Sinais escrita por Sirena


Capítulo 9
Pesadelos e Amigos


Notas iniciais do capítulo

Obrigada a Isah Doll, Joshua de Vine, heywtl, SophiaWiggin, fran_silva, Peter pelos comentários ♥

Não é segunda, mas tá aqui meu presentinho para vocês ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796817/chapter/9

Mathias

Naquela noite, sonhei com Diego.

Eu achava estranho quando isso acontecia, afinal eu nem o conheci. Não sabia muito sobre ele, sabia que era um garoto inteligente e que sempre foi muito amado e que isso tornava tudo tão mais trágico. Sabia sua aparência pela quantidade infinita de fotos que já tinha visto dele:

Cachos que beiravam ao crespo, longos, volumosos e revoltosos. Nariz achatado e olhos escuros. Pele negra clara e em todas as fotos que eu vi, ele estava sempre com o mesmo sorriso confiante que fazia parecer que o mundo inteiro iria parar um instante apenas para olhar pra ele.

No sonho, Diego estava saindo de uma festa na casa da amiga, ele estava bêbado e irritado como eu sabia que estava naquela noite. Ele andava cambaleando e eu tentava chamá-lo, mas ele não escutava, apenas seguia andando e tropeçando.

Gritei pedindo para que não atravessasse a rua, mas ele não ouviu, apenas andou enquanto os carros vinham. Uma vez do outro lado, se virou pra mim e riu. A risada dele parecia com a do Eric.

Os olhos de Diego se arregalaram e ele gritou algo, mas sua voz foi levada pelo vento da noite fria. Ouvi uma buzina e percebi que estava no meio da rua.

Acordei no mesmo instante em que o carro me atropelava.

Estremeci me livrando das cobertas.

Não era com frequência que eu sonhava com Diego. Acho que só cheguei a sonhar com ele umas duas vezes, ambas tinham sido há muito tempo, mas o sonho sempre era o mesmo.

Me sentei na cama e fechei os olhos, massageando minhas mãos sentindo meus dedos doerem, fazia tempo que eles vinham doendo, meu pulso também. Era uma dor irritante.

Me lembrei do momento que Eric me contou sobre o Diego:

Foi na primeira vez que estávamos fazendo uma prova juntos, ainda com 12 anos. Eu roía as unhas analisando a questão de biologia e ele bufou com a mesa grudada na minha.

— É a C, eu já disse. - ele falou parecendo incrivelmente entediado.

— Acho que não...

— É a C. E mesmo se não for, uma questão a menos não vai fazer a gente reprovar.

— Mas, não tem como saber se as outras tão mesmo certas...

— Ah, pelo amor de Deus! - ele arrancou a caneta da minha mão e puxou a prova, marcando a alternativa C. — Eu tenho mais motivos para me preocupar em repetir do que você, então se eu digo que é a C, é porque é a C!

Quis reclamar, mas fiquei com medo... Naquela época eu tinha muito medo dele embora ele nunca tivesse me feito nada. Concordei com a cabeça e peguei a prova para entregar a professora. Ela comentou algo em voz alta sobre a repetência do Eric e ele revirou os olhos enquanto eu voltava a sentar ao seu lado desconfortável.

— Eu odeio quando ela me lembra disso. - murmurou. — Como se ela não soubesse o porquê de eu ter repetido. Vadia.

Com doze anos, fiquei bem assustado por ele ter xingado a professora daquela forma e olhei com medo e curiosidade, mas os olhos dele estavam perdidos na lousa.

Hesitei antes de perguntar:

— Você não era bom na matéria dela?

Eric me olhou surpreso e encolheu os ombros ao responder:

— Eu era péssimo. Mas, era bom o bastante para não reprovar. Mas... - ele parou um instante como se estivesse pensando bem no que ia me contar. Não conversávamos muito mesmo estando na mesma sala e, de repente o assunto parecia realmente muito sério então, fiquei na expectativa. — Meu irmão morreu ano passado.

— Ah.

— Eu tava em semana de provas e... A gente ligou para a escola, eles disseram que sentiam muito, mas que isso não era justificativa para perder prova, então a menos que eu tivesse um atestado médico, se faltasse ia ficar sem nota, então... - Eric respirou fundo me olhando e virou a cara de novo, dando de ombros. — Eu vim fazer a prova. Foi no dia seguinte ao enterro dele.

— Sinto muito.

— É... Valeu. - ele revirou os olhos enquanto falava, como se não acreditasse, então desatou a falar. — Minha mãe adotou o Diego quando ele tinha uns onze anos. Ela me adotou anos depois. Você não ia pensar que a gente é irmão se nos visse juntos. Ele era inteligente e quieto e amava estudar... Sempre me ajudava a estudar para ciências. Já tava na faculdade, quase acabando. Enfim... Foi um mês depois da morte da minha avó, então... Minha mãe ficou muito mal... Ela tava sempre triste, perdeu o emprego, não queria sair da cama... Meu pai me mandou passar uns meses na casa de uma prima nossa, não queria que eu a visse daquele jeito. Não tinha atestado, então fiquei com muitas faltas... E quando voltei pra escola não consegui acompanhar a matéria. Por isso repeti.

— Entendi.

— O pior são os professores, sabe? "Sei que você tá num momento difícil, mas isso não é justificativa para não se esforçar." Sempre diziam isso. - ele suspirou. — Esse ano, eles trocaram o disco para "foi nesse assunto que você tirou nota baixa, então presta atenção", ou, "você quer repetir de novo, Eric?", ou... Eu sei que sou burro, mas eu não repeti por burrice!

— Como ele morreu?

— Foi atropelado. - murmurou após um longo instante em silêncio. — Ele... Foi mal numa prova e saiu pra beber com amigos... Ficou bêbado, saiu sozinho e acabou numa rua movimentada... Mas... O semáforo tava fechado para os carros, então... Não foi culpa dele, né? - Eric me olhou com seriedade, apesar da voz embargando, o olhar dele era rígido, como se me desafiasse a contradizê-lo.

— Não, não foi.

Ele assentiu seriamente, parecendo contente com minha resposta enquanto a professora passava para recolher as demais provas, o sinal de intervalo tocando.

— Por que você ainda estuda aqui? Eu não ia querer. - murmurei.

— Meu pai trabalha no setor financeiro do colégio. - deu de ombros. — Filho de empregado não paga mensalidade, então... Essa é a melhor e mais barata escola pra mim. Mesmo assim...

Suspirei me levantando e abrindo minha mochila para pegar o dinheiro para comprar o lanche, pensando no que ele tinha dito e me sentindo mal.

Me atentei ao que estava fazendo, olhando minha mochila de novo, sem conseguir encontrar o dinheiro. Ah, não! Olhei os bolsos outra vez, começando a ficar nervoso e sentindo minha barriga doer de fome.

— Esqueceu o lanche? - naquele instante percebi que o Eric ainda estava ali, me observando... Não por curiosidade, mas só porque eu tava tampando a passagem dele.

Me levantei envergonhado, deixando-o passar. Eric continuou me olhando esperando a resposta. Suspirei assentindo, mesmo que eu tivesse esquecido era o dinheiro para o lanche mesmo.

— Vem, eu divido o meu. - ofereceu mostrando o pacote de salgadinhos.

***

"Isso tem cara de V-I-N-G-A-N-Ç-A" — soletrei fazendo careta sem saber qual era o sinal para isso.

"Não sou disso." — Ícaro garantiu encostando a cabeça no banco do ônibus, mas eu acho que ele era um pouquinho disso sim. Aquele garoto podia ser fofo, mas ele tinha um lado do mal.

"Eu não sou nem intermediário em Libra, Ícaro! E se eu fizer algum sinal errado? Eu vou ficar com tanta vergonha!"

"Eu falei com eles, se acalma. Só não soletra seu nome." — deu de ombros enquanto fazia os sinais.

— Você é um chato. – resmunguei mexendo na minha pulseira de pedras estrelas e Ícaro arqueou a sobrancelha, parecendo curioso.

Suspirei alto levantando as mãos.

"Nada. Só tava te chamando de chato. Seu chato."

Ícaro me mostrou a língua e beliscou meu ombro. Dei risada devolvendo o beliscão e logo estávamos numa briguinha de risos e beliscões nos assentos do ônibus, briguinha que só parou porque de repente o ônibus deu um tranco e a gente teve que se segurar pra não cair no chão, mesmo estando sentados.

"Você que é chato." — falou, fazendo bico com cara de ofendido.

Dei risada apertando sua bochecha.

"Fofo." — declarei por fim.

Ele revirou os olhos.

***

Não era um grupo grande.

Duas garotas e um rapaz. Uma delas tinha uma pele negra e os cabelos crespos presos num rabo de cavalo alto, a outra tinha olhos estreitos e cabelos pretos bem lisos. Já o rapaz tinha olhos azuis e cabelos escuros compridos, a pele clara e o nariz largo marcado por sardas.

"Oi. Tudo bem?" — Ícaro perguntou sentando do lado deles num banco. Optei por ficar de pé porque não era como se tivesse espaço para eu me sentar naquele banco. – "Esse é o M-A-T-H-I-A-S, meu namorado."

"Oi." — a garota negra sorriu pra mim, simpática. Acenei com a cabeça, desconfortável.

Achei que ia ser mais fácil já que era um grupo menor do que o grupo de amigos do Eric, mas mil coisas passaram na minha cabeça. E se eu entendesse errado algum sinal? E se cometesse algum erro vergonhoso e passasse vergonha? Eu não sabia os sinais de palavrões, e se eles me xingassem sem eu saber? Ou se...

"Mão leve?" — o rapaz perguntou olhando curioso pra mim.

"Mais ou menos." — Ícaro respondeu.

"To aprendendo ainda." — completei, nervoso, porque senti que devia dizer algo embora eu não gostasse disso.

A garota de cabelos cacheados se levantou, dando risada e me olhando.

"Prazer. Eu sou P-A-U-L-A. Meu sinal é esse..." — ela colocou a mão em P e passou em frente aos olhos. Talvez eu estivesse me acostumando demais com o jeito do Ícaro e dos pais dele, mas reparei que ela fazia os sinais ainda mais devagar. Provavelmente achou que eu realmente não sabia nada de Libras.

Ai, isso é mal.

Respirei fundo para me acalmar e mostrei a ela meu próprio sinal. Assim que fiz isso, os outros dois resolveram se apresentar, falando seus nomes e sinais.

A outra garota se chamava Sabrina e o garoto se chamava Davi. Ícaro se meteu para contar que os dois namoravam já tinha mais de um ano.

"Podemos ir à livraria antes do filme?" — a Paula perguntou, sorrindo.

"Ah, não! Eu to sem dinheiro para livro!" — Ícaro respondeu, balançando a cabeça.

"Eu também quero ir! Dois contra um." — Davi votou, dando risada.

"Dois contra um nada! Se é votação a Sabrina e o Mathias tem que falar também!"

Enquanto eles falavam, eu percebia algumas pessoas que passavam olhando, curiosas. Sempre que eu e Ícaro saíamos, quando conversávamos eu notava isso e ele também, normalmente ele começava a falar sobre quem estava encarando mais e revirava os olhos chamando-os de sem-educação. Mas dessa vez tinha muito mais gente olhando do que quando éramos só nós dois e isso fez com que eu me encolhesse sentindo minhas mãos suarem.

Droga, como eu odiava isso!

Senti um aperto no ombro e olhei pro Ícaro, dando um pulo de susto.

"Livraria. Vamos."

"Ok." — respondi, tentando esconder a vergonha no meu rosto.

***

A livraria do Shopping Eldorado era enorme, escadas levavam a um andar com filmes, videogames, livros de não-ficção e um balcão pra comprar cafezinho.

"Quem vem comigo, procurar o livro que eu quero?" — a Paula perguntou e imediatamente a Sabrina pulou pro lado dela.

"Vocês querem me ajudar a achar o livro que eu quero?" — Davi perguntou depois que as duas sumiram por entre as estantes.

"Não." — Ícaro respondeu e me puxou, rindo da cara de emburrado do Davi que ficou pra trás.

Passamos pelas prateleiras e estantes com ele puxando um livro ou outro que parecia bonito. Minha mão suava na dele enquanto eu tentava me acalmar. A sensação de gente nova pra interagir era realmente ruim, eu precisava de um instante quieto. Apertei a mão do Ícaro para que ele parasse e ele me olhou assustado sobre o ombro.

"Tudo bem? — perguntou, parando e se virando pra mim.

"Tudo sim. Só... Gente nova. Não me dou bem."

Ele arqueou a sobrancelha. – "Relaxa, seu Libras tá bom."

"Não é só esse o problema."

"Você não pareceu ter problemas com gente quando a gente saiu com seus amigos."

Meus amigos uma vírgula. Não importava quantas vezes eu já tinha saído com aquela gente, amigos não é a palavra que eu usaria. Me sentia tão desconfortável perto deles quanto me sentia ali. A exceção do Eric e da Simone, eu simplesmente gelava sempre que tinha que falar com qualquer um deles.

"Ícaro, na primeira vez que eu saí com eles, a única pessoa com quem eu tentei falar foi justamente a que não fala." — observei, revirando os olhos.

Ele franziu a testa, me olhando irritado e eu fiz careta percebendo que o que tinha dito soava rude demais.

"É só que eu não sou bom nisso, ok? E eu não entendo nem metade dos que eles falam. É muito rápido para acompanhar."

"Posso pedir para falarem mais devagar." — sugeriu.

"Não! Isso seria ainda pior! Já é ruim demais saber que você tem que fazer os sinais devagar porque eu ainda não entendo direito."

"Sério que isso te incomoda?"

Dei de ombros. Ele levantou as mãos para falar algo, mas as segurei antes que pudesse, apertando de leve. Não queria conversar sobre isso.

Ícaro suspirou puxando as mãos.

"Mathias..."

"Não. Vamos voltar para lá, ok? Eu só preciso de tempo para conseguir relaxar, tá?"

"Tá bom."— concordou, fazendo bico. – "Vai querer levar algum livro?"

"Amor, eu tô mais pobre do que você."

Ele revirou os olhos. – "Vamos ver se eles já conseguiram os livros que querem e ir embora pro cinema."

"Tá bom."

***

Não fomos embora para o cinema depois da livraria.

Afinal, ainda tinha uma parada obrigatória.

Americanas.

— Quer salgadinho de quê? - olhei assustado quando o Davi me perguntou isso enquanto Ícaro ia com as meninas comprar barras de chocolate. Uni as sobrancelhas, confuso.

— Você é ouvinte? - perguntei, confuso e ele deu risada.

— Não, não! Mas, sou deficiente auditivo. - Davi afastou o cabelo da frente da orelha mostrando o aparelho auditivo que usava. — Minha surdez é unilateral só. E é moderada, então eu escuto mesmo sem aparelho. Uso só pra escutar melhor.

Ok, primeiramente, nota mental: evitar resmungos, tem gente aqui que pode ouvir.

Segundo: por que eu nunca pensei nisso? Por que nem todo mundo usava isso? Hum, certo... Provavelmente nem todo mundo tinha interesse em comprar ou tinha dinheiro o bastante. Mas, parecia tão mais prático mesmo assim... Mil perguntas surgiram na minha mente enquanto minhas mãos doíam de novo.

— Você tem que alongar a mão, sabe disso, né? - ele perguntou se virando para me olhar melhor e percebi que eu estava massageando as mãos. — E não é bom sinalizar muito tempo. Tenta fazer uma pausa de vez em quando.

— Quê?

— Você tá com dor nas juntas, não tá? - perguntou me olhando. — É por causa da Libras.

— Espera, é isso? - arregalei os olhos.

— Tem que ficar com a postura arrumada pra usar Libras, se não pode causar tendinite. - deu de ombros. — A gente não costuma ter porque fala desde pequeno, o pulso se acostuma com os movimento e sabemos manter a postura certa pra falar, mas ouvinte que tá aprendendo agora tem que tomar cuidado. O que mais tem é intérprete fazendo fisioterapia pra mão.

Antes que eu pudesse falar algo, o Ícaro apareceu pulando nas costas do Davi e dando risada do susto dele enquanto vinha pro meu lado, me abraçando com força um instante. Ele parecia bem mais animado do que eu estava acostumado a ver. Parecia eu quando acertava o delineador nos dois olhos de primeira.

"Primeiro você dá em cima da minha irmã, depois começa a namorar minha melhor amiga e agora quer até meu namorado? Davi, eu vou te bater!" — falou dando risada.

Davi gargalhou balançando a cabeça.

"Relaxa, Ícaro. Seu namorado não faz meu tipo de homem, prefiro os de barba.— Ícaro revirou os olhos com a resposta do amigo. - "Além do mais, eu to comprometido, esqueceu? Eu e a Sabrina estamos muito..." - Davi se interrompeu, levando a mão ao ouvido e se apoiando numa prateleira um instante, fazendo careta.

Ícaro se afastou de mim com um olhar preocupado tentando ajudar o amigo a ficar em pé. Davi fez um gesto de tudo bem para ele enquanto se recompunha. Uni as sobrancelhas preocupado tentando ajudar também, embora meio perdido.

"Zumbido forte?" — Ícaro perguntou e Davi assentiu. - "Você tá fazendo o tratamento, não tá?"

"Tô sim. Mas, acho que tá passando para outro ouvido."

Davi ergueu os olhos pra mim e forçou um sorriso percebendo minha confusão, falou em português e Libras ao mesmo tempo:

— É que eu não nasci surdo, tenho síndrome de Ménière desde os seis. Tipo, normalmente isso atinge mais gente velha, mas pode atingir qualquer idade. Causa uns zumbidos irritantes no ouvido, tontura e a longo prazo perda auditiva. - ele explicou. — Demoraram para detectar e quando detectaram eu já tava com ouvido fodido. Mas, tipo... Meu pai é surdo severo e minha mãe é formada em Educação Inclusiva, então eu já usava Libras para conversar quando tive perda auditiva. Minha mãe me comprou o aparelho porque eu tava começando a ter dificuldade para entender várias palavras na escola e ficava irritado com isso. Sério, criança que adquire surdez é o bicho mais insuportável do mundo, a gente vive puto. Ela me colocou num colégio inclusivo pouco depois e eu conheci a Alexia lá, depois ela me apresentou o Ícaro.

Ícaro ainda olhava atentamente para o amigo, como se estivesse tentando ter certeza de que ele estava bem, mas logo voltou o olhar pra mim sorrindo.

"Se você deixar, ele fala o dia inteiro. Melhor não incentivar. Ainda não aprendi a fazer ele calar os dedos."

Davi deu risada o cutucando.

"E a Paula e a Sabrina, onde estão?"

"Pegando refrigerante. Eu já peguei os doces." — Ícaro sorriu mostrando a cesta cheia de bolachas recheadas, chocolates, bombons e balas. - "Mas, vocês não fizeram nada ainda, não é?"

Dei risada. - "O Davi tava me falando que eu posso desenvolver tendinite." — expliquei.

"Isso é só se você falar demais." — ele bufou. - "O que quase nunca acontece porque eu que falo demais. É só tentar fazer uma pausa a cada uns vinte minutos para tomar um café ou algo assim e sentar direito."

"A gente também falou um pouco de eu usar aparelho. Ele achou estranho." — Davi deu risada e o Ícaro revirou os olhos.

"Normalmente quem não nasce surdo gosta de usar aparelho. Especialmente quem fica surdo criança. A criança não consegue mais conversar com os pais, se irrita e fica fazendo birra, vive brava porque não consegue dizer o que quer. Aí colocam aparelho. Às vezes quem nasce surdo filho de ouvintes usa também porque os pais acham melhor..." — ele pareceu hesitar antes de continuar. - "Eu não gosto de aparelho."

— Ícaro não gosta muito desse assunto. - Davi falou, observando-o. — O tio dele vive enchendo ele sobre. É escolha pessoal, saca? Tem um monte de questões culturais e históricas envolvidas.

— Acho que sim. - murmurei, embora não tivesse certeza disso. — Enfim... Vamos atrás das meninas? - perguntei pegando um pacote grande de salgadinho.

***

"Esse filme foi péssimo!" — Sabrina falou se jogando numa cadeira vazia da praça de alimentação. "Péssimo, péssimo, péssimo."

"Eu gostei." — dei de ombros.

"Você que é muito exigente, amor." — o Davi riu se sentando do lado dela. – "Foi um filme legal."

"Foi fofo." — Paula deu de ombros. – "Foto?"

Ícaro concordou pegando o celular

"Vem cá." — ele fez sinal para mim e eu contive um suspiro hesitante indo me sentar ao lado dele. - "Tá tudo bem?"

Concordei com a cabeça e deitei o rosto em seu ombro, o que o fez rir enquanto os amigos vinham para perto da gente para aparecer nas fotos.

Me abstive da maioria das conversas enquanto todos davam risada e brincavam.

Quando eu não entendia algo que eles tinham dito, apenas dava de ombros sem responder. Não precisava me esforçar para reparar os olhares desconfiados que eles dirigiam ao Ícaro, mas felizmente meu namorado apenas dava risada e voltava ao assunto.

Não era tão diferente de ficar de canto quando saía com os amigos do Eric. Eu fazia alguns comentários pontuais quando entendia o que estava acontecendo, ria quando todo mundo ria e fingia entender mais que metade do que estavam dizendo. Quando percebia que eu ficava confuso ou não entendia algum sinal, o Ícaro tentava soletrar pra explicar, mas os amigos dele falavam tão rápido que enquanto ele soletrava acabava perdendo parte da conversa e acabávamos nós dois confusos, embora, claro, ele conseguisse recuperar o fio da conversa bem mais fácil que eu.

Paula foi a que mais falou comigo, ela ria fácil e revirava os olhos com frequência. Ícaro se metia no assunto, incentivando a conversa ou puxando o cabelo dela, o que sempre o fazia receber um tapa no braço.

"Paula é do mal!" — ele falou, quando notou minha cara de assustado depois que levou o quarto ou quinto tapa.

"Não, você que é chato!"

"Chata é você!"

Ela fez um sinal que eu não reconheci e o Ícaro fez careta puxando o cabelo dela de novo e levando outro tapa.

"Não liga." — ele riu, voltando a me olhar. – "Ela é brava e eu acho engraçado, mas ela é fofa." — assim que terminou de dizer isso, ele passou os braços em volta dos ombros da garota e deu um beijo na bochecha dela.

Paula apenas o olhou com deboche afastando seus braços antes de rir.

"Ícaro foi quem me chamou para sentar com eles ano passado." — ela explicou. – "Eu estudo numa escola de ouvintes e não sabia nada de Libras, vim aqui com uma prima e enquanto ela comprava lanche eu vi ele e a Sabrina conversando, fiquei encarando e resolvi ir pro lado deles."

"Ela ficou parada do nosso lado nos encarando. Eu odiei." — Sabrina se meteu, bufando. – "O Ícaro estranhou e escreveu no celular perguntando o que ela queria. Ela contou que era surda e perguntou o que a gente tava fazendo. Aí ele puxou ela pra sentar com a gente."

"Aí o lanche virou uma aula intensiva de Libras." — Ícaro completou. – "Eu vinha encontrar a Paula aqui toda sexta depois da aula para ensinar ela. Só parei por causa... Daquele problema com os cachorros." - ele fez careta ao falar isso. - "E esse ano eu venho menos porque ela já sabe muito."

Paula concordou com a cabeça, deitando o rosto no ombro dele um instante antes de lhe dar um peteleco se afastando.

"Meus pais são ouvintes, não queriam que eu aprendesse Libras porque eles não conhecem muitos surdos, então achavam inútil eu aprender. Mas, eu gosto de saber." — ela explicou, o rosto assumindo uma expressão triste por um instante, mas logo voltou a sorrir. – "Como vocês dois se conheceram?"

"Eu saí com a Alexia e os amigos dela, o Mathias tava lá porque era amigo de um dos chatos."

Tentei não rir da explicação do Ícaro e senti meu rosto ficar quente quando percebi que o assunto agora estava todo voltado pra gente. Droga.

Como imaginei, outras perguntas vieram em seguida e eu respondia só uma ou outra, deixando a maioria pro Ícaro, completamente desconfortável com a atenção repentina.

Sabe o que é pior que sobrar num grupo? Ser o centro das atenções num grupo de desconhecidos. Mil vezes pior.

Agradeci quando o assunto voltou para o filme que tínhamos visto e todos continuaram a comer e conversar entre risos e brincadeiras. Apesar da minha tensão não ter sumido por completo, me senti um pouco mais relaxado falando com a Paula. Ela realmente parecia simpática e disposta a conversar comigo e era a que fazia os sinais o mais devagar.

Descobri que falar muito não era um mérito exclusivo do Ícaro e do Davi. Todos eles falavam muito, eu chegava a ficar tonto tentando entender todos os movimentos de mão e desisti de participar das conversas umas três vezes, voltando quando minha tensão passava.

Na quarta vez, respirei fundo apertando o joelho do Ícaro, já que não dava para beliscar sua mão com ele falando. Ele me olhou confuso.

Peguei o celular para digitar:

"Eu não to entendendo nada..... To ficando com sono"

Ícaro pegou o celular da minha mão para ler e coçou o queixo enquanto eu me encostava nele, tentando manter os olhos abertos.

Às vezes ele demorava mais a entender o que eu escrevia. Se a gente passasse muito tempo falando por Libras e de repente voltássemos a escrever, ele demorava a entender o português. O inverso me acontecia, muito tempo conversando por mensagem no celular me fazia demorar a lembrar os sinais quando voltávamos a falar em Libras.

Enfim, a relação bilíngue.

Ícaro deitou a cabeça no meu ombro me devolvendo o celular e acenando para chamar atenção dos amigos.

"Vocês falam muito rápido." — fez careta. -"Calma aí! Tem sinais que o Mathias não sabe ainda e vocês falando rápido não dá tempo de traduzir."

"Desculpa. Empolguei." — Sabrina riu enquanto falava e a Paula e o Davi também pediram desculpas logo em seguida.

Senti meu rosto ficar quente, não era bem a intervenção que eu tava esperando mas... É. Acho que era a única que dava então forcei um sorriso e agradeci enquanto eles voltavam a falar, agora num ritmo mais devagar e fácil de entender.

Ícaro beliscou minha mão para chamar minha atenção e apontou para o meu celular, hesitei antes de entregar.

"Desculpa. Eu tinha avisado eles antes para ficar falar rápido não, mas as vezes esquecem. Vergonha precisar não, tá? Tudo bem. Eles são bonzinhos."

Tive que ler duas vezes para entender bem. Cara, a gramática de Libras me deixava tão confuso às vezes... Especialmente quando o Ícaro misturava com a gramática do português daquele jeito! Mas, eu preferia não chamar atenção dele quando escrevia assim, tipo não tinha problema misturar às duas de vez em quando, dava para entender no final. Só era mais difícil.

Ícaro me deu um beijinho na bochecha mexendo no meu cabelo enquanto eu guardava o celular e ele voltava a se encostar em mim e prestar atenção na conversa. Suspirei tentando relaxar e participar do assunto novamente.

"Todo mundo vai à apresentação da Paula, né?" — Sabrina perguntou de repente, minutos depois.

"Não perco por nada." — Ícaro respondeu, sorrindo.

"Vai ser quando?" — Davi perguntou, enquanto eu pegava o celular para ver as horas.

Quando ergui os olhos, a Paula parecia já ter respondido e todo mundo marcava um lugar para se encontrar e ir junto, além de algum lugar para irem depois. Apertei o joelho do Ícaro por baixo da mesa e ele me olhou confuso.

"Tá tarde já. Muita baldeação, melhor ir."

Ele fez careta, não parecendo apreciar a ideia, mas acabou assentindo e se virando para se despedir dos amigos.

"Foi legal conhecer vocês. Até qualquer dia." — falei.

"É foi legal conhecer você. Mas, se você..." — Sabrina me olhou seriamente e o Davi riu, mas sinceramente eu não entendi nada do que ela falou depois de "você".

"Certo. Vamos. Tchau, gente." — Ícaro suspirou e deu um beijinho na bochecha da Sabrina e um na bochecha da Paula, antes de agarrar minha mão e piscar pra mim.

Enquanto saíamos da praça de alimentação, agradeci sentindo a tensão nos meus ombros terminar de sumir de vez.

***

Fizemos o caminho de volta para a estação em um silêncio estranho. Quase que imediatamente após termos saído da praça de alimentação coloquei meus fones de ouvido e escolhi uma música qualquer. Da mesma forma que o Ícaro cruzava os braços para dizer que não queria conversar, eu colocava os fones e ele entendia o que significava. Senti seu olhar ansioso e respirei fundo, me focando na música enquanto continuávamos andando.

Ele se encostou num canto enquanto esperávamos o metrô e eu mordi os lábios pensando.

Interagir tanto era sempre tão cansativo. Ainda mais quando era com pessoas que não falavam sua língua. Não foi difícil entender porque o Ícaro saiu correndo semana passada. Não que eu tivesse querido sair correndo, mas isso foi porque eu já tinha aceitado que nunca me sentiria bem em interagir com mais de três pessoas de uma vez.

Tamborilei os dedos contra a perna no ritmo da música repassando o dia na cabeça. Vimos um filme legendado e o Davi fez alguns comentários em voz alta enquanto assistíamos, eu tinha chegado a falar com ele durante o filme, mas logo Sabrina chamou a atenção dele e voltamos ao silêncio.

Apesar da Paula e do Ícaro terem passado o tempo todo brincando e rindo, ele parecia ser bem mais próximo da Sabrina do que dela. Eu não os vi conversando muito, mas não precisei. Eles eram aqueles tipos de amigos que conversavam com olhares.

É estranho analisar tudo assim, mas, normalmente isso me ajudava a me acalmar e a me localizar depois de interagir com tanta gente. Era minha forma de entender de verdade se o dia tinha sido bom ou não.

Apertei o ombro do Ícaro e ele me olhou, arqueando a sobrancelha.

"Seus amigos são legais."

Ele sorriu.

"Sim, o Davi é um pouco irritante, mas ele é legal."

Dei risada, a implicância dele com o Davi era engraçada. Acho que no fim, ele era mais próximo dele do que das meninas, tipo aqueles amigos que vivem se implicando, mas que estão sempre juntos, sabe?

Hesitei antes de falar.

"No próximo final de semana, podemos sair só a gente? Semana passada a gente saiu com meus amigos, essa semana com os seus... Eu gosto quando a gente curte só a gente."

Ele franziu os lábios como se pensasse um instante antes de assentir. – "Alguma ideia de para aonde ir? Se bem que a gente pode só ficar lá em casa mesmo. To pobre."

"Acha que seus pais vão implicar se eu dormir na sua casa?"

Outra vez, Ícaro arqueou a sobrancelha, mas acabou dando de ombros.

"Acho que não. Mas, vão querer que você durma na sala, acho. Quer passar o final de semana lá em casa?"

"Claro. Eu fico a semana toda sem te ver. Um dia é pouco pra matar a saudade."

Ele riu abaixando o rosto, parecendo repentinamente sem graça.

"E se eu fosse na sua casa ao invés?"

Fiz careta, mas dei de ombros.

"Pode ser também."

"Algum problema?"

Vamos ver... Minha casa é pequena. Minha mãe odeia quando chamo alguém pra lá no final de semana porque ela está sempre cansada. Não tem nada pra fazer por lá...

Suspirei.

"Não. Eu gosto da sua casa, só isso. Mas, você pode ir lá em casa sim, eu mando o endereço depois."

"Ok. O metrô tá chegando, vamos."

Como ele sempre percebia que o metrô estava chegando antes de mim?

"Vamos."


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Davi ♥

Sobre Libras poder causar tendinite: isso ainda é um assunto com poucas pesquisas a respeito, eu fiquei sabendo porque minha professora de biologia ensina um grupo de alunos surdos em outro colégio por Libras. Porém, eu encontrei um trabalho online que fala sobre com o título "A Saúde do Intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais): Cuidados para a Prevenção de Possíveis Dort." Lembrando que mesmo que não obrigatoriamente você vá ter uma tendinite por isso, como são muitos movimentos repetitivos de mão é bom ter cuidado e seguir os conselhos do Davi e do Ícaro sobre pausas e posturas se forem estudar língua de sinais.

Enfim, boas festas festas de fim de ano a todos



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sinais" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.