Sacrifícios escrita por Shalashaska


Capítulo 3
Laços


Notas iniciais do capítulo

Aqui vai um agradecimento por todo mundo que veio acompanhar essa fic nova! Fiquei toda boba com essa recepção incrível, então me empenhei em soltar um capítulo mais longo! Obrigada de coração! E é claro, aqui vai um agradecimento especial a quem comentou, a madiejasper, Elladora, Cat e Nath Weyes!



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24/09/2020

Redondezas de Novi Grad.

12:57

Tudo passava por Pietro Maximoff como um mero vislumbre embaçado, cortando-lhe a visão para então desaparecer atrás de si enquanto corria. Árvores, grama, uma ou outra casa. Ele sentia o coração bombeando forte dentro de seu peito, a dor em suas coxas e tornozelos pelo esforço de movimentar-se assim, após tanto tempo parado. Tempo morto. Sua garganta apertava-se enquanto ele fazia força para não chorar mais, para manter o olhar atento e não cair. Era uma tarefa absurda, ele sabia.

Impossível.

O atrito contra o ar lhe castigava o corpo, aquele vento frio do Outono que um dia ele simultaneamente aprendeu a admirar e temer. A estação era bela, as cores fascinantes. Sua irmã apreciava a época, mas… Foi  sempre o período em que Pietro preocupava-se com seu sustento, que não passasse frio, pois logo viria o Inverno. As coisas não eram ótimas no orfanato e ficaram ainda piores quando saíram de lá.  No entanto, o conforto de sua gêmea não seria mais uma coisa a se pensar... E tal constatação lhe dilacerava por dentro. Seu ritmo veloz levantou as folhas amareladas e laranjas no chão, seus pés guiando-lhe sozinhos. Não reconhecia mais aquela terra, embora pudesse ver à distância a Montanha Wundagore. Tudo o que ele podia fazer naquele momento era correr.

As palavras daquele homem, Magneto, ainda ecoavam em seus ouvidos, porém. Cada palavra, cada tom e expressão pareciam acorrentar os tornozelos de Pietro e puxá-lo não só a um passado que não lhe pertencia, como também em direção a um futuro oco. Ele disse muitas coisas, conversaram. Agora, só fragmentos rasgavam seus pensamentos.

Tudo o que sabe sobre si mesmo está… Errado.

Você e sua irmã são mutantes. O gene X foi ativado durante os experimentos. Há documentos da HYDRA confirmando tal coisa e… O parentesco de vocês dois.

Entendo, rapaz. Wanda teve a mesma confusão, mas no fundo ela sentia. Sabia. Talvez fosse seu coração, talvez seus poderes. 

O meu nome é Erik Lensherr, mas nem sempre me chamei assim. Quando nasci, eu era Max Eisenhardt. Depois de Auschwitz, adotei o nome de Magnus. Troquei o nome de novo quando minha filha mais velha morreu num ataque à minha casa. Matei todos os responsáveis naquela noite. Minha esposa, Magda, sumiu.

 

Ela era sua mãe. E eu sou seu pai.

Magneto sorriu levemente e ergueu uma sobrancelha quando o ouviu xingar, negar tudo. Era uma expressão que Pietro via no espelho, embora dotada também de um silêncio que Wanda carregava. Ele lhe contou sobre como permaneceu numa câmara criogênica, como despertou e qual era o papel de Natalya Maximoff ao salvar os gêmeos e dá-los à Django e Marya. Tudo era um absurdo, é claro. Uma realidade distorcida. E mesmo assim, não era a pior questão que Pietro queria ver respondida. Qual era o ano presente? Onde estava Wanda?

Estamos em 2020.

E Wanda…

Wanda está morta.

Pietro tropeçou e, devido a velocidade em que se encontrava, estatelou-se na grama por alguns metros até parar com o rosto colado ao solo. Não houve pressa em se levantar. Só retraiu o corpo e, ainda ajoelhado no chão, pôs se a chorar de novo. Sua roupa tinha sujado-se com a queda, suas mãos ainda estavam tingidas do sangue do Steve Rogers. Mais uma vez, o sokoviano sentiu nitidamente o chão faltar abaixo de si e tudo mais parecia também desvanecer. Se o mundo antes sempre foi lento demais para Pietro, agora o universo já não fazia mais sentido e tinha tirado-lhe a gravidade que o mantinha preso à Terra.

Wanda.

Seu lamento era patético, misturado com ódio e com sua voz embargada a falar coisas ininteligíveis. Ele disse “não” várias vezes, para ninguém específico. Amaldiçoou Erik e Natalya, por terem feito o que fizeram — separando-lhe de sua gêmea na morte. Queria que o ar compreendesse sua súplica e retornasse o mundo como ele era, que restaurasse a cor vermelha ao seu lado. E então ele gritava, ensandecido, porque o mundo era indiferente a sua dor. O vento trazia ainda o cheiro adocicado de flores, as estações seguiam-se uma atrás da outra; morrendo para renascer de novo. Apenas sua irmã não voltaria.

Ergueu o tronco, sua garganta exausta e uma dor aguda pressionando suas têmporas. Ele piscou e piscou, ajustando sua visão marejada até entender onde se encontrava. Por fim, entendeu que seus pés tinham levado-lhe às proximidades da cratera de Novi Grad, agora coberta por um campo de flores azuis e vermelhas. Diante dele, havia uma pedra enorme rubra, um monumento. 

*Feiticeira Escarlate*

Filha amada

Amiga

Heroína

Vingadora 

Pietro não tinha motivos pra duvidar do homem, Erik Lensherr. Seu pai. Ele lhe contou fatos sobre a militância mutante, Genosha, Arnim Zola e Sentinelas. Contou sobre 2018, quando alienígenas buscaram as Jóias do Infinito e apagaram a metade da vida no Universo. De algum modo, sabia que ele estava certo, pois sentia algo faltando dentro de si. Algo que tinha se tornado cinzas e o monumento à sua frente era a prova.

Era 2020 e sua irmã estava morta.

Mais lágrimas escaparam de seus olhos, assim como mais lamentos saíram de sua boca. Segurou a própria cabeça com as duas mãos, na tentativa inútil de fazer aquilo doer menos, adquirir mais sentido ou propósito. Nada. As palavras de Magneto injetavam Pietro com desespero, desamparo.

Ele ainda podia se lembrar de uma noite em Novi Grad, muito antes da bomba atravessar o telhado durante o shabat. Naquela noite, Wanda estava assustada com pesadelos e os dois leram “A Chapeuzinho Vermelho” juntos; foi quando Pietro disse que aquela era a cor de sua irmã. Também foi nessa mesma ocasião em que ela lhe fizera uma promessa:

“Não vou deixar você ir”

Nunca lhe abandonaria.

Por muito tempo, foram só os dois contra o mundo. Os gêmeos, como os tutores do orfanato diziam. Quase uma entidade única. Ela cumpriu a sua promessa, mas foi Pietro que partiu primeiro. E por isso… Por isso não pôde protegê-la. Não estivera lá quando ela chorou e chorou, não pegou em suas mãos geladas quando ela teve medo e insônia. Quanto ela havia amargurado sozinha, descobrindo todas aquelas loucuras? Era insuportável imagina-la chorando assim como ele fazia agora, gritando mesmo que sua dor não fosse jamais cicatrizada. 

Não havia mais nada no mundo.

O vento soprou, o sol caia no horizonte. Nada importava mais e Pietro permaneceu ali, absorto no vazio que irradiava de seu peito. Quando achou que havia secado por dentro, chorou mais um pouco. Quando achou que estava sem voz, repetiu o nome da irmã tal qual um corvo triste faria. E quando achou que estava completamente só enquanto a tarde cobria o céu, ele sentiu um impacto leve em seu joelho. Seu olhar caiu na origem do toque macio:

Um gato.

Um gato preto roçando o nariz em seu joelho, num ato amigável.

Talvez o animal solitário tivesse reconhecido Pietro como um igual, uma criatura desabrigada e sem direção. Um felino muito sensato, ele diria. Sua mão alcançou a cabeça felpuda dele num gesto instintivo — afinal, sempre fizera amizade com animais nas ruas — e então alcançou um ponto atrás de suas orelhas. Em resposta, um ronrom. O gato piscou algumas vezes aquele seu par de olhos amarelos, miou baixinho.

— Hey. — Disse, muito fraco. — Qual é o seu nome?

Outro miado. Pietro derrubou mais algumas lágrimas e puxou o gato para si, encaixando-o confortavelmente em seu peito.

Wanda sempre quisera um gatinho e, se possível, um gatinho preto, pois principalmente felinos desta cor costumavam sofrer da superstição e de maus tratos. Sempre os últimos a serem adotados, se fossem adotados. Muito parecidos com os dois órfãos de Sokovia, roms e judeus, vítimas de preconceitos. Pietro prometeu que poderiam ter um ou quantos ela quisesse quando tivessem a própria casa, e ela brincava dizendo que lhe daria uma tartaruga de estimação em troca — um companheiro perfeito para alguém elétrico como Pietro.

O gato continuou a ronronar, mesmo que as lembranças provocassem mais choro no rapaz. Apertou o bichano mais um pouquinho contra o peito, como se pudesse encaixá-lo no buraco do seu coração, mas não por tempo demais. Minutos escorreram, uma eternidade para Pietro. E então, o gato pulou de seu colo e andou alguns passos adiante. Parou, encarou o rapaz de volta e miou, chamando-o ao desconhecido. Pietro voltou seu olhar ao o monumento, o nome inscrito de Wanda e, somente após certo tempo, reuniu forças para se levantar e seguir o gato.

O bichano parecia conhecer o terreno assim como as almofadas de sua pata. Não se importava com galhos ou desníveis, nem mesmo com cheiros diferentes ou folhas. Era um animal decidido e levou seu novo amigo, Pietro, até uma vizinhança pacata, com carros com pneus murchos estacionados e plantas se esgueirando entre suas estruturas. O local poderia até ser agradável se não fosse a sensação de que estava abandonada, assim como provavelmente o resto do mundo jazia… Bom, exceto uma caminhonete cor de oliva limpa, apenas com lataria descascada. Pietro estreitou os olhos, viu a carroceria do automóvel aberta e cheia de toras cortadas. 

E então um homem manco, de meia idade e casaco grosso, aproximou-se da caminhonete, vindo da casa de madeira. Talvez estivesse trazendo as toras para dentro de casa, afinal, o frio se aproximava e aquelas cabanas costumavam ter ou lareiras ou um sistema de aquecimento potente. Pietro chutava a primeira opção. Quando o olhar dos dois se cruzou, a expressão que o estranho fez foi de quem enxergava um fantasma. Por alguns instantes, ninguém disse uma única palavra e o gato só permaneceu sua balançando sua cauda preta, esperando.

— Garoto. — O homem disse, dando mais um passo à frente. — Está tudo bem?

Pietro piscou, saudoso pela língua materna e o forte sotaque. Quando Natalya e Erik conversavam com ele, o som das letras e entonações eram amenos… Talvez porque constantemente tinham que falar em outros idiomas, assim como ocorreu quando as visitas chegaram. O lenhador, por sua vez, tinha o sotaque tão enraizado e largo quanto as árvores que cortava.

A falta de resposta fez a expressão do estranho se fechar mais, entre preocupação e receio. Foi aí que o jovem entendeu o que se desenrolava, o que o lenhador estava enxergando: Ele era um rapaz em terras abandonadas, com roupas sujas e uma cara de choro. Uma aparição ferida e triste, exatamente como se sentia por dentro. 

— Eu… Estou vivo.

O homem sorriu com a resposta, alheio ao que a frase de fato significava. Meneou a cabeça, continuou sua tarefa de pegar a lenha.

— Não sei dizer se isso é sorte ou azar, garoto. Não depois de… Bem, você sabe o que. 

Sabia. As Jóias do Infinito. Aliens. Sua irmã se tornando pó. Cenas que ele não viu, mas que cortavam seu coração de dentro pra fora. Sua mente começou a correr de novo e ele se viu obrigado a mudar de assunto antes que voltasse a tremer.

— O gato é seu?

O lenhador contornou o automóvel e encarou o bichano no chão, que acompanhava a conversa. Levou alguns segundos até confirmar:

— Não. Mas não me é estranho… — Pegou alguns pedaços cortados de madeira, o suficiente para ocupar seus braços grossos. — Engraçado, parece o mesmo gato que uma menina e o namorado trouxeram aqui uma vez. Faz muito tempo, na verdade. Uns três anos. — Uma nova pausa. — Céus, será que é o mesmo gato? 

Houve somente um miado longo, preguiçoso. Não teriam mais do que isso do felino. 

— Algo me diz que está com fome, rapaz. E eu bem poderia aceitar uma ajuda com esse carregamento… Você sabe, depois que todos se foram há alguns lapsos na distribuição de energia. Com o inverno chegando, não quero ser pego desprevenido.

— Claro, claro. 

Faria qualquer coisa para se distrair, mesmo que por um tempo. Mesmo que fosse em vão. Caminhou até a caminhonete, pegou mais um pouco da carga enquanto o gato seguia-os. A tarefa se resumia a carregar a madeira até um ponto fora da casa do lenhador, uma pilha de tocos, e ele fez isso rápido, embora não tão rápido assim. Não o bastante para o homem estranhar, pois já era sorte o suficiente ele não ter apenas mandado-lhe procurar o que fazer em outro lugar com um quê de hostilidade. Pietro esperaria esse tipo de reação. Órfão. Judeu. Aprimorado e Mutante. Só o seu cabelo prateado era capaz de provocar um ou outro comentário de mentes mais atrasadas.

Mas o homem não era assim. Depois que a tarefa foi terminada, convidou o rapaz para entrar e comer um pouco; também aproveitou para oferecer uma tigela de leite ao gato. Primeiro, o mutante optou por lavar as mãos no banheiro da casa, aproveitando que o velho não tinha reparado em seus dedos manchados de sangue. Depois, Pietro se sentou na sala, admirando os artigos de madeira. A região oferecia condições para o ofício de lenhadores, mineradores e operários, portanto não foi exatamente uma surpresa encontrar alguém que mexia com madeira ali. O velho, todavia, tinha notável habilidade. Sua casa era repleta de artigos de bétulas e faias, como a mesa, a estrutura dos caibros e do sofá. Também existiam miniaturas em estantes, peças entalhadas com riqueza e dedicação. Foi então que Pietro notou semelhança entre aqueles objetos e o lobo de madeira no quarto de Wanda.

— Aqui, rapaz. — O homem voltou, trazendo uma bandeja com biscoitos de chocolate e duas canecas fumegantes de gemada. A bebida era doce, alcoólica e temperada com especiarias que somente Wanda se importaria de lembrar o nome, coisa que o fez sorrir com tristeza para o nada. — Aliás, me chamo Piotr.

— Engraçado. Eu me chamo Pietro.

— Oh. Parecido. — Ele deu de ombros, mais focado em beber e comer. Não que a conversa com o lenhador lhe aborrecesse, pelo contrário. Queria ouvi-lo falar para se distrair, mas não tinha energia o suficiente para responder com animação. — Faz tempo que não vejo ninguém por esse lado. Já não era muito movimentado depois de 2015… Só aquela gente toda atrás de peças de Ultron. Até que acabou.

— É mesmo?

— É. — Coçou a barba grisalha. — Ao menos ouvi menos casos na floresta ao sopé de Wungadore. Você soube de alguma coisa?

— Não… Eu não… — Suspirou e o gato pareceu se interessar pelo diálogo. Aproximou-se sem pudores, deitando no colo do jovem sokoviano. — Eu não estava aqui.

— Oh, sim. Entendo. — Ele próprio tomou um longo gole da bebida, depois limpou a beirada da boca e o bigode. — Ainda não recomendo andar por aí depois do entardecer. Essa perna aqui… Ficou assim por causa de Wundagore.

A perna manca. Pietro pensou no que Erik — seu pai — lhe contou sobre sua irmã. Sobre suas aventuras mágicas, melancólicas e misteriosas. Ninguém nunca soube o que realmente acontecia na montanha mais temida de Sokovia… Pietro agora entendia tudo. E ele e sua irmã eram o centro daquilo, junto a Chthon.

— Mas não se assuste, — Piotr continuou. — Há menos olhos entre os galhos.

Tudo por causa de Wanda. Wanda. Wanda. Wanda. 

Engoliu mais um pedaço de biscoito, evitando chorar ou gritar. A tarde cedia à noite. O gato em seu colo ronronava sem parar, talvez numa tentativa de chamar sua atenção ou apenas porque se sentia confortável e quente.

— Mais um pouco e irá escurecer.  Veio de longe?

— Sim. Do cemitério.

Silêncio.

Piotr assentiu com um suspiro. Talvez a desculpa não fosse algo incomum, Pietro cogitou; ciente que o lenhador não teria como compreender ao todo o que ele queria dizer. O que mais poderia se esperar na região próxima à cratera de Novi Grad? Apenas visitas aos mortos.

— Descanse então, filho. Já teve um dia duro demais por hoje, hã?

— Você não tem ideia.

Após um novo suspiro resignado, o velho levantou-se e trouxe mais bebida para Pietro. Já não era mais somente para oferecer algo doce e quente, mas sim para lhe dar um pouco do relaxamento que o álcool trazia. Mal sabia ele que não haveria como deixar o metabolismo acelerado dele sequer levemente embriagado. Deixou cobertores grossos apoiados na poltrona e manteve a lareira acesa. Pietro poderia dar mais leite ao gato na cozinha se o bichano tivesse fome durante a madrugada, era só pegar na geladeira. Se sentiu culpado e aliviado pela oferta de pernoitar ali, ao mesmo tempo que não queria pensar na preocupação de sua tia e de seu… pai.

— Eu não queria te incomodar.

— Acredite, não é trabalho nenhum. — Afirmou, trancando a casa e se certificando de tudo. Recolhia-se para a noite e para o sono, dividido entre suas palavras, incerto do que narrava em seguida. — Sabe, eu tive um filho… E bem, se ele estivesse só num fim de mundo desses, acho que gostaria que alguém cuidasse dele.

O tempo verbal da frase não passou desapercebido pelo jovem. Ele teve um filho. Não tinha. Era assim que ele deveria se referir a irmã agora? A algo que um dia tivera, mas que escapou de suas mãos? 

— Não tem medo de um estranho? Que eu possa… Sei lá, te roubar?

O outro riu, sua voz grave e antiga.

— Eu preferiria que não fizesse isso, mas não teria como te culpar. São dias difíceis. Mas sinto que, depois do que aconteceu há dois anos, existe algo mais que nos liga uns aos outros.

— Dor?

— Sim. Entendimento. E se for apenas que isso que nos liga, que seja. — Deu de ombros. — Acho que às vezes precisamos nos agarrar aos poucos laços que restam, mesmo que seja só para... Ajudar um estranho rapaz e seu gato.

Pietro assentiu, pensativo. O gato preto agora aninhava-se entre as mantas, ainda acima dele no sofá. Já não existiam tantas luzes acesas na casa, restavam somente algumas lâmpadas incandescentes que o lenhador ia apagando em seu caminho e a iluminação quente da lareira. Havia quase escuridão completa quando ele decidiu perguntar:

— Piotr? Como… Como se chamava a moça? A que trouxe o gato junto com o namorado.

Outra pausa.

— Lembro que o rapaz era parecido com meu filho. James. E ela…. Wendy? Não, não. Wanda. Por quê?

Ele estava feliz do velho não poder ver seu rosto torcido, as lágrimas mais uma vez banhando suas bochechas.

— Nada.

Dito isso, o velho foi dormir e sobrou só a quietude.

Era sua irmã. Sua gêmea. Wanda. 

Era.

Pietro dormiu no sofá após horas acordado, remoendo cada palavra que tinha escutado naquele maldito dia. Palavras de Erik. Desculpas imperdoáveis e compreensíveis de Steve Rogers. Certa hora, a exaustão venceu seu corpo e ele sonhou com os olhos verdes de sua irmã, sonhou com o gato preto lhe dizendo uma miríade de coisas que jamais se recordaria depois. Um gato tolo.

A despedida no dia seguinte foi sucinta e sem muitos rodeios. Piotr só lhe deu conselhos comuns para se ter ao caminhar na floresta, coisa de superstição sokoviana; mas disse também que havia gente desaparecendo e que alguns líderes investigavam os casos. Capitão América. Magneto. E até mesmo aquele governante ao norte, na Latvéria, Victor Von Doom. Os primeiros nomes doeram nos ouvidos de Pietro, mas ele nada retrucou. Só agradeceu a hospitalidade, lhe desejou boa sorte e partiu com o felino.

Estava oco. Fez o caminho de volta, admirou a antiga cratera tomada por flores e a pedra vermelha cuja a superfície foi entalhada com o nome da irmã, a Feiticeira Escarlate. Ele poderia deixar de existir naquele instante e virar cinzas para se juntar a sua gêmea, mas Ebony miou e miou em suas pernas. Seria injusto deixá-lo perecer ali, logo um bicho que Wanda amaria ter em seus braços.

Por isso, logo bateu à porta da casa de Agatha Harkness, um nome que nada lhe dizia, mas que todos pareciam muito bem conhecer. Quem o recebeu foi Natalya, os olhos inchados por um choro recente e um sorriso aliviado. Havia algo mais em sua expressão, uma faísca só encarar o sobrinho com o felino nos braços. Pietro não explicou sua ausência. Não pediu desculpas. Não lhe deu bom dia. No entanto, existia um tom quase infantil em sua voz quando ele ajeitou o bichano em seu colo e perguntou:

— Posso ficar com o gato?

 ****

A casa de Agatha Harkness se mostrou um quebra-cabeça de um passado recente de Wanda Maximoff. Lá, principalmente em seu quarto acolhedor, Pietro juntava pequenas peças para imaginar o cotidiano de sua irmã: por exemplo, o livro infantil da Chapeuzinho Vermelho. A obra na estante realmente era dela, portanto isso indicava que Wanda se lembrava daquele dia e talvez… Talvez quando suas mãos geladas folheassem o livro, ela tivesse a sensação de estar perto de quem partiu, assim como ele fazia agora. 

Havia outros livros e cadernos. No armário existiam ainda roupas confortáveis e bonitas, alguns vestidos e saias no estilo que Wanda tanto gostava, mas que não podia comprar antes. Em cada canto, um lembrete escarlate e gentil.

Os relatos de Natalya e Erik ajudavam a compor aquelas memórias, embora as conversas não fossem extensas ou fáceis. Eram como pedaços de sentenças, fragmentos jogados no ar para compor um triste mosaico. Erik falava menos e suas palavras eram as mais pesadas. Os dois mal se encaravam e a presença dele era simultaneamente instigante e insuportável, mas o jovem sokoviano estava cansado demais para discutir, desprovido de repente de pressa.

Não era como se ele pudesse encontrar sua irmã em algum lugar, de qualquer forma. 

Foi bom Natasha Romanoff e Steve Rogers voltarem para o estado de Nova York. Pietro não queria suas desculpas e também não queria se desculpar. Pior ainda, não desejava o olhar de pena dos dois, mesmo que… Que eles pudessem falar um pouco mais de sua irmã, o que ela fez e quem se tornou nos últimos cinco anos. Agora, Scott e Emma ficaram até o dia seguinte, após o sumiço de dele. Se apresentaram de novo, por assim dizer e lhe ofereceram qualquer tipo de assistência, afinal, ele também era mutante. No entanto, nenhum deles podia trazer Wanda dos mortos, de modo que eles também não se demoraram a partir, retornando ao Instituto Xavier. 

Afinal, ainda existiam problemas, como o sumiço de mutantes e o estranho envolvimento da IMA no Leste Europeu. Latvéria e Genosha intervenham bem na situação e investigavam o que de fato estava acontecendo, mas era mais sabia que o Instituto Xavier continuasse a garantir a segurança de seus alunos e associados na América.

Então, o rapaz ficou ali, naquela rotina nova e absurda. Gostava de bisbilhotar o tarot que ficava no balcão da cozinha, pois Natalya contou que era um costume de Wanda fazer leituras matinais. O que ela enxergava naquelas cartas? Pietro se flagrava sempre divagando nisso, nas coisas que a mente imaginativa de Wanda pensava, nos pequenos hábitos que tinha desenvolvido. Qual era o significado da estatueta de lobo em madeira? Como tinha sido o episódio aos arredores de Novi Grad e quem era o tal namorado dela? Os questionamentos e os ciúmes bobos ficavam em segundo plano quando ele raciocinava que ela teria ido ao cemitério… Para vê-lo.

Cacos e mais cacos de uma realidade que já não mais existia. Eram só relatos, objetos e suposições. 

Com o decorrer dos dias, aprendia mais sobre Wanda, sobre quem foi James Barnes e amigos — e inimigos — que cruzaram o caminho dos dois em uma longa jornada em 2017. Soube mais detalhes de misérias que ela tinha descoberto e como ela era tão mais forte do que ele para lidar com tudo aquilo. Mas foi sempre assim, não? Pietro queria proteger sua irmã da crueldade do mundo, porém existia algo mais em sua quietude, em seus olhos. E se não pudesse protegê-la, ele poderia enfrentar tudo ao seu lado, certo? Por isso se alistaram nos experimentos. Para chacoalharem o mundo, juntos.

E quem partiu primeiro foi ele.

“Não vou deixar você ir.”

 

“Estamos em 2020.”

“E Wanda…”

“Wanda está morta.”

Cada sílaba ecoava em seus ouvidos, em sua memória. Verdades absurdas e promessas quebradas. Sua mente ainda corria para cantos distantes, mas seu corpo permanecia inerte.  O mundo, sempre lento demais para Pietro Maximoff, agora tinha parado de vez.

Um dos seus locais favoritos na casa da velha Harkness — que descobriu ser a mentora mística de Wanda— era o jardim dos fundos. Gostava de sentar-se no chão, ouvindo os insetos que ainda insistiam em voar entre as plantas mesmo com o frio chegando. Era bom imaginar Wanda ali, praticando magia; e era bom se imaginar morto ou tornando-se se também cinzas para segurar a mão dela. Pietro, no entanto, raramente ficava só. O gato preto o acompanhava com frequência e o rapaz veio a saber que o bichano de fato era amigo de sua irmã. Chamava-se Ebony e estava desaparecido desde o estalo de Thanos. Natalya acreditava que ele também havia sido desintegrado, até ele voltar com o gato no colo. Contou que era companhia constante de Wanda e, se não tivesse sacrificado a própria capacidade de falar, poderia contar outras coisas sobre ela, detalhes talvez que ninguém soubesse. 

Mas Ebony só sabia ronronar e encará-lo com aquele seu par de olhos amarelos.

— Eu sei, eu sei. — Pietro suspirou, afagando-o atrás da orelha. — Eu sou patético. Acho que você tinha aventuras mais interessantes com a Wan.

O gato se espreguiçou, abrindo a boca num bocejo. Depois, foi subindo acima das pernas cruzadas do rapaz, na tentativa de se encaixar de um modo confortável para uma soneca.  Ebony era carinhoso e abusado, coisas com que ele se identificava e podia perdoar.

O vento começava a soprar frio ali no jardim e em breve os dois teriam que retornar a casa.

— Mas não importa o quanto tente me convencer, eu não quero… Eu não quero conversar mais com ele

O rapaz recebeu um olhar curioso do felino. Não era raro que Pietro conversasse em voz alta com ele, mesmo que não houvesse resposta. Ainda assim, impressionava o quanto podia ter os mais longos e francos diálogos com o pequeno animal, que por sua vez parecia se interessar em seu raciocínio veloz e descontinuado, sua voz ora confiante, ora falha.

O tópico seu pai era particularmente agudo.

Antes, quando pensava em seu pai, a imagem de um rom sorridente, de bigode e voz grave tomava sua cabeça. Django Maximoff, um artesão que fazia marionetes. Sentia sua falta, sempre sentiu. Mas agora havia Erik Lensherr, uma incógnita. 

Ele iria embora no dia seguinte, de volta à Genosha, sua nova nação, para assim dar um tempo para Pietro se... Adaptar com essa vida. Uma palavra muito leve para o buraco no peito do rapaz, mas não havia nada de fato que expressasse o que sentia, algo que nunca se curaria. Um eufemismo então caía bem. Era mais fácil, com menos espinhos.
As conversas entre pai e filho persistiam estranhas e quebradas; ele ter sido a pessoa que efetivamente despejou toda a realidade de cinco anos e mortes no colo de Pietro também em nada estimulou um clima agradável entre os eles. Pietro, na realidade, o admirava e o desprezava na mesma medida. Um líder, um revolucionário. Tudo o que ele queria ser quando mais jovem, ao lado de Wanda em manifestações para um destino melhor para crianças, roms, judeus em Sokovia. O jeito que ele falava era firme, embora houvesse um quê de emoção em seu tom. Nuances fúnebres de fúria, de dor. Existia um olhar de curiosidade, talvez; uma certa familiaridade compartilhado entre ambos e isso… E isso fazia baixar a guarda, ao menos um pouco.

No instante seguinte, sua mente acelerava com outras questões.

Como ele conseguia ficar assim, tão sólido quando separou os irmãos mesmo na morte? É claro que não desejava aquele destino para sua gêmea, jamais. Mas… Ficariam juntos, como sempre ficaram. Portanto, Erik era mais do que seu pai e uma incógnita. Era um lembrete de que tinha sido trazido à uma existência sem Wanda.

Ao mesmo tempo, não o culpava. Soube que Wanda e Erik tinham uma relação relativamente próxima, frágil e embebida em vulnerabilidade dos dois lados, mas que justamente encaravam um ao outro como família. Tudo o que tinham. E Pietro também iria até a beirada do universo para trazer sua irmã de volta.

Foi o que Magneto tinha feito.

E agora Pietro estava ali, vivo. Distante dela.

De Django. De Marya.

Algumas lágrimas desceram seu rosto, mas ele culpou o vento e a poeira.

— Vamos, Ebony. Já está esfriando.

Pegou o gato no colo e rumou para dentro, logo sentindo o cheiro de comida. Sabia que os objetos na cozinha provavelmente estavam se mexendo sozinhos através de magia para compor o jantar e, apesar de sentir fome, lhe entediava a ideia de ter que passar mais tempo num quase silêncio com Natalya e Erik. Quando não falavam coisas soltas, coisas pesadas, a quietude então lhe parecia fingida. Pietro não sabia dizer o que era pior.  Portanto, não disse nada nem à tia, nem ao pai ao vê-los ali, perto da sala — e somente subiu as escadas até o sótão, o quarto de Wanda… E seu quarto agora. Pensou que bisbilhotar as coisas da sua irmã o distrairia, ou então brincar com as garras de Ebony. Coisas inúteis e inócuas, mas não. As vozes e a dor de Erik e Natalya agarravam-se aos degraus e subiam também as escadas, perseguindo o rapaz. Eram sussurros, confissões fúnebres e cheias de arrependimento. Não era raro Pietro escutá-los dizendo o quanto queriam que tudo fosse diferente. Que sentiam saudades.

E que não sabiam lidar com Pietro.

Naquela ocasião, o jovem sokoviano ouvia os dois enquanto jazia deitado na cama, ao mesmo tempo divagando que era assim que estava posicionado em sua cova. Era estranho não conseguir se lembrar de nada após as balas penetrarem sua carne, embora talvez fosse melhor assim. Questionava-se seria então amaldiçoado, uma vez que trazer mortos de volta a vida não era algo natural ou bem visto. Mesmo sem respostas oficiais de qualquer entidade ou figura religiosa que fosse, ele se sentia bem amaldiçoado agora. A diferença é que tinha um gato preto lhe afofando, de novo naquele ritual de percorrer toda a cama até tentar dormir em seu travesseiro, encostado em seus cabelos prateados.

Ouvi algo de Erik, uma frase que não pode entender, mas pôde captar seu luto. E então, Natalya:

— Eu acho que… — Uma pausa, longa e amarga. — Que talvez ela não tenha voltado porque nem a alma, nem o corpo dela existem mais. — Outro silêncio. Pietro podia imaginá-la com os olhos avermelhados, a boca trêmula. Podia ouvir o som dos fragmentos de seu coração. — Ela não vai voltar, Erik.

Vieram lágrimas. De seu pai, escadas abaixo… E dele próprio, no escuro.

Ele não comeu aquela noite. Somente deixou o choro lavar seu rosto, lhe levar à exaustão e por fim ao sono. Existia um ditado que o sono era um fingimento da morte, não? E ele podia fingir isso, fingir que tudo isso era mais um sonho que escorreria de sua cabeça logo, para nunca mais ser lembrado.

Olhos amarelos, no entanto, lhe encontraram entre as trevas. Demorou um tempo para que Pietro entendesse que sim, aquilo era um sonho, e que estava consciente do espaço amplo e vazio ao seu redor. Fazia um bom tempo que não se sentia dentro da própria cabeça em sonhos, pensou até que isso — a quase ausência de ilusões e consciência dentro delas — fosse um custo da ressuscitação. Se bem que… Ali, no sonho, seus pensamentos pareciam amplificados. Mais rápidos, mais intensos. 

O gato piscou para ele assim como fazia quando não existiam mais luzes acesas no quarto, intrigado, e ao invés de sair um miado de sua garganta, uma voz limpa e elegante escapou de Ebony:

— Você não vai com seu pai?

Oh. O gato estava falando com ele. Tinha sonhado com isso antes, talvez. Não sabia dizer, ao mesmo tempo que tinha a impressão palpável de que já conversara muito com o bichano. Coisas verdadeiras, cruas e tristes. Ele não viu razões para controlar a própria língua, pois o gato parecia ciente de tudo, assim como todos os gatos em sonhos ou não:

— Você quer que eu o ame só porque ele é meu pai?

— Não. — Respondeu, paciente. Inclinou sua cabeça um pouquinho, lambeu uma pata e coçou a orelha. As sombras era menos densas que seu pelo lustroso. — Isso é tolice, se não maldade. Não há como amá-lo assim, e nem mesmo Wanda o fez. Também estava sozinha. Ela só… Ficou curiosa o suficiente para tentar descobrir mais. E ela nunca esqueceu de Marya e Django Maximoff. Nem de você.

Pietro riu, injetado por deboche. Para que usar de sua boa educação, se aquilo era um sonho? Para que, se não se lembraria de nada ao acordar pela manhã? Para que tudo isso, se doía tanto?

— E você vai me convencer a fazer o mesmo?

Ebony piscou de novo, inspirou fundo. O movimento em seu corpo simulava um dar de ombros simples, resignado:

— O que posso realmente fazer? Sou só um gato preto que já nem fala mais.

Ele riu de novo, agora menos irritado. Seus ombros enfim relaxaram e ele se agachou, ou pensou que se agachou, para ficar quase no mesmo nível que o animal. Como aquilo era um sonho, ele não sabia dizer sobre estado de seu corpo, mas viu sua própria mão esticar para acariciar o bichano. 

— Você sempre teve a língua tão afiada assim?

— Não no começo e… Isso me fez falta. — Piscou de novo aquele seu par de olhos amarelos. — Deseja ver o que eu vivi?

Pietro franziu a testa. Não conseguia entender diretamente a relação do passado do gato com a situação em que se encontrava, porém era uma história que ele gostaria de saber. Uma oferta estranha e rara; algo que, talvez, não era dito há muito tempo.

— Por que não? Você já me ouviu falar tanto sem poder responder nada. É sua vez agora.

O gato assentiu com solenidade e imediatamente a luz amarela de seus olhos tomou todo o ambiente. Pietro acordou num segundo sonho, dentro de uma floresta densa e de galhos nus. Era fim de outono naquele local, tudo esmaecia. Desta vez, não existia seu corpo naquela visão, apenas sua consciência. Observava um casa pobre, pequena e de séculos no passado. Onde realmente estava? Sabia que era uma memória do felino, somente. Antes que perguntasse, ou ao menos tentasse perguntar, ele viu uma mulher de vestes longas, avental e lenço sobre os cabelos caminhando para lá, com uma pilha de galhos grossos em suas costas encurvadas. Lenha. Não era velha, embora a juventude tivesse sido esgotada de seu rosto devido ao esforço físico, à vida dura. O vestido sujo na barra confirmava a suspeita de que boa parte das horas da mulher eram gastas em trabalhar.

De repente, um gesto que Pietro não imaginava: Um sorriso. Não era para ele, entretanto. Era para o felino preto e pequeno que saltitava em folhas secas até sua direção, a cauda em pé e o focinho empinado. Uma imagem adorável que provocou desconforto em sua garganta, pois algo lhe dizia que aquilo não iria acabar bem.

A voz de Ebony ressoou em sua cabeça:

“Você conhece essa história. Um indivíduo diferente. Tempos ruins. Pessoas desesperadas em encontrar uma resposta e um culpado”

Pietro compreendia, pois sangue rom, judeu e mutante corria por suas veias. Histórias tristes e um legado de resistência compunham seu corpo. Continuou a assistir as cenas que se alternavam, o cotidiano longo da mulher e o vento que soprava na vegetação próxima.

“Não foi a primeira, nem a última Katharina a ser acusada. Morava numa casa afastada do centro do vilarejo porque seu pai mexia com madeira e era mais fácil se manter perto da floresta. Aprendeu com ele o ofício de entalhador e trabalhava com isso para sobreviver. Era órfã de mãe e se tornou órfã de pai quando uma doença se alastrou pela região. Chamavam de febre, apenas”

A mulher entalhava motivos folclóricos em peças rústicas, gamelas, cabos de facas e decorações. Suava com o esforço, seus dedos já calejados e ágeis. Ela trazia em si uma expressão tão dura quanto a madeira enquanto labutava, porém um sorriso se abria em seu rosto toda vez que punha leite para o bichano ou o via trazer alguma caça, mesmo sendo os menores e insignificantes insetos. 

“Ela era sozinha e eu só um filhote”

As cenas alternavam. Pietro entendia a linguagem, mesmo que não fosse um idioma que de fato soubesse. Apenas compreendia, assim como compreendia idiomas inventados em sonhos. A mulher não o chamava por um nome. Ele era só o gato e era dela. O gato em seu colo. O gato perto de um fogão a lenha miserável, que servia tanto para aquecer a comida quanto o casebre. Passou pela mente de Pietro o questionamento de como de fato aquela mulher, Katharina, sobrevivia. As vendas das peças eram o suficiente? Ou será que no inverno ela era obrigada a jogar suas obras no fogo?

Era curioso, para dizer no mínimo. Um gato preto e uma entalhadora. Isso o fazia se lembrar de Piotr, dos inúmeros artesãos tradicionais em Sokovia. Aquele lugar, porém, parecia distante não só no tempo, como também no espaço. Onde existiu tal casebre e sua singela moradora?

“Talvez tenha sido o sinal no rosto dela, o fato de morar longe e não falar muito. Coincidências estranhas. Pessoas jurando saber de coisas. Um gato preto em sua casa. Tudo piorou quando a febre matou um menino”

De repente, noite. Ao fundo, cada vez mais perto da casa, luz, pessoas e tochas. 

“Não houve julgamento, pois o povo tinha pressa e certeza. Eu tentei avisar que eles estavam chegando, mas… Eram só miados. Ela achou que eu tinha fome e me mandou caçar algum rato”

Katharina sorriu uma última vez e fechou a porta, com o sono e incomodada pelo barulho escandaloso do bichano. Havia sido um dia longo, de uma extensa e cada vez mais gélida estação. Seu corpo estava cansado e ela só queria dormir, para no dia seguinte fazer tudo de novo.

“E eu assisti a casa pegar fogo com ela dentro”

Labaredas consumiram a madeira e sufocaram os gritos de Katharina, a cor fulgurante refletida pelos olhos amarelos do felino. Ela sentia a hostilidade do vilarejo, mas nunca cogitara que… Seria acusada, condenada e executada em um só dia. Mas o que faria? Era só uma estranha mulher, distante e sozinha com um gato. Os tempos eram difíceis e as pessoas demandavam uma explicação simples. 

Katharina era uma bruxa e seu gato um demônio. 

A fome, a doença e a morte eram obras suas e nada como o fogo para purificar as mais vis almas, os mais pobres vilarejos. A febre, assim como a bruxa, iriam sumir com as fagulhas das chamas. Este era o raciocínio deles, incrustado de medo, dogmas e tantas outras nuances.

Enfim, cinzas e carvão. Um gato preto observava o resto das brasas aquecendo o ambiente frio, seu pelo chamuscado por tentar em vão ajudar a dona.

Fez-se escuridão novamente, apagando a memória e visão. Mais uma vez, Pietro jazia embebido em sombras, seu corpo aéreo em um espaço vazio. Saiu do segundo sonho, retornando para o primeiro no qual apenas conversava com Ebony. Levou mais um tempo para enxergar de novo o amarelo de seus olhos, o seu corpo diminuto solidificando-se no ar de repente.

— Depois… — Ele terminava a narração, como se não pudesse ver o Pietro trêmulo e com os olhos muito fixos, esforçando-se para não chorar. — Agatha me achou e de súbito, sem explicação... Comecei a falar.

— E o que houve, então? Para decidir deixar de falar?

O gato parecia pensativo. Era longo salto no tempo do começo até aquele momento presente, e os dois, tanto o felino quanto o jovem sokoviano, divagavam sobre o que aquilo significava. Décadas, séculos haviam se passado e agora o gato preto já não falava mais, coisa que lhe era muito cara. Um dia lhe fizera falta. Ambos também estavam cientes de que Ebony tinha abdicado de tal dom por Wanda.

O gato podia discorrer sobre muitas coisas e gastar sua capacidade de falar ali, numa ilusão no inconsciente de Pietro Maximoff. No entanto, seria mais sábio resumir, afinal… Era só um sonho. Não sabia quanto de suas mensagens permaneceriam guardadas no crânio do rapaz.

— Nós sacrificamos coisas pelas pessoas que amamos, mesmo com consequências complexas. Coisas que não imaginamos. E você entende isso.

O rosto de Pietro se franziu quando uma lágrima teimosa escapou de seus olhos. Sim, ele compreendia completamente. Sacrifício. Foi por essa razão que dúzias de balas atravessaram seu torso anos atrás e ele faria a mesma coisa de novo sem hesitar. Estava disposto a qualquer coisa para salvar um inocente, não? Sua irmã ou um desconhecido, até a ingrata Sokovia. Fez isso por Wanda; ela fez o mesmo por inúmeras pessoas. 

O sacrifício de Magneto era diferente, é claro. Um tanto egoísta e desesperado, dependendo de quem julgasse seus atos e talvez até completa insanidade, mas… Pietro também entendia. Ele abdicaria tudo de si — sua alma, seu espírito e as demais partes do etéreo — pela ínfima possibilidade de ter a filha nos braços mais uma vez… E o fez, sem os resultados que esperava. Consequências complexas, coisas que não imaginamos.

Isso não tornava suas ações corretas… Mas como negar que Pietro não estaria tentando a fazer exata coisa por Wanda? Céus, se o poder estivesse naquele instante em suas mãos, a sua forte intenção cumpriria o resto: Wanda viveria. 

Pietro entendia tudo aquilo e isso não lhe trazia definitiva paz. No entanto, entender era um começo e um começo… Era alguma coisa.

Ele abraçou o gato, dentro e fora do sonho.

A noite foi longa e ele acordou tarde, com o sol já em sua janela. Mal sentiu o gato apoiado em seu travesseiro, com as patas ainda entre seus cabelos, e também não sentiu necessidade de conferir seu rosto inchado pelo choro no espelho do banheiro. Somente pulou da cama, pois ainda estava vestido com a mesma blusa de mangas compridas e calças do dia anterior; beijou o topo da cabeça do gato, murmurando um agradecimento rápido demais, e correu veloz até a sala da casa. Quase escorregou de meia na madeira do piso, mas afinal chegou onde desejava: existia um portal mágico ainda aberto acima do tapete e seu pai não tinha atravessado-o. 

Natalya e Erik lhe encararam com surpresa. Era certo de Pietro não sentia vontade de testemunhar aquele momento de partida e nem via necessidade de se despedir de Erik. No entanto, lá estava o rapaz com sua roupa amassada, os olhos vivos e incertos. Houve uma pausa, expectativa. Duas palavras resumiam as frenéticas divagações do Maximoff: Laços e sacrifícios. Talvez fosse um erro precipitado, talvez um dos primeiros acertos de sua nova vida. Fosse o que fosse, ele enfim questionou:

— Erik? Ainda dá tempo para ir com você?


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Notas finais do capítulo

*Revisitamos o Piotr!

*Algumas pessoas me perguntaram qual era a história do Ebony e, apesar de imaginar uma longa e interessante vida para ele, foquei nessa parte no momento. Devo ressaltar que estou ciente de que nem todas as pessoas acusadas de bruxaria eram mulheres diferentes, idosas ou que as outras pessoas acusavam as vítimas somente por acreditarem no sobrenatural. Existiam motivações políticas também. Quis focar em Katharina, inspirada por Katharina Henot, uma vítima real que foi queimada em 1627, em Cologne. Também me inspirei muito pelo livro "Kate Somente", onde uma doença assola a cidade e as pessoas logo buscam uma razão para que isso aconteça.
De tantas coisas ruins e vítimas que temos documentos, fico pensando também naquelas que não temos nenhum registro e é por isso que não foi citado ano ou localidade para esta cena. É um caso sem rastros.

*Lembrando que, em termos históricos, a caça ás bruxas ocorreu na Idade Moderna, não na Idade Média aksja

*Nos capítulos futuros, exploraremos mais a relação entre o Pietro e o Erik!

*O capítulo foi revisado, mas existe a possibilidade deste arquivo ser sabotado pela I.M.A. Caso encontre algum erro (seja gramatical ou de continuidade), favor reporte à Shalashaska.



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