Sacrifícios escrita por Shalashaska


Capítulo 2
Azul




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23/09/2020

Casa de Agatha Harkness, redondezas de Novi Grad.

19:23 

Ainda não parecia existir um chão sob seus pés descalços. Pietro caminhava pelo piso de madeira do quarto, depois pelo tapete macio e sentia que a qualquer momento lhe faltaria um pedaço de solo para se apoiar. Estava enrolado num manto vermelho, a capa do homem que lhe trouxe até ali, Erik Lensherr. Não entendia o que estava acontecendo ao certo, o motivo de estar nu em um gramado em Sokovia ou o porquê o tal Erik e aquela mulher, tão familiar, vieram ao seu encontro. Ele passou as mãos pelos cabelos prateados, na tentativa de afugentar a confusão e trazer um pouco mais de peso e solidez à consciência. Nada. Era como despertar de um sonho longo e, quem sabe, importante, mas imediatamente esquecer-se de tudo. Por mais que corresse atrás do mínimo rastro, mal relava nas memórias em sua cabeça. Só sabia que tinha sido importante.

E que jamais se lembraria.

Ele se sentou na cama para observar melhor o ambiente. Era um quarto bonito em uma casa igualmente bonita. A mulher abriu um portal do gramado até lá e se referiu ao lugar como “a casa da senhora Harkness” ao falar com Erik; disse que a casa tinha sido alocada perto de Novi Grad através de magia. Pietro não conhecia ninguém com aquele sobrenome, mas não estava em condições de negar a ajuda ou qualquer coisa, na realidade. Estava desorientado demais para isso. Felizmente, os dois estranhos eram gentis. Ajudaram-o quando tentou andar e caiu, deram o manto para vestir enquanto não chegavam a algum lugar e sabiam seu nome. Mais do que isso, ambos carregavam a cor vermelha e nisso, talvez inconscientemente, Pietro conseguia confiar. 

No entanto, por mais que Erik e aquela mulher vestissem a cor que mais acalentava seu coração, os dois não eram a pessoa que ele mais queria ver. Ardia por ver sua irmã, Wanda. Estava preocupado e ela deveria estar também. Só que… Ele estava tão cansado. Se mal sentia o chão, como partiria para encontrá-la? Teria que esperar mais um dia, ou ao menos mais aquela noite. Fechou os olhos, inspirou fundo. Abriu as pálpebras de novo, ajustando a visão ao cômodo à meia luz, iluminado apenas por um abajur e pela lua lá fora. 

De repente teve a sensação engraçada de que Wanda gostaria daquele quarto. Era aconchegante, organizado. Pietro podia enxergar também uma porta entreaberta que levava a um banheiro particular, além de um closet. Uma suíte, então. Quem era o dono ou a dona daquele quarto escadarias acima? Bom, talvez apenas estivesse vago, já que ele dormiria ali. Decidiu levantar-se e explorar mais um pouco, pensando sobre como seria bom se pudesse dar um quarto assim para Wanda. Uma casa. Ele encarou os objetos na escrivaninha, como uma estatueta de madeira na forma de um lobo, os livros numa prateleira. Entre obras de misticismo, viu uma edição infantil de “A Chapeuzinho Vermelho”. Sorriu de lado, pegou o livro e o folheou com cuidado, embora sem prestar muita atenção. Podia não se lembrar de muitas coisas, mas nunca esqueceria das recordações de sua infância com Wanda; das brigas bobas, das vezes que leu o mesmo conto pra ela e como sua irmã dizia que ele havia lhe dado a cor vermelha. Achava a afirmação adorável, e mais adorável ainda era receber uma cor de volta: Azul.

Tantas memórias doces juntos. Tantas misérias juntos. Pietro sabia que o mundo poderia desmoronar, mas que sempre poderia se segurar nas mãos frias de Wanda.

Colocou o livro no lugar e caminhou mais um pouco, um tanto trôpego e segurando o manto sobre os ombros. Xingou um pouco, irritado por estar tão, tão exausto. Se dirigiu até a sacada para observar a noite uma última vez antes de se deitar. Fazia silêncio, mas não muito.

Escadas abaixo, Pietro podia escutar uma discussão entre Erik e a mulher de vermelho. Não conseguiu captar muito bem as palavras, nem o assunto que discutiam. Algo que os dois tinham falhado, algo que tinha dado terrivelmente certo, algo que sabiam que era somente errado. Com a confusão ainda dominando seus poros, Pietro não se deteve para compreender o significado de tudo aquilo. Apoiou-se no peitoril da sacada e apreciou a vegetação tomar conta do horizonte escuro, observou um lago, viu também a Lua no céu e as estrelas. Seus olhos claros fixaram-se no cinturão de Órion, a única constelação que era capaz de identificar no céu. Era mais uma coisa que ensinou a sua irmã, mais uma memória que amornava seu peito. 

Ele se perguntava se ela estaria observando as mesmas estrelas naquela noite e se pensaria nele, seu irmão. Queria que sim e queria que ela se permanecesse segura, onde quer que estivesse. No dia seguinte, Pietro iria atrás de Wanda, sua gêmea. Ela era sua parte vermelha, quieta e gentil. 

Metade de si.

***

23/09/2020

Complexo dos Vingadores, NY

13:04 

Mais uma vez, Steve Rogers organizava seus desenhos na bancada. Tinha levado muitos deles de Outer Heaven para seu aposento particular no Complexo dos Vingadores, apenas para ficar mais próximo de seus pertences e dos retratos que fez de seus amigos. A base voadora pairava há algumas milhas de altitude acima de onde ele estava no momento, quase sem uso. Não existia mais impedimento para voltar a morar no Complexo, uma vez que o Acordo de Sokovia foi revogado após… Após o que houve em Wakanda dois anos atrás. E a equipe que restara não tinha mais necessidade de se deslocar com frequência, pois o nível de criminalidade havia despencado junto com a queda da população. Assim, ele e Natasha voltaram a morar na antiga base dos Vingadores. 

Ocorriam ainda alguns crimes mais sérios no Leste Europeu envolvendo a IMA e desaparecimento de alguns mutantes, mas Magneto e o líder da Latvéria, Victor Von Doom, investigavam e combatiam tais problemas. Fora isso, só alguns saques aqui e ali, nada muito preocupante e a polícia costumava dar conta do recado. Parecia que até mesmo os vilões estavam ainda de luto e como julgá-los? O mundo não era mais o mesmo e nunca mais seria.

Ele folheou os desenhos, alternou a posição de alguns onde pregava-os na parede. Era um modo de rememorar os momentos que passou com Sam, com Bucky e com Wanda; como por exemplo a vez que partiram numa missão em Sokovia e ao fim pararam em São Petersburgo, acompanhados por Yelena Belova. Existiam também as ilustrações de cenários que visitaram — a capital de Wakanda, o Instituto Xavier e o Brooklyn — ou o retrato casual de algum deles fazendo algo de forma distraída, tipo Sam conversando com pássaros ou Bucky lendo. Às vezes, ele dava uma olhada no caderno que ganhou de Wanda e achava graça de como ela se frustrava fácil quando não conseguia desenhar do jeito que imaginava, mesmo que o resultado estivesse longe de ser ruim. 

Steve não sabia concluir se isso era um hábito saudável ou não. Às vezes derrubava algumas lágrimas por saber que nenhum deles estava mais lá, por saber que tinham feito tudo ao alcance das mãos e, ainda assim, haviam falhado. Thanos estava morto e as Joias do Infinito foram destruídas, mas nada disso revertia toda aquela tragédia. Se passaram dois anos inteiros e a ferida dentro de seu peito jazia aberta. Talvez nunca se cicatrizasse. A dor, mesmo que invisível e intangível, era tamanha que mal parecia real. Ele não conseguia seguir em frente, por mais que vendesse essa imagem quando dava algum declaração oficial e falava com o público.

Sentia-se um impostor, um ator barato como no começo de sua carreira. E sabia que era exatamente isso que o resto das pessoas precisava agora, um ideal que, embora vulnerável, se mostrasse sólido. Então elas poderiam voltar a acreditar em algo de novo, viver.

E, quem sabe aí ele pudesse fazer isso também.

Era uma grande besteira pensar assim? Uma falácia sem cabimento, ilusão? Metade do universo havia morrido e outros tantos se foram em decorrência de acidentes ou suicídio. Sentir o pesar pelo resto da vida parecia doloroso, mas justificado e até razoável para quem havia visto pessoas queridas se tornarem pó.

É claro que existiam várias maneiras de se lidar com o luto. Isso o fazia se recordar tanto de si mesmo, quando acordou setenta anos depois de sua era, quanto de Wanda, que havia perdido tanto ainda tão jovem.

Tony estava em casa e agora tinha sua filha para cuidar, a pequena Morgan. Ele e Steve não se falavam muito, mas era o suficiente para saberem um do outro e conferirem que estavam bem, dentro do possível. Ainda assim, sabia que o Homem de Ferro não tinha superado tudo, não depois de ter visto o seu protegido, Peter Parker, se desintegrar em seus braços. Ninguém tinha superado. Bruce tentava, Thor tinha se isolado, e nenhum deles conhecia o paradeiro de Clint.

E, assim como organizar seus desenhos, a tarefa de se manter firme e esconder suas fraquezas lhe soava inútil.

Passos o despertaram de seus devaneios e Steve sabia quem era sem nem se virar. Sentiu braços envolverem seu pescoço com carinho, o rosto dela encostando suavemente em sua nuca. Era Natasha, que havia desistido de descolorir o cabelo. A cor ruiva lhe cobria das raízes até a altura do queixo entre as madeixas loiras, que ela ia cortando aos poucos. Permaneceram naquele abraço sem jeito durante alguns segundos até que ela desenlaçou seus braços nele e sentou-se numa poltrona próxima, onde ele costumava ler. A russa encarou os desenhos com cautela, depois o encarou. Entendia o que aquele momento significava, seu hábito ansioso de organizar seus desenhos e sua total indisposição de pintar algo novo, e estava ciente de que nenhuma palavra seria o suficiente para animá-lo de verdade.

E ele era grato por ela ficar ali, mesmo assim.

— Hey.

— Hey.

Eles fingiram um sorriso um ao outro.

— Definimos reuniões periódicas. Seremos eu, Okoye, Rhodes, Rocket, Danvers, Summers e Frost, e ocasionalmente alguém de Genosha, embora duvide que Magneto em pessoa vá se importar em aparecer.  — Ela comentou após um suspiro. Deu de ombros, a expressão frágil. — É uma tentativa de manter o mundo a salvo… Ou o que resta dele.

Steve assentiu, dolorido.

— Nada de Symkaria ainda?

— Sable ficou incomunicável por causa de… Yelena.

Os dois permaneceram em silêncio, remoendo o peso da afirmação. Ele aproximou a cadeira da poltrona onde ela estava sentada e segurou sua mão, deslizando seu dedo pela pele dela sem que sua voz saísse pela garganta. Belova era como uma irmã de sangue para Natasha, sua contraparte e parceira de uma juventude cruel no Salão Vermelho. Assim como tantos outros, Yelena Belova havia desaparecido. Sua namorada, Silver Sable, estava viva e comandava ainda sua pequena nação, porém nunca mais deu as caras. Jazia em luto.

— Queria que Sam estivesse aqui. — Steve falou de súbito, seu olhar distante.

Natasha, por sua vez, soltou uma risada curta e sem muito humor.

— Para falar com pássaros?

— Não, não. — Abriu um sorriso triste. — Ele… Ele conseguia motivar as pessoas nos piores momentos, nos piores traumas. Ele atuava num grupo de apoios a veteranos de guerra, lembra? Em Washington.Deveria existir um grupo de ajuda agora, para todas essas pessoas que perderam alguém. Ele saberia o que falar e eu queria que ele estivesse aqui. — Repetiu, depois sua voz ficou embargada. — Queria que todos estivessem ali.

Os dois aproximaram-se mais um do outro, se abraçaram e choraram. Steve não definia em palavras certas aquele relacionamento deles. Existia companheirismo, confiança, sensibilidade, um toque ou outro. Nada muito sério, nada que fizesse tal relacionamento virar algo mais, mas novamente ele não era capaz de determinar com exatidão o que eles eram. Amigos, um pouco mais que isso. E ele imaginava o que poderiam ter sido se não houvesse tanta dor envolvendo-os. 

Certa vez, Bucky tocou no assunto, sobre como os dois formavam um casal bonito. Disse também que ele era um velho punk e não iria conseguir mais alguma mulher disposta a aceitar um pedaço de museu como ele. E Steve achava que ele estava certo, só que… Era uma responsabilidade e tanto assumir o compromisso, sem falar que estavam confortáveis ao permanecerem como assim, unidos — embora não juntos. Queria fazer Natasha feliz, mas agora, mais que nunca, isso era impossível.

Um som de alarme interrompeu o momento. Vinha da parte central do Complexo, do escritório de comunicação, um tanto longe da área dos dormitórios. Natasha e Steve se entreolharam atônitos, pois não esperavam nenhuma ligação, e logo se puseram a correr até os comunicadores. Em único movimento, Steve liberou a chamada e esperou.

Não era um holograma, como tanto estavam acostumados com seus aliados. Só a voz séria de Erik Lensherr preencheu o ambiente com seu timbre severo.

Rogers. Eu assumo que possa falar agora. — Uma pausa. — Senhorita Romanoff também está presente?

Natasha tremia. Se Magneto estava entrando em contato após tanto tempo… O assunto então era pesado. Os dois se encararam por alguns segundos.

— Sim, senhor. — Ela respondeu a frente de Steve, também tenso e estático. — O que houve?

Um suspiro cansado.

— Algo aconteceu que… Não deveria ter acontecido. Antes que antecipem seu julgamento, saibam que eu não agi sem saber dos riscos, mas eu não fui capaz de lidar mais com sofrimento. Era… Muita dor.

Steve engoliu seco, preocupado. Ele falava de algo que tinha feito à outra pessoa ou a si mesmo? Aproximou-se do painel e acionou comandos para que a ligação fosse rastreada. Não desejava que o líder da nação mutante tivesse cometido uma bobagem irreversível e… tratando-se do aniversário de morte de Wanda Maximoff, Magneto poderia chegado à conclusão de que não existia mais nada na vida. Então para que ter uma?

— O que você fez, Erik?

— Uma heresia. — Outro momento de silêncio. — Pedi o impossível à Natalya e… Ela encontrou um feitiço capaz de trazer pessoas de volta à vida. Pessoas que se sacrificaram.

Não era isso que Steve estava pensando, mas isso não fez com que ele se acalmasse. Natasha falou pelos dois:

— E… deu errado?

— Não. Funcionou. 

A cor da pele de Steve Rogers sumiu, sua pressão despencou. Ele encarou Nat, igualmente pálida, e depois voltou seus olhos a comunicador, esperando. Levou incontáveis segundos até que Erik resumisse o que tanto havia lhe perturbado:

— A questão é que… Quem voltou foi Pietro.

 ***

24/09/2020

Casa de Agatha Harkness, redondezas de Novi Grad.

10:04

Quando Pietro acordou pela manhã, teve a nítida sensação de apenas ter piscado e então despertado no dia seguinte. Seu corpo, apesar disso, parecia mais alerta e ele já conseguia se mover direito, capaz de afinal sentir o chão e a gravidade. Tomou um banho naquele banheiro infestado de cosméticos, plantas e velas, coisa que muito lembrava-lhe os gostos de Wanda; vestiu roupas confortáveis que haviam sido deixadas sobre a cama e comeu mais do que seria educado na cozinha, debruçando-se em ovos, pão, geléia, leite e bolo. Ah, como ele amava doces. Tudo isso quase o distraiu da situação estranha em que se encontrava.

Quase.

Pois, por mais que estivesse alimentado e finalmente vestido, a confusão ainda inundava seus pensamentos. Ele já estava acostumado com as coisas parecerem mais lentas do que deveriam, principalmente depois de ter ganhado poderes, mas havia algo de errado na expressão dos dois estranhos. Estavam agora na sala, ambos sentados no sofá em frente a poltrona onde Pietro estava sentado, como pais preocupados ao proferir um discurso importante para o filho. Ela, trajada em um vestido folgado e quente, apropriado para o frio que soprava lá fora; já ele, com uma blusa preta e relativamente justa, com uma gola alta que ficava bem em poucos.

E eles disseram coisas bem bizarras. Bom, na verdade ela tinha dito. Erik mantinha-se em silêncio. Primeiro, quis rir do que ouviu. Depois achou que isso seria rude demais e o que sua irmã diria disso? Bateria em seu ombro, exclamando seu nome, e depois riria. Ele queria que Wanda estivesse ali pra dizer afinal o que diabos os dois estavam pensando, tão hesitantes, e talvez para debochar um pouco deles junto com ela e quem sabe…

— Pietro?

— Ah. — Ele tamborilou os dedos no encosto da poltrona. Sua mente havia corrido para lugares distantes demais para que a voz dela o alcançasse. — Desculpe, eu… Bom, deixe-me ver se eu entendi: Você se chama Natalya. É a minha tia, aquela mesma tia que nos mandava coisas no final do ano e que um dia… Desapareceu.

— Isso.

Ela sorriu, paciente, enquanto Erik não desgrudava os olhos dele. Havia de fato algo familiar neles, nos dois, Pietro não sabia dizer exatamente o que causava essa impressão sobre Erik. Natalya, como ela própria havia dito, era então sua tia e fazia sentido ele ainda reconhecer vagamente os traços de seu rosto.

— E… De algum modo, minha irmã te salvou de um demônio na Montanha Wundagore. Porque ela é uma bruxa poderosa. A Feiticeira Escarlate.

Pietro não queria que sua voz soasse tão incrédula, mas era impossível. Havia um sorriso frouxo em seus lábios. Não que não acreditasse que sua irmã não era capaz de tudo isso, e aquela alcunha pomposa até combinava com ela, mas… Havia mais coisas naquela história toda. Coisas que ela não disse e por que? 

— Não leve a mal, tia, eu estou feliz de saber que está bem, mas…. — Ele suspirou. — Eu não sei, não parece real. Você ainda é tão jovem e me lembro de você ser da mesma idade que nosso pai.

Natalya Maximoff deveria estar na faixa dos cinquenta anos. Deveria. Porque a mulher que Pietro estava encarando agora parecia ter saído da casa dos trinta há pouquíssimo tempo. Ao ouvir o questionamento, sua tia só balançou a cabeça, enquanto algum inseto parecia ter picado Erik quando ele havia dito a palavra “pai”.

Afinal, quem era aquele homem e o que Pietro estava fazendo ali, longe de Wanda? Erik parecia um homem elegante, bem vestido e permanentemente tenso, de modo que a possibilidade de mexer com seus nervos mais um pouco lhe soou atraente.

— Então… — Apontou para ele. — Você é o marido dela?

Seguiu-se uma profusão de “nãos”, tanto vindos da boca dele quanto dela. E é claro que essa reação exagerada só o fez questionar ainda mais a natureza daquele relacionamento. Aquilo tudo, no entanto, ainda era um problema muito secundário e Pietro aproveitou o embaraço de Erik e Natalya para lançar perguntas mais pertinentes:

— E quando que Wanda conseguiu ir atrás de você, Natalya? Não devem ter passado muitos dias desde… Desde Ultron. Os Vingadores conseguiram destruí-lo, certo? — Natalya engoliu seco e confirmou que sim, mas a cabeça de Pietro na saltava pra outro ponto: — Eu estava em algum hospital próximo de Novi Grad? Eu ainda não entendi como vocês me acharam.

Achava que tinha fugido de algum hospital. Era algo insano, estúpido e patético de se fazer — principalmente nu — portanto ele não achava improvável ter feito exatamente aquilo. Ainda assim, isso também não era a pergunta principal. Ele franziu a testa, seus pés inquietos mesmo sentado.

— E onde está Wanda?

Houve silêncio por um tempo. Por muito tempo? Talvez. Difícil dizer quando se é mais rápido que o mundo ao seu redor. As sinapses dentro da cabeça de Pietro Maximoff achavam aquela pausa torturante, mas de novo ele encontrou forças para ser um pouco mais paciente. Observou bem o rosto duro de Erik, a palidez e o desconforto de Natalya, até que enfim ela disse:

— Ela… Ela não está aqui.

Antes que ele rebatesse aquela afirmação ridícula e que não explicava absolutamente nada, Erik inclinou o tronco, mais perto da beirada do sofá, e adiantou-se:

 — Pietro, o que você se lembra?

O sokoviano piscou.

Tiros, dor. Clint e o rapazinho sokoviano estavam à salvo e ele fez um gracejo tolo. Não viu isso chegando? E então mais nada. 

— Só de estar em Novi Grad e… — Remexeu-se na poltrona, tentando se livrar da sensação das balas atravessando seu torso. Não quis dizer muita coisa, porém. — Olha, eu realmente quero falar com a minha irmã. Ela deve estar preocupada.

Pietro movia a perna naquele seu hábito nervoso, com a ponta do pé apoiada no chão e o joelho trêmulo. Podia ouvir a voz da irmã implorando que parasse com aquilo, coisa que ele sempre ignorava. O que ele não podia ignorar era o silêncio maldito naquela sala, sua irritação crescendo pelo corpo. Então Erik inspirou fundo, a linha de sua mandíbula travada e tensa, finalmente se preparando pra dizer algo.

Houve um sinal, algo como sinos. Era a campainha da casa. 

— Ah, devem ser Steve e Natasha, ou então…

— Não. — Erik a interrompeu. — Emma e Scott estão lá embaixo, vieram pela loja. Ela acabou de me avisar.

Natalya se levantou rápido, aliviada, e saiu da sala, enquanto Pietro estreitava os olhos para aquela última afirmação do homem à sua frente. Não se lembrava de ter visto nenhum celular nas mãos dele, como tinha sido avisado…? Seria ele algum aprimorado, assim como Pietro e sua irmã? Ou melhor, assim como Wanda e seus doces poderes telepáticos? E afinal, por que os dois chamaram visitas?

Eram mais nomes que ele não reconhecia, embora soubesse quem Natasha e Steve eram — supondo, é claro, que eram as mesmas pessoas que Pietro conhecia. Não demorou muito para que as duas pessoas aparecessem na sala: um homem alto, de barba, cabelos castanhos e com um óculos extremamente interessante, de lentes vermelhas e escuras, tanto que nem podia se ver seus olhos. Exalava uma postura confiante com aquela roupa notável, azul marinho e amarela; já a mulher loira ao seu lado parecia mais fria. Além de vestir branco, seu rosto carregava a mesma expressão que  Wanda fazia quando perscrutava o ambiente com sua telepatia e pior: quando fazia isso com raiva. Pietro pôde observar que ela encarou feio Erik por vários segundos até finalmente repousar seus olhos claros sobre ele e sorrir.

— Olá. — Sua voz era macia, coisa que Pietro não esperava. — Você deve ser o Pietro, certo? Eu me chamo Emma Frost.

Ela se aproximou enquanto ele respondia que sim, de repente com a cabeça mais leve, mais desacelerada. Emma tomou o lugar onde antes Natalya estava sentada e o homem, certamente Scott Summers, permaneceu de pé ao seu lado, com uma postura casual. Ele cruzou os braços, depois questionou:

— Já ouviu falar de nós, Pietro?

— Não.

Emma mais uma vez fuzilou Erik como se pudesse - e desejasse - parti-lo em pedaços só com o pensamento. Para o mérito dele, o homem sequer piscou. Só suspirou e buscou Natalya com os olhos, um pouco mais atrás do sofá. Logo em seguida, a mulher loira colocou as mãos sobre o colo e mais uma vez assumiu uma feição mais amigável, um tom até mesmo didático.

— Bem, Pietro… Eu e Scott viemos do Instituto Xavier, nos Estados Unidos. 

Aquilo era o que, uma faculdade? Pietro voltou a mexer a perna, franziu os cenhos. De novo, mais afirmações que não explicavam nada de sua atual situação ou como tinha chegado ali. E pior, que nada lhe diziam sobre Wanda. Ele odiava aquilo, não saber o que estava acontecendo e ficar refém de mais e mais palavras evasivas. Queria correr, sair daquela casa e procurar pela irmã, mas sabia também que nada adiantaria se os Vingadores estivessem protegendo-a num lugar secreto. Sua cabeça voava por hipóteses desconexas, ideias fugazes.

OndeestáaWanda? Porquecaralhoseuaindaestououvindoessaladainha?

 Eutôcomfomedenovo. 

EesseSummers? Óculosmaneiro. QueriaqueaWandaestivesseaqui. 

ElairiaacharoErikengraçado, seráqueelajáconhece ele? Elajáviuanossatia. 

EsealgoaconteceucomaWanda?

Eunãoiriasuportar.Eunãoiriasuportar.Eunãoiriasuportar.Eunãoiriasuportar.Eunãoiriasuportar.

E se algo aconteceu com Wanda?

Ele piscou, de repente sua cabeça mais calma. Os pensamentos iam e vinham num ritmo espaçado, sua perna já nem se movia aflita. Pietro estava no aqui, no agora, e isso até mesmo o fez respirar mais calmo. No entanto, tal acontecimento apenas lançou uma sombra em seus sentimentos. Isso não era natural, podia distinguir a mudança… Pois coisa assim só ocorria quando Wanda tocava-lhe com seus poderes espectrais, para tranquilizá-lo.

Mas ela não estava ali.

Pietro voltou a encarar Frost, que ainda carregava uma expressão calculada no rosto.

— Não precisa ter medo. Sou mutante, igual você. 

Seu coração começou a martelar dentro do peito, talvez mais veloz que antes. Emma estava…? Ele engoliu seco, quis rir, mas era de nervoso.

— Adoraria. — Forçou-se a responder. — Mas sou só um humano aprimorado.

Emma cruzou o olhar com Erik mais uma vez, ainda com raiva… Como se claramente houvesse algo que ele havia deixado de dizer. Entretanto, não fazia sentido. O que o senhor Lensherr saberia sobre Pietro? Tinham acabado de se conhecer.

— Lembra-se dos poderes de sua irmã, certo? Estou aqui para…

Ele se levantou de uma só vez, deixando todos os outros tensos. Pietro sentia seu sangue correr rápido por cada veia e artéria de seu corpo, suando. Mais do que isso, sentia a telepatia sólida e fria como cristal tentando sossegar seus pensamentos, quase como segurasse seu cérebro. 

Estavam tentando manipulá-lo. Para que? Por que?

Não, não. — Rangeu os dentes. Ele mal ouviu a campainha tocar de novo, mal notou Natalya trazendo mais gente até que subitamente rostos conhecidos estivessem ao seu redor. Natasha Romanoff, Steve Rogers. Mas eles estavam diferentes e o encaravam com horror. 

— Onde está Wanda? — Os poderes de Emma Frost não conseguiram acompanhar seu raciocínio, seu pânico e sua ira. Agora ele estava gritando e andava, fazendo força para não simplesmente sair de perto de todos eles. O sotaque sokoviano atropelava suas palavras. — Vocês sabem onde ela está e não me contam! — Encarou o Capitão América, a Viúva Negra. — Onde ela está? Wanda confiou em vocês e eu achei que podia confiar também!

— Somos amigos, Pietro. — A russa deu um passo pra frente, usando o tom que provavelmente usava ao tentar manipular alguém, enquanto Steve parecia ter levado um soco. — Tudo isso é para que você receba as notícias da melhor maneira possível.

— Eu só quero saber onde está a minha irmã!

Antes que Pietro gritasse de novo, virasse a mesa de centro ou alguém afinal falasse alguma coisa, Erik Lensherr se levantou.

— Garoto. — Disse ele, o rosto férreo. — Vou lhe contar tudo o que houve. É justo que saiba o que aconteceu nestes anos todos. 

A raiva de Pietro de súbito se tornou um sopro em suas entranhas. Seus joelhos ficaram bambos, sua boca trêmula. Anos? Talvez tenha ficado em coma.

EsealgoaconteceucomaWanda? Eunãoiriasuportar.Eunãoiriasuportar.Eunãoiriasuportar

Eu não vou suportar.

Porfavor, não; Porfavor, não; Porfavor, não; Porfavor, não.

Não.

— Que ano estamos?

Erik não respondeu. Somente se aproximou, tocou levemente em seus ombros e o conduziu em direção a uma sala privada, talvez o escritório, com móveis de madeira e luz morna.

— Entre, vamos. 

Antes de ir, Pietro encarou bem as expressões de pena e dor de todos o que estavam na sala até a porta ser fechada com um único baque.

***

Minutos escorreram inteiros, algumas horas. Quem sabe duas ou três. Steve Rogers não sabia dizer o quanto e tal situação era uma tortura. Ninguém dizia nada, e é claro, o que diriam? Pietro estava ali, em carne e osso, cinco anos após sua morte. Os cabelos prateados, a voz, o nervosismo e sua preocupação visceral com a irmã gêmea… Não havia dúvidas de que ele se tratava do mesmo Pietro Maximoff. Era inacreditável e terrível, mas era a verdade.

No silêncio, a cabeça de Steve girava. 

Metade de si queria observar Emma Frost e tentar entender o que estava acontecendo no cômodo ao lado, afinal, ela lia mentes e facilmente deixaria transparecer o que Pietro e Erik pensavam. No entanto, tinha também medo de descobrir e, na realidade, a telepata jazia com o rosto congelado, os olhos distantes. Indecifrável, ao lado de Scott Summers.

Então Steve encarou brevemente Natalya, suas mãos trêmulas enquanto levava mais um gole de chá quente até a boca. Naquele gesto, ele enxergou Wanda Maximoff, de modo que o buraco em seu peito ardeu mais fundo. Ela amava chás. Era algo que lhe trazia de volta à Terra quando o luto dela se tornava pesado demais, quando a madrugada se tornava muito longa e insone. Sua garganta apertou-se.

Pietro iria descobrir que a irmã estava morta e que ele também estava, a menos de vinte e quatro horas atrás. O mundo em que viveu havia virado de cabeça para baixo e nem suas relações de sangue eram iguais. Não era filho de Django e Marya Maximoff, mas sim daquele homem que lhe trouxe de volta: Erik Lensherr.

Era demais para qualquer um suportar e Pietro não passava de um pobre rapaz.

Ele fechou os olhos, passou a mão pela barba que novamente deixava crescer. Em seguida, Natasha apertou rápido e de leve o seu joelho, naquele seu jeito de demonstrar que estava ali, mesmo que a situação fosse a pior possível. Steve quis sorrir pra ela, mas não foi capaz. Só inspirou fundo e entrelaçou seus dedos com os dela.

Durou pouco.

A porta se abriu com um estrondo único, despertando todos os cinco de seus devaneios fúnebres. Steve desenlaçou-se da russa e se levantou, assim como Summers, Nat e Frost. Só Natalya permaneceu sentada, ainda triste e reticente, encarando a porta. Quem saiu primeiro do escritório foi Pietro, a cabeça baixa, os ombros tensos. Deu alguns passos e, quando levantou a cabeça, podia-se ver a vermelhidão e as lágrimas em seus olhos.

O silêncio ainda cobria todos.

Steve engoliu seco. Não havia o que dizer, nada no mundo iria consolar tal dor, sabia disso, mas precisava dizer algo. Qualquer coisa. E ele tentou. Se aproximou um pouco do rapaz, abriu a boca. Mas antes que qualquer sílaba tomasse forma em seus lábios, Pietro lhe acertou com um soco potente no queixo.

De repente, ele estava no tapete com Pietro sobre si, golpeando de novo e de novo o seu rosto. Steve foi pego de surpresa e mal conseguia reagir. Parte de si nem queria, assim seus braços permaneceram estendidos ao lado do torso, inertes, enquanto Natalya berrava e Scott tentava separá-los. Sentiu o gosto de sangue, a visão embaçando. 

— Era pra você ter cuidado dela! — Ele gritava, sua voz entre a ira, a dor e o choro. — Você não é um herói? O Capitão América? Era pra vocês terem salvado todo mundo e agora ela…

Houve um som metálico. O corrimão das escadarias ao fundo foi destrinchado de sua base por Magneto, que usou esse pedaço de metal para afastar Pietro de Steve e mantê-lo, dentro do possível, parado.

Natasha xingava, conferindo o estado dele no chão. Em resposta, Steve só ergueu o tronco devagar, ciente de que ficaria com um olho roxo e o rosto inchado. Tateou o tapete abaixo de si para se levantar e sentiu o calor molhado de seu próprio sangue. Scott teve força para sustentá-lo de pé, ainda que bambo, e tudo o que sua visão era capaz de discernir no ambiente era o brilho de Emma em sua forma de diamante, preparada para possíveis novas agressões, e Pietro, remexendo-se e gritando, sua voz cada vez mais exausta, desolada.

— E agora ela… Ela tá morta.

Afinal aquietou-se, só deixando lágrimas escorrerem pelo rosto pálido, preso em metal. Steve não importou-se com a própria face latejando, o nariz e a boca ainda vertendo sangue. Não era ali que a verdadeira dor morava. Mesmo com o sokoviano agora em silêncio, sua voz ainda ecoava nos ouvidos dele. 

Era pra você ter cuidado dela!

Era pra vocês terem salvado todo mundo…

— Eu sei. Eu sei. 

Foi só o que respondeu, a voz fraca. Steve Rogers era um impostor, uma farsa trajando a bandeira americana, e estava ciente disso. Mereceu os golpes em sua face, a possível fratura em seu nariz. Merecia mais. E pior, agora entendia quando Wanda se expunha ao perigo, aos socos das Dora Milaje, a autodestruição. Achava que merecia as piores punições.

E era uma forma de sentir alguma coisa. Qualquer coisa.

Magneto afrouxou o aperto da barra de metal, que caiu com um baque no piso. Eles esperaram alguma reação de Pietro; novos gritos, violência, mas ele só permaneceu ali por vários segundos, encarando o chão. Até que ergueu o rosto, encarou brevemente todos naquela sala e correu para fora da casa, deixando apenas um rastro azul e prateado em seu lugar.

Natalya chamou seu nome, Scott questionou se Frost gostaria de ir atrás dele. Quem deu a palavra final, no entanto, foi Magneto:

— Deixem-o em paz. Ele vai voltar.

A irritação no tom de Natasha foi palpável.

— Como sabe disso?

Uma pausa breve, amarga. 

— Porque ele não tem mais por quem buscar.


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Notas finais do capítulo

*Tentei descrever os pensamentos do Pietro muito acelerados, pulando de um ponto para outro. Por isso está um tanto "mastigado" numa coisa só, até que ele se foque em algo. Enfim, se ficou confuso demais posso mudar.

*Esse capítulo estava originalmente dividido em dois, mas achei que ambos seriam muito curtos e pretendo postar apenas uma vez por semana... Então considerei que seria melhor solta-los de uma vez. Me contem se o ritmo tá bom!

*O capítulo foi revisado, mas existe a possibilidade deste arquivo ser sabotado pela I.M.A. Caso encontre algum erro (seja gramatical ou de continuidade), favor reporte à Shalashaska.

*Sim, eu gosto do ship Scott x Emma também ahsaish

*Comentários são bem-vindos!



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