Amor ao Lado escrita por Júlia Universe


Capítulo 6
Capítulo 6




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Gabriel

Como sempre, eu e ela mergulhamos em nosso mundo particular. Essa sensação provavelmente era ampliada pelo fato de estar sozinho em meu quarto, apenas com a luz da lua e a voz dela como companhia.

Só sei que era assim que me sentia; como se nada mais pudesse nos alcançar. Não havia pandemia, crise, incêndios ou qualquer outra notícia ruim enquanto falava com ela. E a conversa não tinha sentido nenhum, nem precisava ter. Os assuntos variavam dos mais bobos, como o dia em que eu fiquei preso em um banheiro feminino, até os mais sérios, quanto como quando minha avó morreu.

Não sei dizer como, acabamos falando sobre vida amorosa. O que me deixou um pouco tenso, já que minhas experiências foram poucas. Além disso, vinha pensando em Heloísa mais do que deveria nos últimos tempos. Meus amigos já estavam cansados de me ouvir falando sobre como ela é e de repetir em minha cabeça que estou apaixonado. No começo, tentei justificar o frio na barriga, os arrepios e os sorrisos bobos com fome, vento e ao fato de que sempre fui um cara sorridente.

Estava dando errado.

Já estava aceitando que eu via Heloísa mais do que como apenas uma amiga. Apenas não fazia ideia do que fazer com essa informação. Meu amigo podia até ter dito "ela está tão na sua", mas não tinha como ter certeza.

— Algum relacionamento sério? —ela me perguntou.

— Apenas uma vez. Durou apenas 2 meses, não foi muito bom.

— Relacionamentos podem ser uma merda.

Me perguntei se ela já tinha tido algum ruim, mas não tive coragem para perguntar.

— Sim. No meu caso, ela não entendia como eu podia não querer levar as coisas para outro nível. Até conversar sobre isso me deixava um pouco desconfortável.

Esperei ela dizer algo, mas ela ficou em silêncio, dando meu espaço e esperando que eu completasse mais alguma coisa. Suspirei antes de continuar.

— Hoje eu percebo que o namoro não fazia muito sentido. Eu gostava dela e até dizia que a amava, mas não sei explicar bem. Acho que eu estava carente e acabei sendo pressionado pelos nossos colegas para ficarmos juntos.

— Odeio essa pressão ridícula.

— Somos dois. —mordi o lábio— Pelo menos acabou me ajudando a me reconhecer como demissexual. Um ano e meio depois, mas você entendeu.

— Demi é que só sente atração sexual se tiver um laço afetivo, certo?

— Resumidamente, sim. Não preciso de um laço tão forte, de anos ou coisa parecida, como outras pessoas, mas ainda preciso de um para sentir atração sexual. E, no caso, o que eu tinha com a minha ex não era forte o suficiente.

— Que merda. Eu sinto muito. Mas que bom que você conseguiu se entender melhor depois disso.

— Foi complicado. Até hoje, por eu ser hétero, não sei se me sinto parte da comunidade LGBT. Me sinto estranho, como se ocupasse um lugar que não é meu. Ainda passei por toda a questão do: eu sou mesmo demi ou apenas estou inventando algo para fazer parte do grupo? Minhas experiências são um pouco diferentes das que via outros demissexuais compartilhando e isso sempre me deixava com um pé atrás. —ri de nervoso, mordendo o interior da bochecha— Mas acabei me aceitando e ignorando o que os outros diziam.

Engoli em seco, com as bochechas coradas. Tinha agradecido mentalmente por ela não ter me invalidado ou feito a pior piada do mundo; "Então você é fã da Demi Lovato?", apesar de saber que ela nunca faria nenhuma dessas duas coisas. Devo ter ficado quieto por muito tempo, pois ela completou:

— Você é muito válido. Sabe disso, né?

O sorriso dominou meu rosto ao mesmo tempo em que as borboletas dançaram no meu estômago. Era cansativo ler, por toda a internet, pessoas, às vezes até da própria comunidade, invalidando a assexualidade. Era revigorante falar com pessoas que me entendiam e apoiavam.

— Obrigado, Helô. De verdade. Você também.

— Obrigada.

O silêncio pairou entre nós, mas não era desconfortável. Ficamos ali, como se estivéssemos lado a lado, apenas aproveitando a companhia um do outro, por mais que fosse apenas através de um telefone. Poderia ficar assim com ela até dormir.

Heloísa foi a primeira a voltar a falar. Ela contou sobre seu primeiro beijo com uma garota; em uma viagem para a praia no ano novo. A história era engraçada já que — nas palavras dela — ela era apenas uma garota atrapalhada de 14 anos.

— E foi aí que eu finalmente encarei os fatos. Heloísa, você é bissexual.

— Uau. Não faço ideia de como seja isso. Foi difícil?

— Acho que nunca é fácil. Passei um bom tempo me questionando mesmo antes disso. Me perguntava: o que estou sentindo é apenas admiração ou eu quero beijar a Selena Gomez? Depois que cheguei a conclusão de que eu realmente me sentia atraída por garotas, comecei a me perguntar se sentia algo por homens ou se era apenas heterossexualidade compulsória.

— E...

— Você já sabe a resposta. Eventualmente fui me entendendo melhor e estudando mais sobre bissexualidade, panssexualidade... Fiquei por um tempo sem ter coragem pra me definir até me identificar como bi. E isso foi como tirar um peso dos ombros.

— Imagino que tenha sido tranquilo com seus pais.

— É. —ela riu do outro lado— Eles me apoiaram muito durante todo o processo. Sou muito sortuda por isso. Por causa deles, sempre tive contato de uma forma muito natural com a comunidade, o que fez com que fosse mais fácil me aceitar como sou e entender que não sou "errada" ou "indecisa".

Concordei com a cabeça, esquecendo por um momento que ela não podia me ver. Ia abrir a boca para responder quando ela suspirou, parecendo triste. Franzi a testa, recapitulando tudo que tinha dito até ali para pensar se tinha feito algo errado.

— O que foi? Se eu tiver sendo chato ou se não quiser falar sobre isso...

— Não. Não é isso, Gab. Eu não tenho problemas em falar sobre a minha sexualidade e a minha vida. Só fico triste quando lembro que a maioria não tem a mesma sorte que eu. Eu e minha família já ajudamos várias pessoas que foram expulsas de casa quando se assumiram. Uma vez, uma amiga dos meus pais precisou correr para nossa casa, pois estava fugindo de dois homens que a ameaçaram no bar da esquina.

— Caralho. Eu sinto muito.

Essas notícias sempre me deixaram enfurecido. Amor é o sentimento mais puro, lindo e natural que um ser humano é capaz de sentir. Querer reprimir, julgar e atacar alguém por amar, independente de quem seja, é um absurdo. Acho que os comentários que mais me irritam são os que usam a bíblia. Não sou um cara muito religioso, mas acredito em Deus. E acredito que a lei Dele que está acima de todas é a de amar ao próximo e isso vale mais que qualquer outra interpretação de um texto antigo.

— Helô... Posso fazer uma pergunta?

— Claro. —ela respondeu, mas parecia receosa— O que é?

— Você já foi atacada por isso?

Ela ficou em silêncio por um tempo e comecei a me questionar se eu devia ter falado aquilo. Porque eu fui falar? É óbvio que, se algo já aconteceu, ela não ia querer falar sobre.

— Não precisa responder se não quiser. Me desculpa, não devia...

— Tá tudo bem, Gabriel. Nunca aconteceu nada muito sério, como ser perseguida, agredida ou coisa do tipo. Foram mais comentários. —sua voz ficou um pouco trêmula— Na internet, quando eu postava sobre. Além das coisas que eu tinha que ler por causa do meu corpo, já que nunca me encaixei no padrão, ainda tinha muitos comentários maldosos sobre minha sexualidade.

Fiquei em silêncio enquanto ela desabafava. Deixei que ela falasse tudo que queria e tirasse aqueles sentimentos do peito. Meu coração se apertou diante das histórias que ela contava, sobre anônimos na internet, mas também com os próprios colegas de turma. Queria ter a conhecido antes. Talvez, se estudássemos juntos, se a conhecesse a mais tempo, talvez poderia ter a ajudado a enfrentar ou mesmo ter evitado algumas situações. Mas sabia que, infelizmente, era algo que ela teria que lidar durante sua vida e havia muito fora do meu controle.

Heloísa se abriu de uma forma que ia além de qualquer conversa que já tivemos antes. Talvez a escuridão total e as palavras sussurradas tornassem mais fácil. Ela contou sobre como foi quando começou a namorar uma garota, como tinha ido em todas as paradas LGBTs desde os 12 anos com os pais e todos os comentários nojentos que já tinha aguentado, principalmente na infância tendo dois pais.

— E não é só isso. Já ouvi muita merda homofóbica, racista e gordofóbica. Eu e meus pais já fomos para a praia várias vezes e é sempre a mesma coisa. Os olhares que nos lançam... Eu me sentia nojenta e ficava tentando me esconder e entender o que tinha de errado em nós.

— Não tem nada de errado em você.

— Hoje eu sei disso. Sempre fui considerada acima do peso e cresci, por muito tempo, odiando minha pele e meu corpo. Meus pais e meu irmão me ajudaram muito a entender que sempre vão querer me jogar pra baixo, mas que eu preciso ser forte.

— E você é. Não consigo imaginar como deve ser ter que lidar com tanta coisa desde pequena. Queria poder te proteger disso tudo.

— Gab...

— Você é maravilhosa, Heloísa. E qualquer um que discorde não deve ter mais que um neurônio funcionando. —ela riu de forma anasalada— Estou falando sério! Seus colegas tem sorte de não me conhecerem, se não estariam ferrados comigo.

— Exagerado. Você não precisa se preocupar.

— Eu sei. Você é bem mais forte que eu, de todo jeito. Ainda assim me preocupo, porque gosto de você. Ainda bem que vai formar esse ano e ficar livre.

— Mas preciso continuar lutando. Mesmo que seja desgastante, eu não posso parar. Se eu puder fazer o mundo um lugar melhor, nem mesmo que só 0,1 por cento, já vou ficar feliz. Só não consigo ficar quieta. E nem quero.

Adorava quando ela contava sobre seus sonhos. Era emocionante a forma como ela falava sobre querer deixar sua marca — causar um impacto real na sociedade. Não é a primeira vez que ela menciona isso e toda vez consigo perceber como isso é importante pra ela. A emoção e o carinho que coloca nas palavras é palpável.

— E não deve ficar. Você vai mudar o mundo, eu tenho certeza.

— Você está me superestimando.

— Não, não estou. —engoli em seco— Não sei como você não consegue enxergar o mesmo que eu.

— Como assim? —a voz dela estava baixa, sussurrada.

— Às vezes parece que você não percebe o quão sensacional é. Seus desenhos são incríveis, sua história também. E a forma como você fala sobre seus sonhos, sobre querer ajudar as pessoas... Dá pra sentir o tanto que isso importa pra você. É lindo e contagiante. Dá vontade de estar sempre por perto, porque você tem essa energia boa, sabe?

Disparei a falar, olhando para o feixe de luz da lua que entrava pela janela. Muita coisa tinha mudado desde o dia em que a vi no prédio ao lado pela primeira vez. Quando comecei a tentar chamar sua atenção, não esperava encontrar uma amiga como ela, com quem eu ia desenvolver uma conexão tão sincera e real.

Uma amiga pela qual eu iria me apaixonar.

— Uau. —ela respondeu, depois de algum tempo ouvindo apenas as nossas respirações.

— Eu disparei a falar, desculpa.

— T-Tudo bem. —ela gaguejou, nervosa— Eu só não estava esperando por essa. Não sei reagir a elogios assim.

— Tem mais uma coisa que eu queria falar.

Senti meu coração disparar assim que as palavras escapuliram da minha boca. Mordi o lábio, tenso, repensando se realmente queria fazer aquilo. A escuridão e o silêncio quase absolutos da madrugada me davam coragem, mas, em algum momento, o sol voltaria e nenhum de nós poderia esquecer o que foi dito.

Provavelmente era uma péssima ideia — mas tudo só tinha começado por causa de uma ideia assim, não foi?

— O quê? —ela perguntou, depois de algum tempo.

— Eu gosto de você, Heloísa.

— Eu sei, você é meu fã. —ela respondeu, com uma risada nervosa no final.

— Sou mesmo, mas não é desse jeito que estou falando. —tossi, limpando a garganta— Eu gosto muito de você. Acho que mais do que como uma amiga.

Silêncio.

Meu coração batia tão alto no peito que chegava a ser ensurdecedor. Minhas mãos tremiam intensamente e eu já começava a me arrepender de ter aberto a boca. O que eu tinha feito? Tinha arruinado minha amizade com ela?

Um minuto se passou, mas parecia uma hora.

Devia falar alguma coisa? Chamar por ela? Fingir que a ligação caiu e que tudo isso não passou de um grande delírio?

Não. Eu precisava tirar isso do meu peito e ela merecia saber. Se havia alguma chance de Heloísa Palhares sentir o mesmo que eu, por menor que ela fosse, eu precisava arriscar. Sabia das consequências, mas era melhor tentar do que viver na dúvida do que poderia ter sido. Se ela me der um fora agora, vou encontrar uma maneira de superar e manter nossa amizade. Vamos dar um jeito.

— Você não precisa... —voltei a falar, mas ela me interrompeu antes que eu pudesse terminar.

— Meus pais acordaram. Preciso dormir antes que eles me xinguem. Depois nos falamos. —ela disse, quase atropelando as palavras.

E desligou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.

Fiquei algum tempo encarando o quarto vazio, ainda no escuro total. Parte de mim queria socar a parede e outra queria apenas se encolher chorar. Não fiz nenhuma das duas, porque a primeira acordaria minha mãe e a segunda seria impossível de parar depois que eu começasse.

Parabéns, Gabriel! Você estragou tudo, como sempre.

 


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