pode só dizer uma coisa daquelas e ir dormir!

Arcaent esfregou os olhos. Mesmo que os primeiros sinais do dia ainda despontassem entre as árvores, Elyn parecia bem desperta, enquanto ele preferia perder mais uns minutos deitado, encarando a copa das árvores ao redor deles.

— Preocupei você? Desculpe.

— Não me preocupou, mas com certeza fiquei curiosa. – Ela respondeu, atiçando a fogueira com um galho. Um pequeno quadrado de tecido aberto ao lado dela protegia alguma comida para a primeira refeição deles. Não era muito, mas, ainda assim, custava bastante dos suprimentos que tinham. Arcaent se aproximou da fogueira, pegando casualmente um pouco da comida. Estava faminto.

— Tirando a biblioteca, o que mais sinto falta é da minha cozinha…

— Hm…! – Elyn concordou energicamente, com a boca cheia. Engoliu o pão, antes de poder responder. – Se eu soubesse que viveríamos assim, teria feito você cozinhar mais vezes.

Arcaent revirou os olhos, com um sorriso convencido.

— Eu cozinhei todas as vezes, você no máximo sabia fazer um sanduíche.

Elyn estirou a língua, implicante. Arcaent sorriu. O clima descontraído era um alívio. Geralmente, já acordavam para cair na estrada sem sequer comer. Tinham aquela preocupação sobre as notícias de que estavam foragidos alcançarem as cidades à frente deles, então nunca desaceleravam a viagem, nunca aproveitavam por uma ou duas horas o lugar em que estavam antes de seguirem caminho. O que para Elyn era um tormento. Uma vez, quando perguntou a Arcaent porque ele cozinhava em vez de usar magia para preparar as refeições, recebeu uma resposta que não deu muita atenção no momento.

Apreciamos algumas atividades mais pelo processo que pelo resultado.” Ele cozinhava simplesmente porque gostava. Elyn sentia o mesmo nas estradas. Estar em uma jornada era muito mais inspirador e empolgante do que pensar em finalmente alcançar o destino.

— Já que não temos mais pressa, podemos desviar e ir até Sircell como você disse. Acho que ficaremos sem comida – falou. Elyn assentiu. – E sobre o que eu disse ontem, que Yrilla já não existia mais quando você descobriu ser uma feiticeira…

— Eu realmente não estou preocupada. Quero dizer, foi um pouco assustador pensar no que quase aconteceu? Foi. Mas não há nenhum risco agora. Só achei estranho. Lembro muito bem que eles se identificaram como mestres de Yrilla.

Elyn podia não estar preocupada, mas Arcaent achava inquietante. Duas pessoas mentindo sobre serem da Ilha dos Feiticeiros para conseguirem aprendizes… com que propósito? Estariam tentando reerguer Yrilla? Ou pertenciam à alguma Ordem alternativa? Ele não conhecia nenhuma organização de feiticeiros além de Yrilla.

— Bom… Que bom que seus pais não aceitaram, então, mesmo que por motivos não muito nobres. Talvez aqueles feiticeiros não fossem pessoas mal-intencionadas, mas começar tudo com uma mentira não é lá um bom sinal. Quem sabe o que poderia ter acontecido se tivessem eles tivessem levado você? – Elyn apenas assentiu. Terminando de comer, Arcaent limpou as mãos e se levantou. – Vamos?

— Não temos mais pressa, esqueceu?

— Não significa que devemos ficar parados em qualquer lugar.

Elyn fez um estalo com a língua, desdenhado de sua preocupação, e acenou para o chão ao lado dela.

— Sente aqui só por mais uns minutos, por favor. Sei que gosta de ver o sol nascer.

Arcaent se surpreendeu por Elyn ter percebido seu pequeno prazer, pois nunca lhe dissera que gostava de assistir ao amanhecer. Diante do pedido, permitiu-se relaxar um pouco. Sentou-se ao lado de Elyn, que entrelaçou a mão à dele e apoiou a cabeça em seu ombro. Observaram o dia chegar praticamente em silêncio. Um bom silêncio, tão agradável quanto as conversas que costumavam ter.

— Você quer perguntar algo. – Arcaent concluiu, quando, após recolherem os poucos pertences, montaram nos cavalos e voltaram à estrada. – Vá em frente.

Elyn pensou por um instante. Queria voltar ao assunto da noite anterior. Queria uma resposta sobre Yhriam, mas de maneira alguma o pressionaria. Então o questionou sobre outro assunto.

— Você disse que Yrilla caiu anos atrás, mas eu nunca ouvi falar disso. Como aconteceu?

Arcaent notou a pergunta oculta e se sentiu grato por Elyn não a ter feito em voz alta. Preferia não ter de reafirmar sua resposta. Porque havia dado uma resposta na noite anterior, e ela não mudara.

— Fomos atacados.

— Você estava lá, então? Foram atacados por quem?

Mesmo que não fosse o assunto pretendido, Elyn se interessava por aquele pedaço da história. E se perguntava quem em toda Teris poderia ter derrubado a Ilha dos Feiticeiros.

Sua curiosidade, porém, permaneceria insaciada. Arcaent inclinou a cabeça, sem jeito.

— Eu não sei.

— É brincadeira, né? Você estava lá!

— Se você perguntar a qualquer pessoa comum do seu reino com quem Ryioniss estava em guerra anos atrás, acha que ela saberia? Eu não estava prestando muita atenção. – Ele deu de ombros. – Os Mestres não eram muito abertos sobre as relações de Yrilla com o resto do continente. Claro, os aprendizes trocavam boatos sobre a “situação política” da ilha, mas eu estava ocupado demais para ouvi-los.

— Mas, pelos deuses, ocupado com o quê?! – Elyn se segurou para não rir, apesar de estar mesmo revoltada.

— Estudando. Tentando aprender a usar magia de transporte sem apagar por três dias. Mas… Eu lembro de ter ouvido entre sussurros dos outros aprendizes que os Mestres tinham provocado as surnul. Não sei se foi o motivo, mas é uma opção.

Surnul?

Arcaent esquecia que Elyn não estudava aquela língua há mais do que um mês.

Surnul são as “bruxas”. Nós, feiticeiros, somos yrnul.

— Qual a diferença?

— Sendo bem sincero, os yrnul não chegam à metade do que as surnul podem fazer. Se os sussurros forem verdade, a prova disso é o massacre que aconteceu em Yrilla.

— Você… via esse lugar como a sua casa, não?

— “Casa” não, mas minha origem. – Seus sentimentos sobre a Ilha dos Feiticeiros eram sempre confusos, como o de todos os que eram levados jovens para a ilha. De certa forma, tornavam-se quem eram por causa daquele lugar, mas tanto acontecia lá que tornava-se impossível vê-lo como um lar. Arcaent sabia que Elyn provavelmente escutara boatos sobre as coisas que eram feitas em Yrilla, e ele não podia dizer que eram todos mentiras. – Mas eu não quero desperdiçar minha manhã falando de Yrilla.

Elyn não insistiu. Nunca o forçaria a falar sobre algo se isso o deixasse desconfortável. Infelizmente, também não teria a resposta que realmente queria. Pelo menos, não por enquanto. Quando Arcaent quisesse conversar, então conversariam.

 

~*~

 

A cidade de Sircell realizava algum festival que ambos desconheciam. Alcançaram-na bem depois do anoitecer, e as luzes das fogueiras e a música dos artistas eram um guia que nunca enganava, ardendo à distância em meio a escuridão da noite como um coração pulsante, a única coisa viva em dezenas de quilômetros.

A ideia original era acamparem na floresta, como vinham fazendo, e só no dia seguinte irem à cidade comprar o que precisassem. Porém, vendo o olhar encantado de Elyn, ainda que Arcaent estivesse receoso com a movimentação excessiva de pessoas, não poderia negá-la alguns minutos no festival. Depois das últimas semanas, mereciam um descanso, e talvez também alguma diversão. Deixaram os cavalos com um cuidador e seguiram à pé até o pavilhão no centro da pequena cidade, onde os músicos animavam um grupo de pessoas em danças tradicionais. A diversidade das tendas ao redor oferecia de tudo: comida, entretenimento, e até artesanatos. Arcaent concluiu que o festival deveria ter começado cedo durante o dia, pois as barracas de comida estavam quase vazias.

— Relaxe, aqui está muito cheio para prestarem atenção em nós. – Mesmo com o braço entrelaçado ao seu, Elyn falou ao seu ouvido para superar a música, que não vinha apenas dos instrumentos, mas também do público cantarolando animado.

Ela estava certa. Mesmo levando o cajado do qual nunca se separava no boldrié em suas costas, as pessoas não perceberam a presença de um feiticeiro. Estavam entretidas demais para se preocuparem com forasteiros. Elyn logo comprou duas maçãs caramelizadas em uma barraca que ainda tinha alguns produtos. Depois de dias comendo apenas pão, queijo e o que mais conseguissem encontrar nas florestas, o doce foi um presente.

— Uau… Tem tanta coisa aqui. O que vamos ver primeiro?

— Você decide – respondeu Arcaent. – Passamos os últimos dias com apenas os estudos para nos entreter, então hoje faremos algo que você queira.

Os olhos de Elyn brilharam em animação quando ela uniu as mãos, pensativa. Observou o centro do pavilhão de onde vinha a música e um grupo aberto de pessoas dançavam. Elyn abriu um sorriso conspirador.

— Eu quero dançar.

Em contrapartida, Arcaent entreabriu os lábios, surpreso, e em seguida riu.

— Tudo bem! – E antes que Elyn pudesse comemorar a rápida aceitação, Arcaent virou-se para o grupo de pessoas. – Diz aí com quem você quer dançar. É só apontar que eu chamo a pessoa para você, porque comigo não vai ser.

— Eu quero com você, é claro.

— Não, não vai rolar.

— Não sabe dançar? Eu posso ensinar.

— Eu sei dançar – falou, e o brilho curioso no olhar de Elyn quase o fez se arrepender de ter revelado aquilo. – Só não gosto…

— Agora eu quero muito saber como você aprendeu – cortou, com um sorriso provocador. – Foi por uma garota? – Diante do silêncio, Elyn questionou novamente. – Um garoto, então?

Arcaent só revirou os olhos.

— Você não disse que ia dançar?

— Arcen! – reclamou, cruzando os braços. – Você disse: faremos algo que você queira. Eu quero dançar com você.

Ele espirou longamente.

— Você é uma dor de cabeça às vezes, sabia?

— Não tenho culpa, você é divertido de atormentar – respondeu com uma piscada brincalhona. – Mas não precisa dançar se realmente não quiser. Essa música não é de pares. Que tal assim: eu vou dançar agora e, se a próxima música for de par, você se junta a mim depois. O que acha? – Arcaent concordou. Era um pedido bastante razoável. Elyn continuou, com um sorriso convencido. – Então, por enquanto, não tire os olhos de mim, amor, porque eu danço muito bem.

Elyn lhe deu um rápido beijo na face antes de se afastar, mas Arcaent segurou sua mão.

— Você jamais precisará me pedir isso.

Assim como com os elogios, Elyn respondeu apenas com um sorriso, corando levemente, e, com isso, Arcaent a deixou ir. Ele recostou-se a uma árvore, observando-a correr para o grupo que dançava ao som da música festiva.

Arcaent não estava mentindo. Realmente não havia o que olhar além de Elyn. Ela logo entrou no grupo como se conhecesse aquelas pessoas desde sempre, com uma aura de empolgação encantadora, e não parou por um segundo, executando com elegância todos os passos daquela dança tradicional. Diferente dos demais, ela ainda improvisava em alguns momentos, adicionando rodopios graciosos ou pequenos saltos quando os passos tornavam-se muito simples. Elyn era a alma da dança, como se a música fluísse através dela com a beleza de alguém que não apenas fora ensinado a como acompanhar as notas, mas que realmente sentia a melodia. Mesmo que ela não tivesse lhe pedido, Arcaent não teria como desviar o olhar. Era a coisa mais bela que já presenciara, e com prazer ele passaria o resto da vida apenas observando-a dançar.

Arcaent logo não era mais o único a assistir. O próprio grupo abriu espaço, deixando-a livre para se mover como quisesse, enquanto batiam palmas ao ritmo da música, tão impressionados com sua destreza que sequer perceberam que ninguém ali a conhecia. E Elyn estava tão envolvida que não notara ser a única dançando, dominando a pista em que entrara de penetra. Até por fim, a música terminar, e, com uma expressão satisfeita, Elyn curvou-se ao ouvir as palmas do grupo animado. Mesmo mais distante, Arcaent aplaudiu também, desejando assistir novamente milhares de vezes. Felizmente, teria a vida inteira para vê-la dançar.

Outra música começou em seguida, e Elyn estreitou os olhos, desapontada. A música não era de pares. Afastou-se enquanto o grupo voltava a dançar, resmungando sua insatisfação.

— Você é muito sortudo.

— Eu sei – respondeu, mas não pelo motivo que Elyn pensava. Passou o braço sobre os ombros dela, puxando-a para perto, e voltaram a caminhar pelo festival.

— Está me devendo uma dança!

— E você pode cobrar quando quiser. Quando estivermos sozinhos.

A expectativa a deixou bastante satisfeita, e seria uma carta que guardaria para usar com sabedoria. Percebeu que dançar não era o problema, era a festa. Às vezes Elyn esquecia o quanto podiam ser diferentes, mas nunca insistia em nada que pudesse deixá-lo desconfortável, assim como ele nunca insistira para que ela deixasse de fazer qualquer coisa que a interessasse.

Uma jovem tentou vender alguns colares para Elyn, puxando-a para sua tenda, com os vários colares distribuídos por uma mesa, e Arcaent se deixou ficar um pouco para trás, observando o lugar. Ouviu quando a garota elogiou a joia no pescoço de Elyn, sem reconhecer que era uma pedra canalizadora de magia, e continuou insistindo para que Elyn provasse algum mesmo quando ela tentou recusar dizendo que não teria como comprar. Talvez Sircell, sendo uma cidade pequena esquecida na fronteira, não conhecesse tanto dos feiticeiros para reconhecê-los facilmente.

Arcaent saiu do caminho quando um grupo de crianças passou correndo, afastando-se do pavilhão barulhento dos músicos.

— Arcen! – Elyn o chamou, seguindo o mesmo caminho pelo qual as crianças haviam corrido. – Ali há um teatro de sombras, venha ver!

As crianças sentavam-se no chão, ávidas pela história que seria encenada no tecido branco diante do fogo. Elyn estava de pé, observando a apresentação sem se aproximar muito do público. Arcaent estranhou a expressão de surpresa em seu rosto, mas logo entendeu quando viu o desenho de uma torre feito de sombras no tecido.

— É a nossa história…?

— Não. É a história que eles dizem de nós.

— Aproximem-se! – gritou um homem no canto do pequeno palco, tentando atiçar mais público, mas contentou-se apenas com as crianças. – Aproximem-se, pois vamos viajar pela Tragédia de Ryioniss!

Arcaent não tinha certeza de que queria ouvir. Sabia como as histórias se espalhavam, principalmente em meio aos artistas desesperados por novos contos e fantasias para entreter um público que já conhecia todas as canções. Mas ele ficou. Observou surgir nas sombras a imagem de uma princesa e um guerreiro de mãos dadas. Arcaent sorriu de leve ao ver Elyn revirar os olhos em desagrado, pensando que apesar de todas as bobagens que ouviriam, a verdade seria um privilégio apenas deles dois.

— Tudo começou quando os reinos de Ryioniss e Prusvart firmaram sua união! – narrou o homem. – A Princesa de Ryioniss e o Príncipe de Prusvart, um adorável casal apaixonado: a mais bela das donzelas e o mais valente dos guerreiros. – Usando de algum artifício com o fogo, os artistas fizeram o tecido escurecer, enquanto outros faziam um fundo sonoro de tensão em instrumentos bastante rudimentares. As crianças aguardaram ansiosas, sabendo que histórias que começam bem não ficam assim por muito tempo, ou não seriam boas histórias. – Para a tragédia da Princesa de Ryioniss, tamanha virtude tornou-se uma maldição, pois atraiu o olhar da própria perversidade em forma humana: um Feiticeiro.

As crianças arquejaram quando a silhueta deformada que representava o Feiticeiro surgiu, separando a Princesa e o Príncipe, com as mãos estendidas um para o outro como dois amantes que sofriam a dor de uma separação forçada.

Cabisbaixa, Elyn não observava mais o teatro, muito menos olhava para Arcaent. Mesmo que ela o tivesse chamado para ver as sombras, agora que sabia o que apresentariam, sentia o impulso urgente de ir embora. Queria sair no meio daquela história e não ouvir mais uma palavra.

Por sua causa, o continente inteiro transformara Arcaent em um monstruoso vilão de contos de fadas. Se eram o que diziam deles, o que isso faria de Arcaent? Ninguém jamais o veria da forma que ela o via, ninguém jamais se importaria em conhecê-lo, porque ele era aquele monstro nas sombras do teatro, que separara cruelmente um casal apaixonado. Elyn sentiu a garganta arder com a culpa e as luzes atrás do teatro desfocaram quando seus olhos marejaram, mas ela não se permitiu chorar. A última coisa que queria era Arcaent preocupado e tentando consolá-la, quando havia sido ela quem destruíra sua vida.

— À primeira vista, o Feiticeiro apaixonou-se perdidamente pela Princesa.

— Essa parte é verdade – sussurrou Arcaent com um sorriso gentil, segurando sua mão, pois percebera a mudança de humor de Elyn, que revirou os olhos com o gracejo, mas deu um riso fraco.

— Que mentira, foi no mínimo à trigésima vista…

— Porém, a paixão do Feiticeiro jamais seria retribuída pela donzela. A raça dos Feiticeiros não merece nada de puro. Recusado pela Princesa, o Feiticeiro decidiu tomá-la.

Elyn suspirou e soltou a mão de Arcaent, recuando alguns passos.

— Eu não quero ouvir isso…

— Espere, Rishteran. – Ele a alcançou em alguns passos, mal haviam se distanciado do teatro, mas ainda que conseguissem ouvir o apresentador, não mais prestavam atenção. – Qual é o problema?

Ela balançou a cabeça, sem responder. Como ele ainda perguntava? Levantou o rosto e o encarou, ainda em silêncio, como se ele pudesse ler seus sentimentos. Sustentaram aquele olhar cruzado por alguns segundos, então Elyn desviou a atenção para algo em seu rosto, revelando por um instante aquela angústia escondida. Elyn ergueu hesitantemente a mão, e Arcaent sentiu seus dedos roçarem a pele quase cicatrizada da queimadura.

Arcaent soltou o ar, compreendendo o motivo de sua aflição. Afastou delicadamente a mão, deslizando o dedo em seu pulso.

— Precisa parar com isso, Elyn – murmurou, entristecido. – Não foi culpa sua.

— Você quase morreu… – O tom era tão baixo que, entre a música não tão distante e o teatro próximo, Arcaent quase não a ouviu. O olhar baixo não mais o encarava. – Como pode não ter sido culpa minha? Você quase morreu por causa daquela ideia estúpida…

— Você não me forçou a ajudá-la. Eu sabia que algo assim poderia acontecer quando permiti que ficasse na torre. Eu permiti. Eu aceitei. É um segredo, Rish, mas eu adoro ideias estúpidas.

Elyn lançou um olhar para o teatro e a imagem projetada da torre do feiticeiro.

— Eu destruí sua vida…

— Eu não tinha vida. Eu tinha uma prisão que fiz para mim mesmo sem perceber. Você sabe disso.

Nossas prisões estão ruindo, Arcaent.” Ela disse, quando a fuga tornou-se a única opção viável para os dois. Ela disse com um alívio oculto, como se apenas pudesse respirar novamente se nada a prendesse às terras de Ryioniss. “Estamos livres, vamos embora!

Mas para ele, era um pouco assustador. Mesmo que reconhecesse a verdade que ela dizia, se defendeu: “Não era uma prisão, era meu lar.

Era uma mentira. A torre queimou, a prisão ruiu. E assim como Elyn, agora ele respirava aliviado. E, ao contrário de todos os outros prazeres que vinha experimentando desde que aquela princesa impetuosa invadira sua torre pela janela, aquela sensação era por mais do que apenas a companhia. Arcaent respirava porque estava livre.

Ele ainda segurava sua mão e aproximou-se envolvendo-a em um abraço, que ela imediatamente retribuiu afundando o rosto em seu peito.

— Deixar aquele lugar foi a melhor coisa que já fiz. Eu deveria agradecer-lhe. – Ele sussurrou em seu ouvido. – Não se importe com as histórias que vamos ouvir, Rish. A verdade pertence a nós.

Ela meneou a cabeça, assentindo. Permaneceram naquele abraço por alguns instantes, sem muita intenção de se afastarem, mas as exclamações das crianças atraíram sua atenção. Por um momento, pensaram que podiam ter sido reconhecidos como feiticeiros, mas não. Era apenas a reação de um público bastante envolvido com a peça.

— Eles também mudaram o final… – Elyn constatou, observando a silhueta da torre destruída. Na peça, todos haviam morrido. O Feiticeiro assassinara o Príncipe que viera resgatar a noiva e também a Princesa que não se entregara a ele, e o exército incendiava a torre com ele dentro, eliminando aquele mal. Uma verdadeira tragédia, do tipo que as pessoas adoravam ouvir e espalhar. Aquilo a deixou mal, mas pensou no que Arcaent dissera. A verdade pertencia a eles e, dessa forma, talvez um dia aquela peça se tornasse uma piada para os dois.

O apresentador continuou falando sobre como as ruínas da torre haviam se tornado assombradas, impregnadas com toda a magia perversa do Feiticeiro, condenando os envolvidos à existência sobrenatural de fantasmas apegados ao lugar de sua tragédia.

— Parece que somos fantasmas agora – disse Elyn, e, de alguma forma, conseguiu sorrir. – Ninguém persegue fantasmas, não é?

— Acho que sempre fomos fantasmas.

A peça havia acabado, mas Arcaent ainda contemplava o tecido estendido no palco, mesmo que as sombras já tivessem sido recolhidas. O pensamento de Elyn não estava muito longe da verdade. Aos 16, ela tornara-se um espectro incômodo para a própria família quando sem querer fez uma flor seca voltar a vida com seu toque. Porque era uma feiticeira, foi ignorada e desprezada pelo risco que representava à imagem da família real de Ryioniss. Passou os seis anos seguintes assombrando seu castelo, sendo discreta e compreensiva com todos os receios de seus pais, resignando-se em não ser aquilo que era. Até ver que nunca seria suficiente. Quando a proposta do casamento foi feita, uma desculpa arcaica para mandá-la embora de Ryioniss, Elyn percebeu que por mais que fingisse não ser uma feiticeira, ela era, e seus pais jamais enxergariam outra coisa. Então fugiu.

Já Arcaent era um fantasma de uma forma diferente da dela. Arcaent era aquele que estava ausente. Aquele por quem a família havia chorado a perda como se estivesse morto. Será que havia um lugar vazio à mesa pelo filho perdido? Será que seus pais e seu irmão ainda pensavam nele com a tristeza de um ente perdido? Esperava que não.Talvez fosse frieza de sua parte, mas Arcaent torcia para que tivesse sido esquecido, torcia para que sua família pensasse na sua ida como uma mera fatalidade, algo que aconteceria independentemente de seus esforços, e que não tivessem sofrido por tanto tempo após sua partida. Mas se mesmo Arcaent não havia esquecido, era improvável que sua família o houvesse feito.

Não era saudade o que sentia, não exatamente, mas a vontade de saber o que tinha sido tomado dele agora falava mais alto.

— Elyn…

— Sim?

— Eu acho… Acho que quero ir para Yhriam.

Quando voltou o olhar para ela, viu a leve surpresa em seu rosto dar lugar a um sorriso aliviado. Elyn estava esperando por aquela resposta, e percebeu que reencontrar sua família era algo importante para ela também. Ela o abraçou, os braços em volta de seu pescoço e o rosto repousando em seu ombro em um gesto de apoio.

— Então nós vamos, Arcen. Vamos para Yhriam.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Às vezes eu acho que escrevo muita besteira aleatória na história, tipo isso dos yrnul e surnul não precisava aparecer agora, mas quem liga, né? kkkkk "Yrnul" significa "feiticeiros", e sempre que vocês virem "yr" ou "yrn" em alguma palavra, provavelmente tem a ver com feiticeiros também, tipo Yrilla, a Ilha dos Feiticeiros.
Esse foi o maior capítulo até agora, quase 4 mil palavras, e essa é oficialmente a metade da fic, que terminará no capítulo 8.
E... o Arcaent decidiu que quer reencontrar a família *-*
Não se preocupem, ele ainda vai dançar com a Elyn sim kkkkkk
Obrigada por ler e até o próximo capítulo! ♥