Sob suas asas escrita por annaoneannatwo, Kacchako Project


Capítulo 9
Aquilo que é real




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    Ochako nunca engoliu papel, mas tem a sensação de que tem uma bola amassada presa em sua garganta cada vez que ela engole saliva. Não dói nem nada, mas é incômodo. A médica lhe examinou e pediu que ela fizesse sinais com as mãos para responder às perguntas dela, recomendando que não se esforçasse muito para falar naquele momento. A garota concordou e foi respondendo com acenos de cabeça. Sim, ela se lembrava de tudo. Não, não estava com dificuldade para respirar. Sim, a garganta estava raspando. A doutora concluiu que ela estava bem, só precisava descansar mesmo.

    Um enfermeiro veio checá-la e ligou a TV para ela, e Ochako não conteve um pequeno “oh!” de surpresa ao ver o Hawks e o Bakugou na TV. Não importa o quão normal aparecer no noticiário se torne em alguns anos, ela sempre se surpreende em ver pessoas conhecidas sob essa luz.

    A luz sob a qual o Bakugou se encontra, então, é particularmente mais surpreendente. Assim que se dá conta de que o assunto da entrevista coletiva dos dois heróis é ela, Ochako não consegue desgrudar os olhos da tela. Ver a si mesma sob as lentes das câmeras sempre causa uma certa estranheza, por vezes ela não se reconhece. Agora o mesmo efeito acomete o Bakugou, porque ele parece uma pessoa bem diferente, e nem é só porque está com a testa exposta, o que é uma imagem rara, é a expressão dele.

O garoto parece… exausto. Não que ele esteja acabado em frente às câmeras, mas tem uma certa profundidade nos olhos cor de rubi que Ochako não se lembra de ter visto antes. O Bakugou está sério, mas não carrancudo, não é nem mesmo uma expressão fechada, ele só parece mais… sóbrio. Com o Hawks ao fundo do vídeo, também com uma feição mais séria, porém aparentemente mais tranquila, seu colega de sala parece muito mais velho que o herói profissional.

É uma cena curiosa e fascinante, e ela poderia ficar observando-o e encontrando novos detalhes por muito tempo, mas então o Bakugou começa a falar. A voz áspera como sempre diz coisas que ela jamais esperava ouvir dele.

“Vou trabalhar todo dia pra ser um herói que não protege só vocês, mas outros heróis também, é o que ela acredita, é o que esse cara deve acreditar, e é no que eu preciso acreditar. Tem muita gente por aí com dificuldade de ver que a gente também é humano, então podem olhar bem pra minha cara se ainda tiver dúvida, porque eu tô aqui preocupado pra um caralho como qualquer pessoa que se importa estaria.”

Ele parece tenso, mas não é nervosismo por estar diante da imprensa, dá pra perceber. Também não é constrangimento por ter dito o que disse, já que o garoto apresenta absoluta convicção em suas palavras. É o que se espera do Bakugou, autenticidade nunca faltou a ele, mas saber que é a ela a quem ele se refere nesse tom tão angustiado lhe traz uma sensação estranha. Um estranho bem bom, na verdade.

—  Viu? Seu amigo está te defendendo e tranquilizando os repórteres lá fora, mais um motivo para você se sentir melhor. —  o enfermeiro sorriu gentilmente —  Está com fome? A doutora disse que você podia comer gelatina ou sopa, o que prefere? —  Ochako sussurrou “gelatina”, não gostando da dificuldade que sentiu em proferir a palavra —  Tudo bem, já vou buscar.

Ela continuou assistindo à coletiva, agora observando o Hawks dar alguns breves detalhes sobre o caso. Ele não deve poder falar muito, já que por enquanto está tudo sob investigação na polícia, mas é função do herói acalmar a todos e garantir que isso foi um problema isolado, não é um indicativo de insurgências terroristas nem nada disso. É o que o Hawks faz, pegando-a também de surpresa ao mencionar algumas das coisas que o responsável pelos incidentes com o trem disse sobre o porquê de ter feito o que fez. 

—  A marginalização de pessoas não é só social, é geográfica também. Há muito mais oportunidades e recursos para quem mora em metrópoles e grandes centros. Eu sei bem disso porque nasci no subúrbio de Fukuoka, só fui ouvir falar de heróis quando tinha uns 7, 8 anos, e a polícia não passava confiança, dava medo, na verdade. Não tô aqui defendendo o responsável por esses incidentes, mas eu queria que vocês entendessem e levassem isso em consideração quando forem abordar essa história, é muito mais complicado do que mocinho prendendo vilão, pessoal.

O Hawks segue respondendo a perguntas, ele também parece mais sério do que ela está acostumada, mas há uma certa leveza que não tinha no Bakugou, vai ver o herói alado procurou mudar o tom para não ficar aquela coisa agravante e dramática, ou talvez seja só o fato de que o Hawks não sente a mesma necessidade de provar alguma coisa. Ele é o herói número 2, desceu ao inferno e voltou há alguns anos, sempre terá quem desconfie de sua postura e de seu caráter, mas ele mesmo já assumiu seus erros, parece conviver pacificamente com isso e, como a jornalista com quem almoçaram naquele dia disse, ele é alguém confiante e muito certo de seus posicionamentos, talvez porque não precise ter medo de como vai repercutir. O pior que podia acontecer com o Hawks já aconteceu, só lhe resta ser honesto consigo mesmo e consequentemente, com os outros.

 Apesar de nunca ter passado por nada parecido, Ochako pensa como seria canalizar essa energia. Seu mentor não é exatamente polido, mas é sempre agradável assistir-lhe dando entrevistas, ele é carismático e passa confiança mesmo quando diz verdades que podem ser um pouco brutais demais, não tendo medo de se comprometer e assumindo tudo que diz. Ela queria ser assim, a garota sente que também passa uma sensação agradável, mas não consegue ser tão honesta quanto ele, dando preferência a dizer o que acha que as pessoas esperam ouvir nesses tempos tão incertos,  vai ver é essa “falsidade” que o Bakugou percebeu e que o incomoda. Ele pode não ser tão simpático como ela, mas é autêntico à sua visão assim como o Hawks. No fim, dá pra entender porque eles estão sob mentoria do herói alado, ambos se complementam no que falta ao outro, e o Hawks está ali como modelo para mostrar-lhes o que é um herói completo, o que eles podem ser caso aprendam um com o outro.

E então, como que por invocação, o Bakugou aparece na porta do quarto, ele parece surpreso em vê-la acordada, chegando a parar de andar para olhá-la como se estivesse diante de uma assombração. Mais uma expressão pra essa inusitada coleção que Ochako vem criando na memória de “caras que ela nunca esperou ver esse garoto fazer”.

Ele fica parado ali na porta com olhos arregalados e mãos tensas, será que ninguém falou pra ele qual era o estado dela e o fez pensar que ela estava à beira da morte? E estar acordada assim faz o garoto achar que está diante de um milagre ou algo assim? Não, mas foi o próprio Bakugou quem explicou o estado de saúde dela para a imprensa, ora, ele sabe que estava tudo bem e ela acordar era só uma questão de algumas horas.

Não sabendo porque ele parece tão atônito e ficando um pouco desconfortável com o silêncio, Ochako quer muito falar alguma coisa, mas a garganta não deixa, então ela só ergue a mão e dá um aceno tímido, sorrindo. Ele talvez não veja porque ela ainda está com o respirador cobrindo a metade de baixo de seu rosto, então continua acenando pra assegurar que está tudo bem.

—  Faz muito tempo que você acordou? —  ele pergunta depois de um tempo, retomando sua postura e olhando-a como se não confiasse no que está vendo. 

Ochako faz “não” com a cabeça, também se sentindo meio na necessidade de manter certa guarda perto dele, sabe-se lá o porquê 

—  Você viu a entrevista? —  

Ela faz que “sim” 

—  Tsk, nada a ver me perguntarem o que eu tava sentindo, quem liga pra isso? É você que tá internada!

Ela... não tem gesto ou movimento para responder a isso, então só acena levemente com a cabeça e volta sua atenção para a TV novamente, na qual ainda dá pra ver o Hawks sendo entrevistado.

—  Ele avisou pros seus velhos antes de eu divulgar seu estado de saúde na TV, pode ficar tranquila, seus pais não ficaram sabendo como você tá através de mim numa entrevista de merda.

Ela arregala os olhos, querendo muito perguntar se ele sabe sobre a reação dos pais dela, Ochako também quer dizer que o garoto não deu uma “entrevista de merda”. Até onde ela viu, ele estava ótimo. Não podendo expressar nada disso em palavras, ela só balança as mãos freneticamente.

—  Qual foi? Por que você não tá falando nada? —  ele franze o cenho e se aproxima, medindo-a mais de perto. Ela não sabe como reagir com a proximidade súbita, ainda estranhando como ele fica diferente com a testa exposta desse jeito. O jeito dela de encará-lo deve ser bem esquisito, porque no segundo seguinte o garoto se afasta, aparentemente sem jeito —  Foi mal, eu não quis… eu não ia fazer aquilo de novo, se é o que você tá pensando.

Ela pisca os olhos em confusão. “Aquilo?” O que é aquilo e por que ela pensaria que ele vai fazer de novo, seja lá o que “aquilo” for?

—  Eu não sou nenhum tarado e não fiz pra… pra me aproveitar de você, falou? Você tava asfixiando, tinha um balde d’água ali do lado e eu precisava te dar, não tinha nada pra usar de concha e minha mão tava suja de nitroglicerina, aí foi… foi do jeito que foi.

Ochako segue observando-o sem entender nada, ele parece muito perturbado com o que quer que seja do que está falando, e ela quer dizer que está tudo bem mas, para isso, precisaria… entender o que está acontecendo.

—  Que foi? Não acredita? Eu tô falando sério, você não me viu na entrevista? Eu não tava mentindo, não! Eu fiquei… você deitada aí me deixou… foi uma merda! Então nem vem com essa, porque eu não sou de mentir! Não foi um beijo de verdade, eu só tava te dando água do único jeito que eu tinha, nem falei nada na entrevista sobre isso porque não tem nada a ver ficar falando disso e também pra não te deixar com vergonha, então porra, quer parar de ficar aí me olhando sem falar nada e… brigar comigo logo, se é o que você quer?

B-beijo? Que história é essa de beijo e por que ele…? Por que o Bakugou está pedindo desculpas (no jeito dele) por tê-la beijado? O que aconteceu enquanto Ochako estava inconsciente? Isso não…

Oh…

Uma memória lhe corre pela cabeça como um flash, água descendo por sua garganta, o cheiro de algo parecido com caramelo queimado, um rosto muito próximo do seu… era o rosto do Bakugou, foi a última coisa que ela lembra de ter visto antes de desmaiar. O colega a socorreu após aquela explosão de gás, não fosse por isso, ela teria ficado inconsciente ainda dentro da casa, sendo consumida pelo fogo junto da construção… ele a salvou! Tirou-lhe de lá e a reanimou o suficiente para ela não apagar na hora, ele deu água pra ela… com a boca! Ochako sente as bochechas queimarem, dando-se conta do que acabou acontecendo para que ele pudesse salvá-la. Ele… ela… eles…

—  Aqui, Uraraka-san! —  alheio à grande revelação, o enfermeiro retorna ao quarto com um copinho de gelatina, fazendo com que o Bakugou se afaste e lhe dê as costas —  Peguei uma das mais molinhas pra você não ter dificuldade em engolir, mas vai com calma, tá bom? Não se esforce e… —  ele nota o Bakugou —  ...não tente conversar, por enquanto. Se precisar de alguma coisa, só chamar. —  ele a ajuda a tirar o respirador e puxar a bandeja acoplada à lateral da maca para que ela possa comer tendo no que se apoiar.

O garoto arregala os olhos e a encara, de repente se dando conta do porquê de ela não ter sido capaz de responder ao desabafo. Ele achou que ela… que ela estava dando um gelo nele por causa daquilo? Ochako mal se lembrava do que tinha acontecido! Só se recordou um pouco porque ele lhe contou, e a lembrança dela é muito mais relacionada à sensação da água em sua garganta do que do… do beijo que eles… trocaram. 

Bom, se ela não consegue responder com palavras, não tem como ele saber nada disso, então é óbvio que esteja tão consternado quanto a isso. O Bakugou não quer que ela pense que o tal beijo foi algo que fez simplesmente porque deu vontade, e sim um fruto das circunstâncias, Ochako entenderia isso mesmo se ele não tivesse se dado ao trabalho de explicar. Seja como for, é curioso o fato de ele se preocupar com isso tão fervorosamente. Até onde ela sabe, ou acha que sabia, o Bakugou não se importa com o que ela pensa dele, não é?

Isso a faz sorrir. Não, é claro que ele se importa. Ficou bem claro pelo que ele disse na entrevista coletiva, e ainda mais claro pelo jeito que está se portando agora. Não é só uma questão de não passar a imagem de um pervertido ou qualquer coisa do tipo, ele realmente não quer que ela deturpe o que pensa dele assim.

—  Tá doendo? —  ele pergunta, observando-a ajustar a postura e pegar a colher para comer a gelatina. É verdinha, deve ser de limão ou de maçã verde.

Ochako faz que “não” com a cabeça, flexionando os dedos próximos ao pescoço para simbolizar o fato de que está “arranhando”. Ele parece entender, ainda encarando-a.

—  E você vai ficar sem falar por quanto tempo?

Ela balança a cabeça, indicando que não sabe.

—  Tsk, você vai ficar louca sem poder falar nada. —  ele balança a cabeça, abrindo um sorriso torto quando ela o olha com tédio, tentando exprimir um “não, você é que ficaria louco se não pudesse conversar e gritar sabe-se lá por quanto tempo”, a julgar pela risada dele, o garoto entendeu isso mesmo —  Então você não tá puta comigo?

Ela nega mais uma vez, agora olhando-o seriamente. Mesmo se tivesse qualquer problema com o… método dele de ter fornecido a água que a impediu de sufocar completamente, é claro que ela não ficaria brava com ele, o Bakugou foi tão… não há dúvida de que fez o que estava ao seu alcance naquele momento, e ela aprecia isso imensamente. Ochako tenta passar isso com seu olhar, mantendo uma expressão serena para indicar que longe de estar brava, ela está muito agradecida.

Sim, é assim que ela prefere pensar: manter uma abordagem profissional e não ficar cismada com o que foi seu primeiro beijo de língua na vida.

***

É só o tempo de ela abrir a porta, e Keigo se inclina para apoiar a cabeça no ombro dela. A repórter não o afasta, mas se mantém rígida, o único indicativo de suas verdadeiras emoções são os batimentos cardíacos acelerados captados pelas penas nas asas dele.

—  Eu vi a entrevista. —  ela diz suavemente.

—  É? O que achou?

—  Nada mal. 

—  Sim, eu nem fiz nada demais, mas o garoto parece ter aprendido alguma coisa, parecia uma pessoa completamente difer-

—  Não tô falando dele, tô falando de você. —  ela ergue a mão e acaricia os cabelos dele —  Você foi ótimo.

—  Ah, aquilo… —  ele dá uma risadinha, aceitando o toque dela —  Eu só disse o que tinha que ser dito.

—  Sim, eu gosto quando você faz o que só você pode fazer. —  Keigo circula a cintura dela, abraçando-a —  Está tudo bem com os dois?

—  Ora, está preocupada com eles? Achei que você não gostasse de crianças. —  mesmo exausto, ele não resiste à vontade de provocá-la um pouco.

—  Não seja ridículo. —  ela tenta se soltar, Keigo a prende com as asas para que não escape.

—  A Uravity vai ficar sem uns dias sem conversar, mas está bem. O Dynamight… você viu, não? Ele estava ótimo.

—  E você quer mesmo me convencer que não fez quase nada para que ele melhorasse tanto?

—  Mas é verdade! Acho que não tô ensinando nada que eles já não soubessem no fundo, quem aprendeu alguma coisa na verdade fui eu…

—  Ah é? O quê?

— Eles são tão jovens, tão preocupados em não serem falsos, isso me faz lembrar que eu preciso valorizar o que tenho de verdadeiro. —  ele a aperta mais, as penas detectam o efeito dessas palavras nela —  Eu gosto de ser o Hawks, mas… acho que prefiro estar com quem me vê só como Keigo às vezes.

—  Hum, só “às vezes”?

—  Haha, são muitas vezes, muitas mesmo. —  ele suspira —  Posso dormir aqui hoje?

—  Você não precisa pedir, não é como se eu fosse te expulsar se você pegasse no sono na minha cama. —  ela suspira, até que por fim o abraça de volta —  Fica à vontade.

Esse é um dos raros momentos em que ele realmente está.


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Notas finais do capítulo

Vou falar que eu sempre quis escrever uma cena de diálogo que um dos personagens não consegue falar por algum motivo hajahshshshsg
Ai ai, sei que nem parece porque essa fic não tá assim tão empolgante, mas o último capítulo é o último.
Obrigada por ler e até breve!



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