Sinais escrita por Sirena


Capítulo 7
Abra-se ou Parta-se


Notas iniciais do capítulo

Obrigada a heywtl, Isa Dias, Isah Doll, Minnie, fran_silva, Júlia Potter e Natália pelos comentários maravilhosos ♥

Bom, esse capítulo tá ENORME, porque ele fala de muita coisa, provavelmente é um dos capítulos mais sensíveis que eu fiz para essa história... Espero que gostem ♥



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 Mathias

Minhas pernas tremiam e eu estava enjoado enquanto repassava devagar o dia na minha cabeça, tentando achar o que tinha feito de errado.

"To indo pra casa."

Me senti tonto, lutando para manter o equilíbrio enquanto lia e relia a mensagem repetidamente.

O Ícaro estava estranho, parecia ansioso demais. Imaginei que a ausência da Alexia o estava deixando assim. Quando segurei sua mão, ele se afastou parecendo irritado. Apesar de ter percebido que tinha algo errado, não tinha pensado que ele estava tão mal ao ponto de ir embora, imaginei que se estivesse tão desconfortável provavelmente falaria. Mas... Mas, ele tinha simplesmente ido... E nem tinha me falado, tipo... Se ele estava tão mal, ele podia ter me dito e eu o teria acompanhado até em casa! Mas, ele simplesmente...

— Ei, Mat, tá tudo bem! - ouvi o Eric dizer enquanto me segurava de repente, provavelmente notando o quanto eu estava tremendo. — O que foi? Tá tudo bem, ok? Eu to aqui, calma! O que foi?

Entreguei meu celular desbloqueado, enquanto apoiava meu peso nele. Eric ficou em silêncio lendo a mensagem e então bufou.

— Relaxa, ok? Provavelmente foi só um mal-entendido. - ele garantiu calmamente. — Eloá, fica na fila. Eu vou ali com o Mat, ele não tá se sentindo bem.

Ainda tremendo, acompanhei o Eric e me encostei numa parede tentando respirar devagar, meu coração disparando. O que eu tinha feito, meu Deus?

— Si, não precisava ter vindo, mô. - abri os olhos ao ouvir a voz do Eric e vi que a Simone estava acompanhando a gente.

— Tá tudo bem, Mat? O que aconteceu? - ela perguntou, parecendo preocupada enquanto colocava uma mão no meu ombro.

— O Ícaro foi pra casa e tá bravo com ele. Só Deus sabe o porque. - Eric respondeu, antes que eu tivesse chance.

— Eu disse que ele só ficava com a gente porque a Alexia tava aqui. - Simone bufou. — Ele nunca fez questão nem de fingir estar bem com a gente. Sempre pareceu que tava pra fugir. Eu e Eloá tentamos falar com ele nas primeiras vezes que veio, mas ele sempre fechava a cara. Lexi dizia que ele estava num momento complicado, mas, sei lá...

Uni as sobrancelhas, ouvindo com atenção. Aquilo parecia... Estranho. Como se fosse uma peça de um quebra-cabeça completamente diferente. Por mais legais que a Simone e os outros fossem, eu nunca percebi nenhum esforço neles para incluir o Ícaro, tampouco achava que ele faria descaso se eles realmente tentassem incluí-lo.

— Eu não vim nas primeiras vezes que o Ícaro saiu com o grupo, mas lembro que a Alexia ficava ensinando o alfabeto pra Eloá no intervalo. - Eric concordou. — É difícil, cara. A gente não sabe falar com ele e quando a Si tentou, ele só virou os olhos. Beleza que a Lexi disse que ele tava passando por dificuldade, mas sei lá... Quem quer aprender uma língua nova para falar com alguém que fica fazendo descaso? Ai, ai... Passou o tremor, Mat?

— Sim. - murmurei, embora minhas mãos ainda tremessem. — Só to com medo de ter feito algo muito ruim. Acho melhor... A casa do Ícaro não é muito longe de metrô, talvez eu possa... Tipo, a gente não comprou os ingressos ainda então...

— Cara, não. - Eri fez careta. — Corre atrás dele agora e você vai correr atrás dele pra sempre.

— Não sei. Talvez tenha acontecido algo sério, sei lá. - Simone opinou. —  Ele pareceu bem receptivo quando você foi falar com ele logo que começou a sair com a gente, eu até fiquei surpresa! Não sei, mas já eles namoram é melhor tentar resolver isso cara a cara o quanto antes. - ela deu de ombros.

Eric revirou os olhos, mas concordou com a cabeça.

— Acho que ninguém vai me ouvir mesmo, né? Então... Sei lá. Se você acha que é você que tem que ir atrás e não o cara que simplesmente foi embora do nada, beleza. Vai lá. Quem sou eu no mundo pra interferir, né? É... Boa sorte, espero que fique tudo bem entre vocês dois.

Dei risada. Sinceramente, embora eu entendesse o ponto do Eric... Não fazia sentido tentar ver o filme agora, eu não ia conseguir me concentrar. Estava nervoso demais, com medo e culpado sem nem saber o porque.

Me despedi dele e da Simone, acenei para os outros amigos dele que nos observavam preocupados da fila do cinema e desci correndo pra estação de metrô sob o shopping. Calculei de cabeça quanto tempo levaria para ir daqui até a casa do Ícaro.

Vinte? Trinta minutos, talvez?

Se o metrô não demorasse, talvez eu chegasse em quinze.

***

Eu estava arfando enquanto tocava a campainha.

— Já vai, já vai! – ouvi a Alexia gritando. — Vai tirar o pai da forca, inferno? – ela franziu a testa ao me ver. — Você!

— O que eu fiz? – perguntei, apertando minhas mãos. — Posso beber uma água? Eu vim correndo!

Minha cunhada me olhou da cabeça aos pés com deboche, mas acabou me deixando entrar e indo buscar um copo de água pra mim.

Ícaro estava sentado no sofá da sala, abraçado numa almofada, os olhos inchados. Ele se levantou num pulo quando me viu.

“O que tá fazendo aqui?” — perguntou, parecendo irritado.

“O que aconteceu? Por que você foi embora?” — eu não tinha certeza se estava fazendo os sinais corretos enquanto falava.

Ele bufou e começou a fazer vários sinais rapidamente. Levantei as mãos, pedindo para parar e quase peguei meu celular para que escrevesse, mas só o fato de eu estar pedindo que parasse pareceu irritá-lo ainda mais.

— Aqui sua água. – quando Alexia apareceu, uma esperança louca e uma ideia me vieram a mente. Peguei o copo da sua mão e segurei-a pelo braço antes que desse as costas.

— Lexi, por favor!

Ela olhou de mim para o Ícaro e fez careta.

— Sério? Eu tenho cara de intérprete formada? Olha, eu sei que o ditado é “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, mas em briga de namorado e namorado, também não se devia.

Apesar das reclamações, ela suspirou se sentando no sofá fazendo sinais para que o Ícaro repetisse o que tinha dito. Respirei fundo me preparando para o pior. Dei um gole na água antes de colocar o copo na mesinha de centro da sala.

— Tá, é... – ela hesitou e percebi que ele estava fazendo os sinais tão rápido que até Lexi estava com dificuldade para entender. — “Você e seus amigos me ignoraram completamente lá! Por que eu iria ficar? Tavam fingindo que eu nem existia!”

— Ícaro, não foi isso... – tentei.

— Eu não vou traduzir os dois lados! – Alexia gritou me olhando feio.

Suspirei e esfreguei o rosto tentando me acalmar o bastante para me lembrar dos sinais certos para o que queria dizer.

“Se você sentiu isso, por que não me falou?”

— “Pra quê?” – Lexi traduziu, sem tirar os olhos do irmão. — “Eu tô acostumado com os outros me excluindo, mas você? Foi humilhante!”

“Você podia ter falado comigo!”

— “Não! Ia adiantar por alguns minutos e depois ia voltar ao normal e eu tô cansado disso!”

“Ícaro, eu me preocupo com você! Não ia deixar ficar assim de novo se você tivesse avisado!”

— “Se fosse verdade, eu não teria me sentido excluído lá. Vai embora, por favor.” – assim que Alexia acabou de traduzir, ele cruzou os braços e deu as costas.

Me sentei no sofá, esfregando os olhos e repassando os momentos no shopping na minha cabeça.

Tá, talvez eu tivesse ficado um pouco entretido demais na conversa com o Eric e a Simone e tenha deixado ele um pouco de lado, mas poxa... Não foi intencional, só era tão raro eu me sentir bem entre muita gente... E eu sei que se mais alguém naquela mesa soubesse Libras e pudesse conversar com ele, não seria um problema tão grande assim... Mas, ele podia ter falado comigo!

Ele podia ter me avisado que tava se sentindo mal!

Tá, talvez não adiantasse, mas... Ele podia ter me deixado tentar!

— Só deixa ele esfriar a cabeça. – Alexia comentou do meu lado, me fazendo lembrar que ela ainda tava ali. — Ele sabe que não foi por mal.

Não respondi.

— Olha, até eu acabo excluindo ele de vez em quando. Quando a gente é mais acostumado a falar com a boca do que com as mãos e tá cercado de pessoas que também são acostumados a falar assim... É normal acabar fazendo isso. Não precisa se sentir culpado. Sério, teve uma época que eu trocava o Ícaro por qualquer boneca que falasse!

— Mas...

— Mas? – ela arqueou a sobrancelha me olhando. — Mas, meu irmão tem um puta problema com se sentir excluído? Acredite, eu sei disso melhor do que você e, te garanto, ele sabe que você não fez por mal. Ele só precisa se acalmar.

— Mas, mesmo assim, Lexi...

— Amorzinho, cala a boca e escuta! Vocês não estão juntos há tanto tempo! É óbvio que erros assim ainda vão acontecer, você ainda tá aprendendo! E vamos concordar, o Ícaro não precisava simplesmente ter vindo embora, né?

Concordei com a cabeça.

— Espera meia hora. Até lá ele vai tá com a cabeça mais fria e vocês vão poder se resolver na conversa. – declarou em tom de quem encerrava o assunto.

—... Desculpa ter te feito de intérprete. – murmurei.

— De boa. Parte de ser a única ouvinte numa família de surdos é ser intérprete várias vezes. Tipo... Sério, médicos e policiais deviam ser os mais obrigados a saber Libras... E lojistas também, na verdade.

— Deve ser cansativo ser intérprete o tempo inteiro. – observei.

Alexia riu.

— Acredite, tem coisas piores, amorzinho.

Olhei curioso.

Lexi pareceu hesitar antes de se explicar.

— Eu não falo sobre, ok? Mas... Ser a única ouvinte, quer dizer que eu ouço coisas que eu não queria de gente que vem pra cá sempre. – ela cruzou os braços e fechou os olhos. — Desde criança, meus tios dizem como eu tenho sorte de não ter saído aos meus pais... Como eles têm sorte de ter uma filha ouvinte para suprir a falta de audição deles. Meus pais são super independentes, mas... Pras pessoas, eu sou a ponte entre eles e o mundo dos “normais.” – ela fez aspas enquanto falava.

— Lexi...

— Eu não conto o que  escuto porque ia machucá-los demais. – Alexia encolheu os ombros, passando a mão sob os olhos. — Mas, é ruim. Eu escuto isso tem tempo demais, dá vontade de dar um soco na cara do meu tio. É ridículo! Como se eu fosse melhor que meu pai ou que meu irmão só porque posso ouvir. Até parece! As pessoas são ridículas!

Hesitei antes de falar:

— Mas, o Eric e os outros não são muito melhores, né?

Ela me olhou com um sorrisinho. 

— Não, mas é diferente. Eu fico com vontade de bater neles, mas... Ao contrário do meu tio, eles não tiveram muito contato com pessoas com deficiência enquanto cresciam, têm muito que aprender. É, são idiotas, mas eles estão aprendendo. Eu não queria que o Ícaro saísse com eles enquanto eles ainda estão nessa de entender como agir, queria dar uma guiada antes, mas... Meu pai obriga e briga comigo pra eu levar ele, então...

Uni as sobrancelhas. — Porque o pai de vocês faz isso?

—... Ícaro passou por uma situação tem algum tempo. Ano passado, ele teve uma recaída e não quis sair por meses. Eu explicaria, mas... Ele ia odiar que eu falasse.

— Hum...

— Enfim... Você conhece o Eric. Ele é fofo, mas é difícil convencer ele a abrir a cabeça, né? Os outros também são assim. Quando o Ícaro começou a sair com a gente, ele tava num momento delicado, se reabituando a sair e acabava se irritando sempre que alguém tentava falar com ele. Eu tentei explicar, mas meus amigos não gostaram e pararam de tentar tanto... Mas, eles tão voltando. Tão pegando filmes legendados, mesmo que sejam filmes péssimos e me pedem pra ensinar um sinal ou outro na escola. Eu só tenho que forçar um pouco. Não queria que o Ícaro tivesse que aguentar lidar com eles enquanto continuam tão chatos, mas... Em parte, a mudança deles é por sua causa, eu acho. Tipo, quando viram que o Ícaro retribuía quando você tentava conversar com ele, se sentiram confortáveis para tentar de novo.

— Entendi, acho.

Alexia respirou fundo.

— Enfim, eu tenho umas lições para acabar. Pode ficar aqui, é melhor vocês se resolverem pessoalmente hoje do que deixar pra depois. – ela suspirou e me deu um beijo na bochecha. — Meia hora e ele se acalma. Sério, ele não sabe ficar com raiva!

— Não foi o que pareceu.

— Ah, isso é porque ele tava na defensiva, nada de mais. Ele fica todo ignorante quando tá na defensiva.

Concordei com a cabeça enquanto ela ia para o chão, onde seu material de estudo estava disposto.

Não sei exatamente quanto tempo fiquei na sala ajudando a Lexi com a lição e conversando sobre amenidades. Nunca tínhamos interagido muito, mas percebi que era tão fácil falar com ela quanto era falar com o Ícaro. Alexia era divertida e um pouquinho debochada no jeito de falar, mas isso o Ícaro também era. Entendi porque as pessoas gostavam de sair com ela: Lexi era engraçada demais.

***

Após certo tempo, ouvi Ícaro tocando teclado e cansei de esperar.

A porta do quarto dele estava fechada, mas destrancada. Fiquei um instante considerando se devia ou não entrar. Entrar sem bater parecia falta de educação, mas ele não iria escutar se eu batesse mesmo e... Eu teria que perguntar depois qual era a melhor forma de fazer isso. Ainda sem ter certeza se podia ou não, abri a porta.

Ícaro estava com os olhos focados no instrumento, tocando sem mal dar sinal de ter notado minha presença. Fechei a porta atrás de mim e me encostei contra a cama, observando.

Enquanto fechava os olhos, seus dedos passeavam pelo teclado com experiência e segurança. O jeito que fazia a música soar era realmente de tirar o fôlego... Ou talvez eu só seja muito apaixonado por esse garoto mesmo. É preciso considerar todas as possibilidades.

Cruzei os braços e fechei os olhos me permitindo aproveitar apenas o instrumental lento e relaxante. Só voltei a abrir os olhos quando a música acabou e vi que ele me encarava, os lábios tremendo.

Levantei as mãos para fazer o sinal de desculpe e me explicar, mas antes que eu pudesse, Ícaro fez o sinal de pare e começou a falar, num ritmo que eu podia entender.

“Desculpa. Eu... Talvez tenha exagerado.” — franzi a testa quando ele disse isso e fiz sinal pedindo para que me deixasse falar, mas, ele não deixou. – “É que... Eu sempre me senti meio excluído demais, sabe? Não só por ser surdo, mas..." — ele parou de fazer Libras por um instante, desviando o olhar e abaixando as mãos.

Ícaro não costumava virar o rosto enquanto falava, então ele fazer isso me pegou de surpresa. Ele pressionou as mãos contra os olhos antes de voltar a me olhar, levantando as mãos devagar para falar.

"Entre ouvintes, eu sou excluído por ser surdo. Entre surdos, eu sou excluído por ser negro. Entre surdos negros, eu acabo excluído por ser gay. É muita coisa!"

— Ícaro... - murmurei sem nem perceber, surpreso.

"Parece que eu não encaixo bem em lugar nenhum fora de casa. Eu me conformei com isso, me acostumei a sair de qualquer lugar que me faça sentir mal. E eu gosto de como sou... Mas, ser deixado de lado me deixa mal, me sinto sozinho demais. Por favor, não pensa que você apareceu e eu comecei a me aceitar melhor como mágica. Eu me aceito e gosto do jeito que sou. Não tem nada a ver com você tá na minha vida ou não, mas..." — ele parou um instante respirando fundo. - "Eu me aceito bem, é que... Você sempre ficava tentando me incluir quando eu me sentia excluído. Desde a primeira vez que a gente se viu, você tentou conversar comigo, você aprendeu Libras só pra falar comigo, então... Eu nunca achei que ia me sentir excluído com você por perto. Isso me deixou muito mal."

Fechei os olhos, respirando fundo. Aquilo tinha sido um tanto pesado. Eu nunca pensei muito no quão importante devia ser para ele o quanto eu me esforçava para manter conversa. Mesmo sabendo o quanto ele amava que eu estivesse aprendendo Libras, não pensei que até a primeira vez que tentei puxar assunto, digitando no celular, fosse tão relevante.

E também não pensei que ele se sentisse tão excluído. Olhando agora, acho que Ícaro era um recorte muito específico e por mais que ele parecesse realmente bem consigo mesmo, acho que ele devia acabar sofrendo muito em muitas ocasiões. Eram preconceitos demais para lidar.

Abri os olhos.

“Me desculpa, Ícaro. Eu disse que ia tá lá e que você não ia se sentir de lado e não cumpri. Quando é só a gente é mais fácil, mas um monte de gente me chamando é difícil prestar atenção em como você está. É difícil falar em português e em Libras ao mesmo tempo, traduzir tudo enquanto ouço... Não justifica, eu sei... Eu devia ter sido mais atento a como você tava se sentindo ali. Sei que você não gosta de sair com muitos ouvintes de uma vez.”

Ele virou o rosto e eu não soube se tinha dito algo errado. Quis cruzar o espaço entre a gente e abraçá-lo com toda força, pedindo mil desculpas. Mas, percebi que antes que isso acontecesse, a gente tinha que passar por essa conversa.

Ícaro encolheu os ombros, voltando a olhar pra mim.

“Não sei o que dizer.” — declarou me olhando timidamente.

Cerrei os lábios, pensando em como falar os sinais na ordem certa.

“Você devia ter falado comigo. Sabe disso, certo? Talvez realmente não adiantasse, mas você devia ter falado. Eu sei que não é justo te pedir para aguentar isso, mas ainda to aprendendo o que eu posso ou não fazer, no que preciso prestar atenção... Só vou saber se você me falar, tá bom?”

Ele abaixou o rosto, mexendo os pés por um instante enquanto eu esperava.

“Desculpa.” — pediu por fim, após um longo instante. – “Eu tentei falar, mas você segurou minha mão, então eu preferi não insistir."

Merda.

"Desculpa. Tinha muita gente falando, eu não prestei atenção no que você queria."

"Pareceu que você queria que eu ficasse quieto." — ele bufou enquanto falava, me olhando chateado. - "Eu me senti mal."

Balancei a cabeça.

"Desculpa mesmo. Não tava te pedindo pra ficar quieto, só queria segurar sua mão. Não percebi que você estava tentando falar." — ele uniu as sobrancelhas quando falei, parecendo confuso.

"Por quê?"

Foi minha vez de ficar confuso. - "Você tocou meu ombro, mas eu tava falando com o Eric sobre uma coisa séria, então apertei sua mão tipo... Pedindo pra você esperar um pouco, mas como você parecia nervoso, quis continuar segurando sua mão pra mostrar que tava tudo bem. Não quis passar a impressão de que te queria quieto, eu..." — ele seguia parecendo confuso enquanto eu explicava, mas logo interrompeu.

"Desculpa. Eu interpretei errado então." — falou parecendo prestes a chorar. - "Se você segura minha mão, eu não posso falar, então... Achei que você queria que eu ficasse quieto e me irritei com isso."

"Não! Eu gosto quando você fala. Às vezes você fala muito, mas eu gosto mesmo assim." — Ícaro deu risada quando eu disse isso, limpando o rosto, os olhos vermelhos. - "Desculpa. Não quis passar essa impressão, não percebi na hora o que tava errado. Se tivesse percebido, não teria feito isso."

"Tá bom. Já que foi, isso tudo bem." — ele suspirou, mais relaxado. - "E sei que traduzir tudo é difícil, que você tá aprendendo, mas é chato não entender nada."

Senti meus ombros cederem.

"Desculpa. Ainda to me acostumando a traduzir."

Ele assentiu.

"Sei que você se esforça, mas eu não gosto de sair com os amigos da Alexia, então somou isso e você segurando minha mão comigo desconfortável... Eu surtei. Exagerei em ir embora, mas na hora foi tudo que eu consegui fazer. É o que eu faço nesses momentos, sabe? Eu só saio. Saio de lojas, festas, qualquer lugar."

Suspirei, concordando com a cabeça para deixar claro que entendia.

“Tudo bem. Mas, lembra que eu quero que você se sinta bem comigo, ok? Se em algum momento eu te deixar de lado ou desconfortável, puxa minha orelha... De verdade, puxa mesmo! Eu sou desatento às vezes. Se fizer isso, eu vou prestar mais atenção no que estou fazendo, tá bom? E se você quiser ir embora de algum lugar, por favor, me avisa! Eu venho embora com você se estiver se sentindo tão mal que queira ir embora, ok?”

Ícaro concordou com a cabeça, dando um sorriso rápido e fraco.

“Então to desculpado?” — perguntei, hesitante.

Ele assentiu dando risada antes de perguntar:

“E eu? Estou desculpando também?”

Fiz o sinal de sim, me sentindo um pouco mais relaxado.

“Vem cá.” — chamei.

Ainda timidamente, ele veio para perto de mim e eu o abracei com força, contente por estar tudo bem entre a gente no final. Ícaro se afastou um pouco e se sentou na beirada da cama, hesitei antes de sentar do seu lado. Ele me observou um instante antes de levantar as mãos.

"Vamos fazer assim... Se eu beliscar sua mão, é porque quero falar algo. Fica mais fácil de não ter má interpretação." 

"Ok. E se você puxar minha orelha, é porque eu to fazendo algo errado." — concordei, gostando da ideia. - "Fica combinado assim?"

Ele assentiu sorrindo antes de arregalar os olhos, cobrindo o rosto com as mãos um instante. Antes que eu pudesse perguntar o que tinha acontecido, ele começou a falar:

"Você deve ter ficado muito nervoso quando eu vim pra casa, não é? Desculpa! Eu disse várias vezes que você não precisa ficar nervoso comigo e aí fiz isso... Desculpa mesmo, eu tenho que controlar mais quando surto assim! Não queria te deixar mal! Desculpa." - antes que eu pudesse falar qualquer coisa ele passou os braços em volta dos meus ombros rapidamente e encheu meu rosto de beijos, como se cada um fosse um pedido de desculpas.

Dei risada enquanto ele seguia beijando minha bochecha, minha testa e meu queixo repetidamente. Senti o alívio finalmente tomar conta dos meus ombros. Ele ter ficado tão assustado com a ideia de ter me deixado nervoso era uma confirmação de que não estava mais bravo. Apoiei as mãos em sua cintura, aproveitando os vários beijos que recebia.

Senti Ícaro encostar a testa na minha e dei um meio sorriso, contente, me sentindo finalmente calmo e mais uma vez repassando o dia na minha cabeça, como se isso fosse me ajudar a processar que estava realmente tudo bem agora. Franzi os lábios me afastando um pouco, pensando no que Alexia e Simone tinham dito.

"Por que seus pais insistem pra você sair?"

Imediatamente, Ícaro me olhou desconfiado.

"Alexia te contou." — a julgar pela sua expressão, não foi uma pergunta. Estava mais pra uma acusação.

"Não." - me defendi rapidamente. - "Ela só disse que você teve um momento difícil, mas que não ia gostar que ela me falasse." 

Ele pareceu hesitar antes de concordar com a cabeça. - "É uma história bem dramática. Não é o tipo de coisa que se fala depois de resolver uma briga."

Mordi a bochecha, observando-o. Ícaro deu um suspiro se virando para pegar o travesseiro e se abraçando com ele um instante antes de se ajeitar para falar.

"Quando eu tinha treze anos, eu saí com um garoto da escola. A gente se dava bem e ele me beijou no portão de casa. O problema é que eu tinha um vizinho... Esse vizinho morava na frente da minha casa e tava sempre na garagem dele, bebendo e cuidando dos cachorros. Os cachorros dele eram bravos e... - Ícaro parou voltando a abraçar o travesseiro por um momento. - "Eu não gostava desse vizinho. Ele ficava olhando para a Alexia e eu não gostava do jeito que olhava."

"Quantos anos ele tinha?"

"Não sei. Mas era velho." — Ícaro deu de ombros. - "Muito velho. Enfim, ele tava bêbado, a gente percebeu que ele tava gesticulando muito e vimos que ele estava gritando... Eu não precisava ouvir pra saber o que ele tava dizendo. Me apressei pra abrir o portão, mas antes que eu conseguisse..." — mais uma vez, parou, a respiração pesada enquanto abraçava o travesseiro mais uma vez, agora com força, escondendo o rosto.

Uni as sobrancelhas, preocupado, coloquei a mão em seu ombro. Estava para dizer que não precisava continuar se não quisesse quando ele levantou o rosto e voltou a falar:

"Ele soltou os cachorros. Eram dois e um deles me mordeu." — Ícaro parou para apertar o braço e respirou fundo fechando os olhos. - "Alexia estava em casa, ouviu a confusão e veio ver. Ela bateu no cachorro com uma vassoura pra tirar ele de cima de mim e puxou eu e o garoto pra dentro, depois me ajudou a cuidar do machucado. Quando meus pais chegaram eu tive que contar pra eles. Foi chato. Eu não contei que era gay porque queria, contei porque tinha que explicar porque tinha um machucado grande no braço. Eu tava com muito medo e ter que falar por causa disso... Não sei. Não foi legal."

"Entendi."

"Meu pai deu um soco no vizinho." — Ícaro deu um sorrisinho entre as lágrimas, como se lembrar disso fosse divertido, mas voltou a expressão triste. - "Depois disso, sempre que eu saía, o vizinho ficava atiçando os cachorros pra cima de mim. Às vezes ele fazia que ia soltá-los. Eu tinha treze anos, era criança... Ficava com medo." 

Concordei com a cabeça, tentando imaginar a cena, era fácil ver o quanto aquilo ainda o assustava. Ícaro soluçou enquanto voltava a falar.

"Comecei a não querer sair sozinho, depois não quis sair de jeito nenhum... Fiquei uns seis meses sem ir nem na garagem."

— Meu Deus!

Ele respirou fundo, chorando e limpando as lágrimas antes de voltar a falar:

"Nessa época Alexia estudava num colégio inclusivo então ela tinha muitos amigos surdos e muitos amigos ouvintes que sabiam um pouco de Libras. Ela me convencia a sair com eles algumas vezes, era legal, eu gostava... Ajudava. Mas, só quando o vizinho morreu, eu voltei a sair normalmente. Não acho que eu devia ficar feliz, mas fiquei." — parou, abraçando o travesseiro outra vez e fez bico. - "Ano passado, os filhos dele colocaram os cachorros pra fora e depois de tanto tempo do vizinho atiçando eles pra cima de mim, sempre que eu saía na rua e eles me viam... Tentavam me atacar de novo. Eu voltei a ficar com medo de sair na rua, matava aula, não ia nem na padaria do lado. Ficava com medo."

Pisquei e limpei o rosto, sentindo minhas próprias lágrimas caírem enquanto ele contava.

"Depois os cachorros começaram a atacar todo mundo que passava. Chamaram o controle de animais. Mesmo não tendo mais cachorro na rua, eu não queria sair. Continuei faltando aula, não ia na garagem. Eu não me sentia seguro, sabe? Se tudo isso aconteceu na frente da minha casa..." — ele parou, as lágrimas escorrendo e fungou enquanto abraçava o travesseiro novamente.

"Se isso aconteceu na frente da sua casa, imagina o que podia acontecer mais longe." — conclui, entendendo.

Ícaro assentiu fungando e soluçou. Ele limpou o rosto com as mãos antes de voltar a falar, tremendo levemente:

"Meus pais não sabiam que eu tava faltando aula. Quando descobriram que eu não ia pra escola tinha quatro meses... Ficaram bravos. No começo tentaram conversar, chamavam meus amigos para vir aqui para me convencer a sair... Mas, eu não queria, fechava os olhos quando tentavam conversar. Meu pai se irritou, começou a me obrigar a sair com os amigos da Alexia e... O colégio que ela tá agora, não é inclusivo então, ela praticamente só sai com ouvintes. Sempre que ela sai, eu tenho que ir também." — ele suspirou. - "Eu fiquei quatro meses com medo de ir à garagem, eles estavam preocupados. Como sair com a Alexia me ajudou antes, achavam que ia ajudar de novo. Mas, eu ficava irritado, pedia pra ir pra casa... Os amigos dela se irritaram comigo por isso. Começaram a fazer cara feia quando eu saía com eles."

"Entendi." — limpei o rosto de novo. - "Eu não ia imaginar isso, você parece tão relaxado quando a gente sai. Só falta deitar em cima de mim." - mas, enquanto falava isso, lembrei dos momentos em que o Ícaro ficava de repente tenso, olhando em volta com olhos arregalados antes de relaxar de novo.

Ícaro riu fracamente antes de encolher os ombros.

"Eu tive três anos para me acalmar. Mesmo que ano passado eu tenha me trancado de novo... Eu to melhor já, mesmo que meus pais não acreditem. Não gosto de ficar com medo de agir do jeito que quero porque alguém pode fazer alguma coisa. Me irrita. Então, mesmo que às vezes eu fique com medo, eu ajo como eu quiser. Não quero deixar gente chata me dizer como agir. "

"Você não gosta que mandem em você." — falei sorrindo e ele deu risada, concordando com a cabeça. - "Você é muito corajoso. Não acho que eu conseguiria passar por isso."

Ícaro deu de ombros e fez bico levantando as mãos. - "Às vezes eu quero ficar em casa, mas meu pai não deixa! Ele fica com medo de que se eu ficar um dia inteiro aqui, vou voltar a me trancar."

Era compreensível, pensei. Mas, ainda era cruel que ele tivesse que sair com gente que não gostava.

"Você não sai com seus amigos?"

"Saio. Mas, eu gosto da minha casa. Gosto de tocar teclado no tempo livre e de deitar na cama para editar fotos. Gosto de ficar em casa. Não devia ter nada de errado em gostar disso, mas eles acham que tem." 

Concordei com a cabeça, enquanto, de novo, Ícaro abraçava o travesseiro. A julgar pela frequência que fez isso durante essa conversa, acho que era um jeito de se confortar. Suspirei, puxando-o para um abraço, ele encostou a cabeça no meu peito, a respiração ainda pesada.

Fiz carinho em seu cabelo e continuei abraçando-o até ele parar de tremer. Ícaro colocou o travesseiro de lado e começou a mexer nas minhas pulseiras. Além do macramê colorido, eu estava usando várias pulseiras em diferentes tons de cinza. Ele suspirou levantando o rosto, fazendo bico. Sorri lhe dando um beijo.

— Te amo. – murmurei sem nem perceber, mesmo sabendo que nem se eu tivesse falado alto ele teria ouvido. Ícaro se afastou me olhando com a sobrancelha arqueada, provavelmente se perguntando o que eu tinha dito.

Hesitei, franzindo os lábios.

“Como fala T-E A-M-O em Libras?”

Ele estava com os olhos arregalados antes mesmo de eu terminar a pergunta e riu sem graça empurrando meu rosto. Dei risada, desviando da sua mão e fazendo bico, então percebi como a mão dele estava.

“É assim?” — uni as sobrancelhas, perguntando.

Concordou com a cabeça, esticando a mão para empurrar meu rosto de novo ainda naquele sinal. Franzi os lábios e Ícaro suspirou.

“É do inglês. Junta o sinal do I, L e Y em um só. I L-O-V-E Y-O-U”

— Ah. – murmurei antes de levantar a mão fazendo o sinal na direção dele:

Dedo mínimo, indicador e polegar esticados, em seguida fiz o sinal dele, para deixar mais claro ainda.

Ícaro deu risada e, com as mãos em “eu te amo” cobriu o sorriso, todo envergonhado.

“Vem cá.” — chamei, puxando-o pro meu colo.

Ele riu, bagunçando meu cabelo um instante antes de rir de novo.

“Desculpa mesmo ter exagerado lá? Eu sei que...” — segurei suas mãos antes que terminasse de falar, agora realmente na intenção de que parasse.

“Eu te desculpei, você me desculpou. Eu entendi porque você saiu. Não vou te deixar desse jeito de novo. Assunto encerrado, tá? Vamos aproveitar o resto do dia juntos."

Ele só assentiu, saindo do meu colo e se sentando ao meu lado, enquanto me observava com atenção. Então, de repente, me empurrou, deitando em cima de mim na cama e rindo. Senti sua mão encostar na minha ainda no sinal de "eu te amo" e dei um sorriso, dobrando os dedos no mesmo sinal.

Ícaro riu de novo antes de me beijar, apoiando uma mão no meu rosto. Sorri, apertando sua cintura e retribuindo o beijo.

Depois de tanto nervoso e desabafos, um pouco de calmaria e carinho era só o que nós dois precisávamos.

Enquanto sua mão encostava na minha ainda em "te amo", pensei de novo em como ele se irritou quando segurei sua mão no shopping. Para ele, eu queria que ficasse quieto, enquanto eu só estava tentando ser carinhoso.

Acho que isso é o que chamam de choque de cultural.

Dei risada sentindo cócegas enquanto Ícaro beijava meu pescoço e respirei fundo, tentando afastar esses pensamentos e me focar no momento, puxando-o para outro beijo.


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Notas finais do capítulo

Esse capítulo foi enorme né? Bom, o próximo vai ser mais leve e mais curto, prometo ♥
Espero que tenham gostado porque foi um dos que mais amei escrever ♥



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