Sinais escrita por Sirena


Capítulo 8
Cachorros e Brigas de Família


Notas iniciais do capítulo

Obrigada a Natália, heywtl, Minnie, Isah Doll, fran_silva pelos comentários lindissimos ♥



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Ícaro

Peguei a lista de compras e franzi a testa. Não era muita coisa, seria rápido. Mesmo sabendo que a Lexi não tava em casa, olhei em volta como se esperando que ela se materializasse ao meu lado.

“Tem certeza?” — minha mãe perguntou, provavelmente notando o nervoso no meu rosto.

Dei de ombros e peguei um bloco de notas e uma caneta. As compras semanais no mercado eram minha obrigação. Lexi comprava os pães na padaria de manhã e, uma vez por semana eu ia ao mercado comprar massa de bolo ou de pastel, ou de lasanha, ou qualquer lanchinho que estivesse faltando em casa. Meus pais ficavam com as compras pesadas, as compras do mês.

Apesar dessa ser minha obrigação desde os doze anos, teve os momentos em que Lexi assumiu essa obrigação por causa de toda aquela história de eu não estar saindo de casa. Então, eu ainda estava me acostumando a fazer certas coisas.

Minha mãe era mais boazinha comigo quando se tratava de sair do que meu pai. Ela era mais compreensiva comigo e ele era mais compreensivo com a Alexia desde que me entendo por gente. Meu pai era compreensivo também claro, mas logo perdia a paciência com a minha teimosia, ele era bem protetor comigo, sempre atento a qualquer sinal de que eu não estava bem.

Acho que no fim, minha mãe era mais boazinha comigo porque eu sempre fui bem mais apegado a ela, por várias questões. Eu amava música tanto quanto ela, mesmo que isso não fosse exatamente algo da cultura surda. A maioria de nós não liga muito pra música, não sente as vibrações das notas e nem nada, mas, minha mãe era professora de balé numa escola de dança para crianças com deficiência, ensinando crianças surdas, cegas e etc.

Na cozinha sempre estava tocando Beethoven. Tchaikovsky era meu favorito, mas Beethoven era o predileto da minha mãe. Não só por causa da música em si, mas, toda a história dele: o cara ficou surdo no meio da vida, numa época em que não existiam aparelhos auditivos e mesmo assim conseguiu compor diversas sinfonias adaptando o piano e usando amplificadores de zinco bem grosseiros para conseguir sentir as vibrações.

Dona Marina sempre fez questão de cercar a gente com histórias assim para que eu não visse nunca surdez como limitação. Cresci sentindo as vibrações das sinfonias de Beethoven na cozinha, vendo quadros de Goya e sou capaz de recitar de cabeça toda a biografia de Andrew Foster e da Helen Keller.

Minha mãe é bailarina, com bacharel em dança e licenciatura em Letras-Libras e também já foi modelo. Eu sempre achei injusto ela não ter ganho o concurso Miss Surda Brasil quando participou.

Enfim... Eu gostar de música e de tocar teclado, desde criança me fazia correr primeiro para minha mãe e depois para o meu pai. Alexia gostar de jogos online, a fazia sempre correr para ele primeiro. Eu acho justo, sabe... A gente não gostava de dividir absolutamente nada, especialmente atenção.

Afastei esses pensamentos, me focando na lista de compras e confirmando duas vezes que não tinha esquecido de anotar nada. Dei um beijo na bochecha da minha mãe antes de sair.

É, seria rápido. Não precisava me preocupar. Além do mais, não era como se fosse a primeira vez que eu ia fazer compras sozinho, faço isso desde os onze anos. É de boa... Eu estava com um mau pressentimento hoje, mas, estava de boa.

Peguei o ônibus e desci no ponto do mercado, lendo e relendo a lista várias vezes, tentando lembrar em qual corredor ficava cada item.

Não tinha porque ficar nervoso, pensei, descendo do ônibus minutos depois. Era a mesma coisa de sempre. Não tinha intérprete em lugar nenhum e a moça do caixa preferencial não sabia Libras, então eu pegaria qualquer caixa que tivesse a menor fila. A galera que trabalhava colocando as coisas na prateleira também não sabia, então se eu precisasse perguntar qualquer coisa, escreveria numa folha do meu bloquinho.

Simples.

Nada podia dar errado.

***

Uma coisa deu errado.

Bem errado.

Errado nível surpreendente.

Tinha um ser loiro, ouvinte, desconhecedor de Libras e provavelmente desprovido de inteligência grudado em mim. Onde caralhos aquele garoto morava para estar no mesmo mercado que eu?

Eu simplesmente estava tentando encontrar a massa de pastel, quando aquele ser surgiu do inferno, me puxando pelo braço com uma expressão que me dizia que ele provavelmente me chamou em voz alta várias vezes sem se tocar no óbvio fato da minha surdez.

Eu teria saído correndo se tivesse tido a oportunidade.

Sinceramente, foda-se o que o Mathias disse sobre ele ser bom amigo ou sei lá, Eric era um babaca. Sei disso porque ele estava simplesmente grudado em mim, me puxando pelo mercado com a mão no meu ombro e a mão dele era pesada. Mas, isso não era o pior! Nem de longe! O pior é que ele não parava de falar e isso não fazia sentido algum! A boca dele não parava de se mexer e eu só conseguia me perguntar o que caralhos leva uma pessoa a falar oralmente com um surdo que não sabe leitura labial. É sério, o quê?

Eu só queria a porcaria da massa de pastel. Era literalmente tudo que estava faltando para eu poder ir para o caixa e voltar para o conforto da minha casa onde as pessoas falavam com as mãos.

O que afinal ele tinha tanto para falar? Quer falar comigo? Me manda um e-mail! Não pesa meu ombro desse jeito!

Grunhi irritado e Eric me olhou curioso, arqueando a sobrancelha e falando ou perguntando algo.

Por um instante, pensei em tentar falar, mas bem a tempo me lembrei o quanto tentar oralizar podia ser frustrante especialmente quando eu estava há tantos anos sem praticar e tirei o bloco de notas do meu bolso. Estava segurando a caneta com tanta força que a folha afundou onde eu escrevia. Não estava com cabeça para atender as normas do português escrito, então escrevi na gramática da minha língua mesmo.

“Eu precisar ir. Comprar massa pastel.”

Eric arqueou a sobrancelha lendo o que eu tinha escrito antes de franzir os lábios e voltar a puxar meu carrinho de compras me obrigando a ir atrás dele.

Olha só, quer saber? Sim, eu estava com dificuldade para achar a porcaria da massa, mas, eu não precisava de ajuda! Decididamente não precisava da ajuda de um cara que não sabe falar em Libras e aparentemente não entende o conceito de surdez.

Cogitei deixar o carrinho pra trás e ir pra outro mercado bem longe, correndo. Mas, me toquei que ter que recomeçar todas as compras levaria tempo e me faria chegar muito tarde em casa, então fui atrás, mantive minhas mãos nas costas, fazendo sinais nem um pouco lisonjeiros.

Eric indicou sorridente a prateleira de frios onde estavam as massas.

Forcei um sorriso amarelo enquanto pegava uma, ansioso para ir embora. Mas, claro que minha tortura ainda não tinha acabado. Eric me acompanhou até o caixa ainda falando, e gesticulando exageradamente com a mão livre enquanto a outra puxava meu carrinho de compras, olhando pra mim sobre o ombro vez ou outra.

Suspirei alto, me contentando em apenas observar porque era tudo que eu podia fazer nessas situações. Eric falava bastante, mas não parecia ser de um jeito animado. Algumas pessoas olhavam quando passavam pela gente então, vou chutar que o fato de eu não poder ouvir fez ele se sentir confortável o bastante para desabafar sobre só Deus sabe o que.

Mesmo com minha leitura labial sendo falha e mesmo que, apesar de tudo, ele estivesse falando diretamente comigo, preferi mudar meu foco para as pessoas ao redor a mantê-lo no Eric. Não sei, mas quando me dei conta que era um desabafo, me senti desconfortável em manter minha atenção ali. Não parecia certo.

Me foquei nas pessoas que passavam ao redor, as crianças tentando escolher uma pasta de dente com sabor, os empregados ajeitando os produtos nas prateleiras. Analisei os caixas tentando decidir qual estava mais vazio. Eric parou um instante no corredor pra pegar um pacote de bolacha antes de voltar a puxar meu carrinho. Cruzei os braços revirando os olhos. Resolvi guardar um instante da minha atenção para o que ele tinha na cesta de compras.

Nada de mais, só biscoito e massa de bolo.

Deixei Eric passar as compras dele primeiro e respirei fundo quando chegou minha vez. Fiz o sinal de surdo para a atendente enquanto colocava minhas compras no balcão. Pelo canto dos olhos, vi Eric falar algo pra ela.

Entreguei o cartão para fazer o pagamento e fiz careta ao reparar que não só Eric continuava ali, como se esperasse por mim, como também reparei que a atendente estava falando algo com ele. Não precisei saber ler lábios para entender que ela estava perguntando se eu iria pagar no débito ou no crédito.

Bati no balcão para atrair a atenção dela de volta pra mim porque assim... QUEM ELA TÁ ATENDENDO SOU EU!

Levantei a mão na configuração de D. Era um sinal simples que qualquer pessoa sabia, fazer o sinal para débito seria inútil, então normalmente eu só fazia a letra e entendiam. A atendente olhou para mim antes de voltar o olhar para o Eric, pela expressão no rosto dela tive a impressão de que estava confirmando com ele se o pagamento era em débito.

Bati no balcão de novo, irritado. A mulher me olhou assustada, enquanto eu fazia novamente o sinal de D. Eu vinha nesse mercado com frequência então não era como se fosse uma novidade pra ninguém como era me atender. Nunca precisei de ajuda pra isso, então era ridículo olhar para o Eric quando quem estava pagando era eu.

Inferno.

A mulher pareceu hesitar antes de concordar com a cabeça.

Tamborilei os dedos na mesa, observando Eric pelo canto do olho. Ele me encarava com as sobrancelhas arqueadas como se estivesse esperando pra ver até que ponto eu conseguia fazer aquilo sozinho. Humilhante. Irritante. Fechei as mãos um instante e tive que respirar fundo para me manter calmo. Ou o quão calmo era possível pra mim ficar naquela situação.

Agradeci mentalmente enquanto digitava a senha do cartão, contando os segundos para sair dali logo, para acabar aquela humilhação o quanto antes. Ajeitei um cacho do meu cabelo antes de pegar as sacolas de compras e sair rapidamente do mercado.

Não me surpreendi quando a sombra loira e ignorante me acompanhou até o ponto de ônibus. Sério, o que caralhos aquele garoto queria? Eu já estava tenso demais com a presença dele.

Resolvi dividir minha atenção entre ler os nomes que vinham nos ônibus, a espera do meu e o garoto que até dez segundos atrás não conseguia fechar a boca e agora estava concentrado em digitar no celular.

Foi bom o fato de ele ter calado a boca, me fez relaxar um pouco e tornou mais fácil ignorá-lo, mas me mantive desconfiado. Não consegui me livrar da sensação de que ele estava aprontando algo, que eu ainda ia ter que aturá-lo de alguma forma.

Honestamente? Eu não teria me importado tanto se ele não tivesse ficado o tempo todo falando oralmente e se a moça do caixa não tivesse, o tempo todo em que me atendia, se dirigido somente a ele. O Mathias falava bastante sobre o Eric e eu sabia que era alguém importante na vida dele, embora eu achasse sim que o Eric tinha muito jeito de babaca para ser legal, eu estava disposto a aturá-lo... Mas, depois de hoje? Não. Não, não, não. Era demais pra mim.

Senti um aperto no meu ombro e olhei assustado.

Eric me estendeu o celular dele, uma expressão nebulosa no rosto. Suspirei olhando o que era.

“Foi mal se incomodei hoje. Não faço ideia de como você e o Mathias conseguem que isso funcione, muito estranho slk. Mas, quero  dizer que por mais estranho que eu ache, fico feliz que esteja dando certo pra vocês.”

Tive que ler duas vezes para entender o que estava escrito e ainda assim fiquei me perguntando o que caralhos significava “slk”. Respirei fundo, lutando contra a vontade de revirar os olhos e devolvi o celular para ele, dando de ombros.

Eric deu um meio sorriso e eu respirei voltando a me focar em esperar o ônibus.

***

Houve um pequeno inconveniente na volta pra casa.

Um que eu nunca poderia me atrever a contar a ninguém.

Quando entrei na rua de casa, eu o vi. Parado na calçada da minha casa e o pior que ele me olhava como se estivesse me esperando.

Parei.

Eu tinha que estar vendo coisas, não era possível. Ele não podia estar ali. Senti minhas mãos suarem e minhas pernas tremerem.

O Dobermann continuou me olhando e latiu, mostrando os dentes. Apoiei minha mão na parede, sentindo o equilíbrio me faltar e minha respiração ficando rala. Tenho certeza que já teria desmaiado se tivesse pressão baixa.

Não podia ser aquele cachorro, tentei me convencer. Aquele cachorro tinha sido levado tinha meses, devia ser só algum da mesma raça ou... Ou... Mesmo pensando isso, meu cérebro parecia não acreditar. Quis correr, me esconder e só voltar quando aquele cão tivesse ido embora. Meu braço doeu com a lembrança.

Aquilo tinha que ser um pesadelo.

O cachorro continuava latindo.

Minha vista ficou embaçada.

Fechei os olhos e quando abri de novo, reparei em algo que não tinha reparado antes.

Tinha uma menina, com certeza não devia ter mais de treze anos, puxando o cachorro pela coleira. Ele não parecia ansioso para ir embora, mas, apesar de estar latindo, não parecia disposto a atacar ela.

Fiquei parado vendo-a puxar o cachorro até ele finalmente ceder e acompanhá-la para dentro de casa, a casa ao lado da minha.

Lembrei do que meu pai tinha dito semanas antes:

"Novos vizinhos. Eles têm um cachorro, mas é bonzinho."

O ar voltou a existir quando o Dobermann sumiu da minha visão. Minhas pernas ainda tremiam, então andei apoiando uma mão na parede, para poder me segurar caso caísse e entrei em casa apressado, trancando o portão atrás de mim com o coração acelerado.

Fechei os olhos, me recusando a chorar enquanto repassava a lembrança de novo e de novo. Por que alguém com justo aquela raça de cachorro tinha que se mudar pra cá? Me encostei contra o portão fechado, puxando o ar devagar.

Tudo bem, pensei. Não era aquele cachorro. Era só um outro parecido, só isso. Eu nunca mais teria que ver aquele cachorro de novo. Respirei fundo e engoli em seco.

Merda.

Se ele continuasse aparecendo... Ou se meus pais vissem o estado que fiquei por ter visto um cão da mesma raça tão perto de casa... Isso não ia acabar bem. Respirei fundo.

Minha mãe estava em casa, eu não podia parecer nervoso. Se ela sequer desconfiasse... Tudo bem, tudo bem. Não tinha acontecido nada de mais mesmo, pensei enquanto me recompunha.

Foi só um pequeno susto.

***

“O E-R-I-C mora por aí.” — o Mathias disse. – “Espera, deixa eu achar um lugar pra apoiar melhor o celular.”

Concordei com a cabeça, aproveitando pra arrumar melhor o mini tripé de celular sobre a mesa.

“Foi chato.” — falei quando ele voltou a aparecer na tela. – “E a atendente do caixa foi bem idiota.”

“Eu falo com ele, ok? Não se preocupa com isso.”

“Não to preocupado. To irritado.” — bufei. – “Ele ficou falando o tempo inteiro e eu não faço ideia do que ele tava dizendo! Ele ficou me puxando e me seguindo! Foi incomodo e irritante!”

Mathias suspirou, esfregando os olhos e fazendo careta logo em seguida provavelmente lembrando que estava com lápis de olho.

“Manchou.” — avisei e ele suspirou.

“Depois eu arrumo.”

“Você tá muito arrumado. Vai pra onde?”

“É aniversário de uma amiga. Ela me chamou para irmos comemorar no S-U-B-W-A-Y.”

“Entendi. Tá bonito.”

Ele sorriu, ficando um pouco vermelho e voltou pro assunto principal.

“Não se importa com o Eric, tá? Eu gosto dele, mas ele é bem idiota pra muita coisa.”

“Percebi.”

Mathias riu, ajeitando o cabelo.

“Mas, fora isso, passou bem o dia?”

Lutei para não fazer careta, lembrando do cachorro. Olhei sobre o ombro. Minha mãe estava na sala, assistindo uma de suas séries antigas favoritas, ela não estava prestando atenção. Mas... Mas... Não. Eu não podia contar isso pra ninguém. Não gosto do jeito que as pessoas olham quando esse assunto volta.

“Ah, claro. Tirando isso e a saudade que eu to de te beijar, eu passei muito bem. Aliás, o que significa S-L-K?”

Mathias uniu as sobrancelhas um instante e em seguida deu risada, balançando a cabeça.

“É uma abreviação pra ‘você é louco’ mas num sentido de surpresa ou espanto. Mais ou menos isso."

“Como é? Isso não faz sentido! ‘Você é louco’ em português começa com V.”

“Mas a gente muitas vezes fala só C-Ê, amor. E C tem som de S as vezes.”

“Vocês ouvintes... E ainda querem que a gente aprenda a língua de vocês!” — revirei os olhos enquanto tudo que ele fez foi dar risada.

“Nem te falei. Começaram um curso de Libras aqui perto, vou fazer.”

“Vai ser o melhor da classe.” — garanti, sorrindo de lado. – “Já tá com mão leve. Mais ou menos”

“Mão leve?” — ele uniu as sobrancelhas repetindo o sinal. Hesitei pensando em como explicar.

“F-L-U-E-N-T-E em Libras.”

“Entendi. Expressão estranha.”

Dei de ombros, não era mais estranha do que usar SLK para “você é louco”. Ele não podia julgar.

“Final de semana tá chegando. Vamos no cinema?”

“A gente tem que começar a procurar passeios gratuitos pra ir. Vamos acabar sem dinheiro nenhum. Eu podia só ir na sua casa pra assistirmos algo.”

“Não. Cinema.” – ele arqueou a sobrancelha quando eu falei. – “Quero te apresentar meus amigos. Eles vão ao cinema esse fim de semana.”

Mathias franziu a testa e cruzou os braços, parecendo desconfortável, o que automaticamente me deixou desconfortável. Ele virou o rosto e eu arquei a sobrancelha, desconfiado, tamborilei os dedos na mesa, esperando.

Tínhamos saído com os amigos dele na semana passada, o que foi realmente horrível, só a lembrança me fez fazer careta, mas assim... Qual era o problema de sairmos com os meus amigos já que eu já tinha saído com os dele completamente a contragosto?

“Tá bom.” — falou por fim, dando um sorriso fraco. – “Se você quer que a gente saía com eles, a gente sai.”

Dei um meio sorriso, contente.

“Ótimo, vou falar com eles. Avisar que você vai também.”

Ele apenas assentiu, desviando o olhar de novo e suspirando, mexendo no cabelo. Por fim, ele suspirou levantando a mão no sinal de “te amo”. Sorri, respondendo.

“Também te amo.”

“Tenho que desligar. Minha amiga chegou. Tchau.”

Fiz bico.

“Tchau.” — respondi e levantei a mão em “te amo” de novo, mas ele já tinha desligado.

Suspirei, tirando o celular do tripé e cruzando os pés em cima da cadeira, pensando em algo pra fazer. Eu já tinha acabado minhas lições e estava tarde pra sair para tirar fotos. Talvez eu pudesse tentar aprender alguma música nova... Franzi os lábios abrindo o Google para procurar.

Eu sentia falta das aulas de música.

Dos oito aos quinze anos eu e Alexia fizemos aulas de teclado e fotografia juntos, ela sempre traduzia tudo que os professores falavam, então mesmo que eu não falasse com quase ninguém nas aulas, mesmo que notasse um olhar ou outro dos professores... Aquilo nunca importou.

Até que ela mudou de colégio e teve que parar. Ali, as coisas mudaram. Eu não entendia nada das aulas, os professores ficavam tentando falar alto comigo como se isso fosse a solução... Eu não aguentei. Os colegas de sala eram legais, não me entenda mal. Eles não sabiam Libras, mas escreviam as explicações para mim, tentavam ajudar... Mas, os professores não eram preparados para um aluno surdo e a cada dia isso ficava mais e mais claro.

Acabei optando por parar. Suspirei, tentando afastar esses pensamentos, olhei pro chão. Duas sombras se aproximando. Olhei sobre o ombro e sorri vendo meu pai chegar do trabalho acompanhado do irmão.

Meu pai cortou relações com toda a família depois de casar com minha mãe, toda a família exceto pelo irmão mais novo.

Tio Flávio era um cara negro meio baixinho, a pele no mesmo tom da de meu pai, marcada por sardas escuras, olhos castanhos, o cabelo crespo preso em tranças nagô e pequenos brincos de prata nas orelhas. Ele era ouvinte, mas, era tão fluente em Libras quanto a Alexia.

Meu tio era médico, mas não qualquer médico. Tio Flávio era fonoaudiólogo. Chega a ser um pouco irônico, o cara que ensina surdos a oralizar ser fluente em língua de sinais, né? Ele dizia que quis se formar nisso para que, outros surdos que buscassem oralizar, não sofressem tanto quanto meu pai sofreu para aprender. Eu sei, fofo. Mas, sempre que meu tio vem aqui, eventualmente esbarramos nas mesmas questões.

Suspirei colocando meu celular de lado.

"Oi." — falei. - "Tudo bem, tio?"

"Tudo sim. Seu pai precisava de uma ajuda para resolver um problema com o cartão."

Fiz careta, eu odiava empresas assim. Era basicamente "você precisa ligar para resolver o problema", "mas eu sou surdo", "mas você precisa ligar pra resolver o problema." Era um inferno. Normalmente, quando meu pai tinha esse problema, meu tio vinha e ligava fingindo ser ele. Quando minha mãe tinha esse problema, minha irmã ligava fingindo ser ela. Por que nem tudo podia ser resolvido pela internet? Era tão mais prático!

"Ok. Eu vou pro meu quarto." — forcei um sorriso e saí antes que a atenção do tio Flávio se voltasse para mim e para a grande discussão que atormentava a gente tinha alguns anos.

Fiquei bem uns dez minutos sentado na cama mandando mensagem pros meus amigos e decidindo quais ia chamar para sair comigo e com o Mathias. Sabia que o Mathias não se sentia bem entre muitas pessoas, então era bom fazer uma seleção. Ian com certeza o assustaria com aquele jeito expansivo e doido dele, Amirah era mais fresca do que eu para comer... Franzi os lábios tentando pensar. Rodrigo trabalhava nos fins de semana e Tom ficava em casa cuidando dos três irmãos mais novos...

Ergui os olhos, notando quando a luz apagou e acendeu. Me deparei com meu tio com as mãos no interruptor do meu quarto. Era o jeito dele de chamar minha atenção. Coloquei o celular sobre o teclado e arquei a sobrancelha enquanto ele vinha pro meu lado.

“O que foi?”

“Precisamos conversar.”

Não, pensei.

Minha relação com ele já tinha sido melhor, mas isso foi há muito tempo. Antes de eu largar as aulas de teclado, tio Flávio me incentivava em todas as escolhas que eu tomava, mas depois... Eu nunca seria capaz de entender como ele forçava tanto que eu devesse me adaptar cada vez mais ao mundo ouvinte quando ele viu como meu pai cresceu traumatizado com isso.

Meu pai cresceu numa cidade do interior. Para detectarem sua surdez, meus avós tiveram que levá-lo a um médico em outra cidade. O médico disse para que não o ensinassem Libras porque isso ia atrasar o aprendizado dele e para economizarem um dinheiro para um aparelho auditivo, recomendaram sessões com fonoaudiólogo para que aprendesse a oralizar e disse que era imprescindível que ele aprendesse ler lábios.

Meus avós seguiram isso a risca, mas como não tinham dinheiro para pagar as sessões de fono na cidade vizinha, meu pai cresceu com uma mão na própria garganta e a outra na garganta do irmão tentando sentir a vibração da voz dele para poder imitar e as escondidas ensinava ao irmão os sinais que aprendia com as crianças surdas da escola.

Já adulto, a família dele se mudou para São Paulo. Meu pai conheceu a minha mãe numa livraria, eles se reencontraram uns meses depois numa apresentação de dança dela e ele resolveu ir falar com ela no final, foi quando descobriu que ela era surda. Eles começaram a sair e ele teve cada vez mais contato com comunidades surdas, aprendendo cada vez mais Libras e se afastando cada vez mais dos pais.

Quando meus avós descobriram que ele ia casar com uma mulher surda... Bom, não ficaram nada felizes. A briga foi feia e acabou que eles nunca mais se falaram. O único da família dele que foi ao casamento foi o Flávio. Eu conheço essa história de trás pra frente, imagino os pais dele como monstros, mas não faço ideia de como são. Nunca os vi e nem fiz questão.

Lembro de uma época da minha infância que eles mandavam presentes para a Alexia no natal e no nosso aniversário. Eram presentes apenas para a Alexia, nunca para mim e mesmo sendo criança, ninguém precisou explicar pra gente o porquê disso. Lexi costumava quebrar os brinquedos que ganhava deles de propósito e jogar na garagem. Meus pais nunca reclamaram dela fazer isso. No nosso aniversário de nove anos, ela pegou o celular do meu tio escondido e ligou para nossa avó. Não faço ideia do que ela disse, mas sei que nunca mais eles enviaram presentes.

Basicamente, meu pai cresceu isolado não só na escola, mas também em casa. E meu tio cresceu vendo isso, e ainda assim...

“O que foi?” — repeti, sentindo a tensão tomar conta dos meus ombros.

“Eu estava pensando... E queria te comprar um aparelho auditivo pro seu aniversário.”

Revirei os olhos, irritado. E lá vamos nós!

“Não! Não quero usar isso! Eu tenho dezessete anos, não vou me adaptar!”

Meu tio balançou a cabeça, negando.

“É só uma ideia. Também acho que pode ser melhor você voltar pra fonoaudiólogo. Tem coisas novas, Ícaro, coisas que podem ser melhor do que..."

“Não!” — repeti, me sentindo cada irritado percebendo o final da frase. Eu conhecia meu tio bem o bastante para saber que, apesar de ele ter aprendido Libras, tinha opções que ele considerava serem melhores. Opções que pra ele, tornavam minha língua ultrapassada. -“Sai do meu quarto.”

“Ícaro...”

“Sai! Não quero saber! É minha escolha. Não quero, pronto! É direito meu!”

Meu pai entrou no quarto enquanto meu tio começava a fazer sinais para me contestar. Enquanto ele chamava a atenção do irmão, eu fechei os olhos, irritado. Sei que é infantil fechar os olhos para não ver o que estavam dizendo, mas... Aquilo era demais para mim.

Senti um dos dois apertar meu ombro, mas afastei a mão. As mãos dos dois eram parecidas, eu não sabia quem era e preferia não saber, mantive os olhos fechados. Tentaram de novo, mas de novo eu afastei.

Não fazia sentido.

Eu tenho amigos que usam aparelho auditivo, eles acham legal, mas usavam desde a infância! Eles tiveram tempo para aprender o que era cada som, estavam na idade em que crianças aprendiam a falar quando colocaram aquilo. Eu não teria a mesma facilidade para associar cada som a palavra, ou para associar cada som ao que era... Não seria reconfortante, tudo seria barulho.

Porque as pessoas acham que aparelhos auditivos e implantes cocleares são a solução para todos os problemas que envolvem a surdez? Sinceramente... Elas não percebem que existe uma grande diferença entre conseguir ouvir e conseguir entender?

Não via sentido em colocar um aparelho auditivo se eu ainda não entenderia português falado, se tudo que eu ia sentir era incomodo e medo a cada som desconhecido que me alcançasse.

Quando abri os olhos, meu pai e meu tio já tinham saído do quarto e a porta estava fechada.

Torcia para que tio Flávio tivesse desistido da ideia toda e não só da conversa, mas duvidava que teria tanta sorte.


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Notas finais do capítulo

Teremos personagens que fazem uso de aparelhos adutivos em breve e esse assunto ainda vai voltar, mas o que eu adianto aqui é que o uso de aparelhos auditivos deve ser uma escolha pessoal e escolher usar ou não, não deve nunca ser razão para julgamento ou discriminação de qualquer tipo (além de que, dizer que a língua de alguém é "ultrapassada" é ridículo, né?). Enfim, eu pesquisei bastante sobre o assunto para poder tratá-lo com o devido respeito e espero conseguir.

Enfim, espero que tenham gostado do capítulo e até a próxima semana.



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