Amor ao Lado escrita por Júlia Universe


Capítulo 5
Capítulo 5




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Gabriel

Eu nunca quis tanto abraçar alguém em toda a minha vida quanto no momento em que ela começou a chorar na minha frente. Precisei usar toda a minha força de vontade para me lembrar que ainda estamos vivendo uma pandemia mundial e aquele movimento poderia assustá-la mais do que ajudar. Ainda assim, não aguentei não encostar nela. Felizmente, ela também não me impediu.

Era difícil agir naturalmente quando estava próximo da garota que poderia ser, facilmente, a mais incrível que conhecia. Mesmo suja da cabeça aos pés de tinta, água e seja lá o que era aquilo em seu cabelo — ela ainda conseguia ser desconcertante.

Droga, podia ouvir as vozes dos meus amigos gritando em meus ouvidos "gado!".

Me forcei a manter meu foco no objetivo da minha ida até ali; limpar o quarto. A ajudei a recolher os desenhos destruídos, com um leve aperto no peito. Limpamos a água e a tinta, usando os panos e rodos. Tentava fazer piadas para aliviar o clima e ignorar os sons altos dos trovões do lado de fora. A chuva tinha diminuído, mas continuava forte.

Sabia que tinha assustado minha mãe por sair tão de repente — o que me renderia uma longa conversa para conseguir me explicar. Mas tinha valido a pena, porquê Heloísa estava pior do que queria admitir inicialmente. Me sentia bem por poder ser o apoio dela e ser útil de alguma forma.

Demoramos um bom tempo para limpar tudo, mas, quando terminamos, me virei para ela, empolgado e levantando uma mão no ar.

— Acho que acabamos! Bate aqui, melhor amiga!

Ela se virou, passando a mão na testa e revirou os olhos antes de bater sua mão contra a minha em um high-five.

— Nunca vai superar isso de melhor amiga?

— Mas nós somos melhores amigos, uai! Não tem o que superar. —falei, dando de ombros e sorrindo, mesmo sabendo que ela não podia ver.

— Você é exagerado demais. —ela balançou a cabeça de um lado para o outro, provavelmente pensando "ele é um idiota." e sabia que estava certa.

Um silêncio constrangedor pairou entre nós. Heloísa olhou para os pés descalços e começou a brincar com a infinidade de pulseiras coloridas que usava em seu pulso, inclusive uma da bandeira bissexual, que não sabia que ela era. Olhei ao redor, me demorando mais agora nas coisas que haviam ali, curioso com o que mais poderia descobrir sobre ela. Heloísa era como um baú dos tesouros e eu queria conhecer cada um dos que ela guardava em sua mente. A cada nova descoberta, ela se tornava ainda mais interessante.

— Obrigada. —ela sussurrou, de repente, cortando o silêncio sufocante— Por me ajudar. Eu realmente estava precisando de companhia.

— Não precisa agradecer, Helô. —coloquei as mãos nos bolsos, sem saber o que fazer com elas— Vizinhos são para essas coisas.

— É. Acho que são, mas obrigada mesmo assim.

— De nada. —tirei um chapéu invisível da minha cabeça— Sempre ao seu dispor.

Ela mordeu o lábio e trocou o peso das pernas, tímida novamente. Eu concordei com a cabeça e olhei ao redor uma última vez. Será que um dia irei entrar aqui novamente? —me perguntei, antes de dar um passo em direção á porta.

— Já que o pânico foi contido e o crime solucionado, acho que preciso ir embora.

Por favor, me peça para ficar. Me xinguei internamente pelo pensamento; você sabe que isso não vai acontecer, Gabriel.

— É verdade. —ela respondeu, depois de piscar algumas vezes, como se fosse arrancada de um transe— Meus pais já devem estar voltando.

— Mais um motivo para eu ir bem rápido. Afinal, ainda preciso encarar uma longa jornada de volta. —brinquei, saindo para o corredor.

— Muito longa. —ela riu, antes de me seguir e me guiar novamente pelo caminho até a entrada.

Parei ao lado da porta, observando tudo ao redor uma última vez antes de me virar para me despedir de vez. O apartamento dela era muito mais colorido que o meu, cheio de almofadas diferentes, plantas e quadros. Pude ver uma foto dela pequena junto dos dois pais e o irmão, sorrindo felizes cheios de glitter nos rostos durante o carnaval — queria memorizar o máximo que conseguisse do mundinho dela.

— Até mais, vizinha. —pisquei, pegando minha capa de chuva.

— Espera. —ela respondeu, me fazendo congelar no lugar.

— Sim?

— Já que você me ajudou e, bem, está chovendo demais para conversarmos pela janela... —ela tirou uma mecha de cabelo do rosto, tentando falar— Eu estava pensando que poderia ser legal se a gente... —levantei uma sobrancelha, pensando onde ela queria chegar com aquilo— Não faça essa cara!

— Que cara?

— Essa! Eu sei que você está sorrindo, Gabriel. —ela cruzou os braços, tentando conter o sorriso— Não vá ficando muito empolgado.

— Com o quê? Você não terminou de falar.

A essa altura já sei que ela está tentando pedir o meu número, mas é divertido demais irritá-la e vê-la se embolar com as próprias palavras ao ter que admitir que de fato gosta das nossas conversas.

— Você é ridículo e eu sei o joguinho que você está jogando.

— Que jogo, Heloísa? Você me pediu para esperar para falar algo, eu estou apenas curioso com qual é a sua questão! —falei, com falsa inocência, inclinando a cabeça para o lado.

Ela revirou os olhos e bufou, enroscando as pulseiras nos dedos.

— Qual seu número?

— Eu calço 44, porquê? Vai me dar um tênis de presente?

Ela me deu um soco no ombro.

— Ai! —resmunguei— Doeu.

— Era para doer mesmo. —ela sorriu— Mas estou falando sério, acho que podemos nos adaptar ao século em que vivemos e abandonar as folhas de papel. Sabe, como adolescentes normais.

— Poxa, mas pensei que você gostasse dos meus aviãozinhos. —respondi, tirando o celular do bolso— E acho que nós dois sabemos que eu não sou alguém normal.

— Não mesmo. —ela riu, trocando de celular comigo.

— Vou salvar o contato como "melhor amigo bonitão"!

— Eu vou mudar depois, sabe disso, né? —ela respondeu, sem tirar os olhos da tela.

— Porquê? É o nome perfeito para você me reconhecer. —devolvi o celular para ela.

— Você é impossível, sabia?

— É o meu charme. —pisquei para ela, pegando meu celular de volta— Não acredito que você colocou só Heloísa! Serei obrigado a trocar.

Ela revirou os olhos, sorrindo e me empurrou para o lado de fora. Ajeitei a capa de chuva uma última vez e chamei o elevador, ansioso pelo momento que poderia me livrar daquela máscara, mas, ao mesmo tempo, desejando poder ficar mais.

— Não se preocupe, vai ser um contato bem legal.

— Tchau, Gabriel. —ela disse, já começando a fechar a porta.

— Até mais tarde, Helô. —sorri e acenei antes de entrar no elevador.

Arranquei um lado da máscara assim que entrei, respirando fundo. Sorri de orelha a orelha, com as costas apoiadas na parede. Ela tinha pedido meu número — isso era um bom sinal, não era? Torcia para que fosse, pois achava que estava começando a gostar mais dela do que o planejado. Era isso ou eu estava mesmo com muita fome. Eram as únicas coisas que conseguia pensar para justificar aquela estranha sensação na barriga.

Demorei exatos dois minutos para estar em casa. E depois levei cerca de uns quarenta para explicar para minha mãe porque o filho dela tinha saído correndo de repente no meio de um temporal, dizendo que era uma emergência. Mas, quando fiquei livre, corri para minha cama, me jogando entre os travesseiros e tirando o celular do bolso.

Fui o primeiro a mandar mensagem.

"Oi! Sentiu minha falta?"

"Você acabou de sair daqui."

"Eu sei, mas estou entediado e queria conversar."

"Tudo bem. Sobre o quê?"

Droga, não tinha pensado nessa parte. Geralmente as garotas que puxam assunto comigo. Quem eu queria enganar? — Elas nem falavam comigo direito.

Fiz uma pesquisa rápida no google antes de responder: "assuntos interessantes e curiosos". Quando encontrei o que achei que seria perfeito para ocasião, enviei:

"Você sabia que a maioria das vacas não consegue descer escadas?"

"Que?"

"Pois é! Eu também não sabia. Quer dizer, o quanto sabemos sobre as vacas?"

"Por favor, se você for agroboy me avisa para eu te bloquear de uma vez."

(...)

Do nosso jeito incomum e ao mesmo tempo natural, a conversa fluía. As horas passavam sem que eu percebesse. Era fácil conversar com Heloísa, de uma forma que era diferente de qualquer outra pessoa com quem eu falava. Mesmo com meus papos malucos e ideias aleatórias, ela não me tratava mal — pelo menos não na maioria das vezes — e também rendia os assuntos e, sem que nos déssemos contas, já estávamos virando a madrugada conversando sobre tudo.

E eu estava adorando cada segundo.

As duas semanas que se seguiram foram incríveis. Não abandonamos a janela, porquê já tinha se tornado um costume, mas começamos a trocar mensagens o tempo todo. Uma noite até consegui a convencer de jogar among us comigo, um jogo onde somos astronautas tentando manter uma nave no espaço enquanto um ou dois matam todos os outros. E ela me matou logo de primeira; o que usei para me vingar mais tarde. A diferença foi que ela ganhou e eu perdi — maldito seja o ciano que me acusou.

— Sorte de principiante!

— Depois de cinco rodadas? Aceita logo que eu sou uma jogadora nata e muito melhor que você. —ela respondeu, do outro lado da chamada de voz.

— Nunca!

Voltei a focar no jogo, me preparando para uma nova partida. A tela estava carregando quando um barulho alto soou, vindo da rua. Segundos depois, a luz apagou e a escuridão dominou. A chamada de voz desligou sozinha com a queda do wi-fi e o único som que restava era o da chuva. Tentei ligar o 4G, mas não estava funcionando. Como eu consegui esgotar o meu pacote em plena pandemia? Eu nem saía de casa!

Empurrei a cadeira de rodinhas para longe da mesa, rodando pelo quarto. Vi minha mãe passar pelo corredor, provavelmente indo pegar a lanterna grande que guardava na cozinha ou alguma vela. Estava acostumado com o fato dela estar acordada até tão tarde, já que nós dois sempre fomos mais produtivos á noite. Estava distraído quando um feixe de luz branca invadiu minha visão, me forçando a semicerrar os olhos.

Impulsionei a cadeira até a janela, com uma mão na frente do rosto. O sorriso surgiu involuntariamente assim que vi Heloísa, do outro lado, balançando o celular com a lanterna acesa na minha direção. Acendi a minha também, mas a coloquei embaixo do queixo, imitando uma cara brava e assustadora. Helô revirou os olhos, mas fez o mesmo, imitando caretas que deviam ser medonhas, mas acabavam sendo apenas engraçadas.

Quando cansou, balançou o aparelho na minha direção, com a expressão confusa. Balancei a cabeça, tentando sinalizar que estava sem internet. Ela continuou me encarando sem entender, uma mão levantada no ar. Desisti de tentar me comunicar e disquei o número dela.

— Tô sem 4G. —falei, assim que ela atendeu.

— Como você conseguiu gastar seus dados em casa?

— Também não faço ideia. —dei de ombros, mesmo sabendo que ela não podia me ver.

— Parece que a luz acabou na região toda. Provavelmente por causa de um raio.

— Só porque eu ia ser o impostor e ganhar. O universo está contra mim!

— Exatamente. E eu sou a escolhida da profecia, sou a protagonista invencível!

— Isso me faz o quê? O alívio cômico?

— Você se acha engraçado mesmo, hein?

— Sim. Quer dizer... É o que dizem por aí.

— Preciso avisar para essas pessoas pararem de alimentar o seu ego. Se não você fica insuportável e... —ela parou de falar de repente.

Pude ouvir alguma conversa distante, provavelmente com um dos seus pais. Olhei para o relógio largado na escrivaninha apenas para verificar o que já imaginava; já passava de uma da manhã. Provavelmente ela estava levando um sermão por ainda estar acordada.

— Desculpa. —ela apareceu, sussurrando— Era só meu pai me mandando ir dormir.

— Imaginei. —sai de perto da janela, me jogando na cama e encarando o teto— Acho que é agora que desligamos, então.

— Está querendo se livrar de mim, Gabriel?

— Não! —respondi, rápido e alto demais, o que me fez limpar a garganta em seguida para disfarçar— Não. Eu só pensei que você fosse deitar.

— Eu estou deitada, mas não vou dormir. Só preciso falar baixo para que meus pais não saibam. Mas se você tiver cansado, não tem problema. Não quero te prender ou... —ela começou a falar rápido, o que fez com que eu sorrisse sozinho no quarto escuro.

— Está tudo bem por mim, Helô. Estou acostumado a ficar acordado até tarde. Sou como um morcego. E... —senti meu coração acelerar enquanto pensava se diria algo ou não. Quer saber? Foda-se— E eu gosto de conversar com você, não quero parar.

Pude ouvir sua risada, provavelmente de nervoso, e quase podia vê-la na minha frente revirando os olhos. Queria que ela realmente estivesse aqui, deitada ao meu lado. Talvez assim ela percebesse que não havia nenhum tom de brincadeira em minhas palavras.

— Eu não tenho mais nada para fazer mesmo. 

Vinha falando com Heloísa a tempo suficiente para aprender algumas coisas sobre ela. Como que sua série favorita é Julie e Os Fantasmas (as duas versões), que sua cor favorita é amarelo e que ela, muitas vezes, fala uma coisa querendo dizer outra. Estava, aos poucos, criando um dicionário mental; o que Heloísa Palhares realmente quer dizer.

Por exemplo, "eu não tenho mais nada para fazer mesmo." significa "eu também gosto muito de conversar com você e não quero parar, mas não vou admitir".

Outro que gosto muito também é: "Você é um idiota." que traduz-se para "Você é maravilhoso, lindo e engraçado".

Bem, talvez — só talvez — eu não fosse exatamente imparcial nas traduções.


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