Sinais escrita por Sirena


Capítulo 25
Mais Maquiagens


Notas iniciais do capítulo

Obrigada heywtl, Isah Doll, Peter e fran_silva pelos comentários lindos ♥



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Mathias

Ícaro continuou abraçando o travesseiro, as costas encostadas na parede, sentado encolhido no canto da cama por vários minutos. Precisei de poucos instantes para perceber que ele queria que eu me afastasse um pouco então voltei a me sentar na outra ponta da cama tornando minha atenção para meu celular.

Apesar do desgaste, do cansaço, eu gostava que a ainda conseguíssemos ter essas conversas. Eram elas que vinham tornando os últimos dois meses suportáveis.

[Eric]
Aula de saúde é uma merda
Professora começou a explicar sobre DST
Descobri que um dos garotos do ultimo ano é soropositivo
E agr tá TODO MUNDO falando q ele é gay
Eu to tremendo
De ódio

 

Bufei.

[Mathias]
Claroooo pq só gay pega HIV
MDS quanta putaria

 

[Eric]
Agr eu to no intervalo ouvindo meus amigos falarem sobre o quão difícil deve ser namorar alguém com HIV
Eu to me sentindo um palhaço
Ai meu terapeuta vai ouvir tanto tadinho

[Mathias]
Pq n faz um discurso sobre o quão merda eles tão sendo?
Vc é bom em humilhar no discurso

[Eric]
Pq eu to com ÓDIO
Se eu abrir a boca pra falar qualquer coisa vou xingar essas pessoas até a décima geração de descendentes

 

[Mathias]
Pq vc é amigo dessa gnt sério? A Simone é legal, o Fran tbm. Mas a Eloá é ignorante e o outro q eu esqueci o nome sla... Ele me olha de um jeito q dá medo

 

[Eric]
O Juan é outro ignorante
Me perguntou umas cinco vezes se eu era gay dps q te conheceu
Fiquei bem tentado a dar uma surra nele
Mas me impedi por pouco pq é legal n ter uma reputação de brigão

Mordi os lábios pensando um instante.

[Mathias]
Q idiota

 

[Eric]
Nha
Na real eu n ligo muito, to acostumado já
Quando eu estudava ae era ate pior
Só q a insistência dele em perguntar é irritante

 

[Mathias]
Eu nunca entendi com vc n ligava pras piadas q faziam
Tava vendo a hr de vc se afastar pra pararem

 

[Eric]
Ai Mat poupaaa
Ata q eu ia me afastar de um amigo pq um bando de babaca acha q eu andar com ele significa q eu sou gay blábláblá
Além do mais 70% dos meus amigos do grupo de apoio são gays ent suave
 

[Mathias]
E os outros 30%?

 

[Eric]
Hm
Tem três mulheres, uma é lesbica, uma senhorinha q foi contaminada pelo marido e a outra é uma moça trans q ta saindo da vida de prostituta
Tem um cara hetero q n sabe de quem pegou, provavelmente numa festa ou carnaval da vida
Os outros nove é tudo gay
Se tu n namorasse eu te apresentava xD


[Mathias]
Foda q a glr do teu grupo de apoio é tudo bonito e.e
 

[Eric]
Te localiza q vc namora
Alias como ta o seu namorado?

 


[Mathias]
No momento ele esta quieto, o q eu acho meio assustador
Ainda n me acostumei com a ideia de q ele sabe ficar quieto


[Eric]
TEPT é foda
Alexia ta toda triste vendo ele assim tadinha :c
Eu tento falar com ela mas ela prefere deixar quieto

 


[Mathias]
TEPT n é um rotulo um tanto pesado?

 

[Eric]
Ok, eu n sou terapeuta n posso dar diagnosticos maaas
N acho q  seja pesado
A gnt associa isso a soldados e glr q vive/viveu em ambiente de guerras
Mas acho q existem varios niveis de estresse pós traumatico
A mulher q foi estuprada e entra em panico sempre q um homem nela msm q sem maldade  tem um certo nivel de tept
Ícaro pode n ter lutado em nenhuma guerra
Mas ele tem uma guerra dentro dele cara
E, aproveitando, vc pode me achar um chato mas a real é
Tu n pode ajudar ele a sair do fundo do poço
O max q pode fazer é ajudar ele a n cair mais ainda e acabar cumprimentando a Samara
E tomar cuidado de lembrar q os problemas dele são só dele
Sei q vc quer ajudar, mas se vc pegar os problemas dele pra vc n vai conseguir ajudar em nada, existe uma limite entre o q vc pode e o q n pode fazer
Tem q ter essa linha bem desenhada na sua cabeça cara

 

[Mathias]
Eu sei disso Eric
To fazendo o melhor q posso pra manter essa divisão na minha cabeça
Mas vlw

 

[Eric]
Espero q ele fique bem, de vdd
Acabou o intervalo, tenho q voltar pra sala

 

[Mathias]
Quando suas férias começam msm??

[Eric]
Dois dias
Amém
Dps disso Zendaya e Tom Holland no cinema ♥

 

Dei risada, revirando os olhos e estava para responder quando Ícaro apertou meu joelho, me olhando de um jeito ao mesmo tempo tímido e ansioso.

“Oi?”

Ele pareceu hesitar antes de falar:

“Eu to entediado.”

Coloquei o celular de lado e afastei o cabelo bagunçado do rosto. – “O que você quer fazer?”

Ícaro mordeu os lábios e hesitou novamente, agora por um instante mais longo. – “Posso te maquiar?”

Franzi a testa.

“O quê?”

“A maquiagem da Alexia. Só pra passar o tempo. Não dá pra fazer as maquiagens de pele porque você é branco, mas os olhos dá. Posso? Sei que você gosta de maquiagem então pensei se...”

Engoli em seco.

Voltar a passar lápis de olho era uma coisa. Mas, maquiar os olhos por completo era outra coisa... Era completamente diferente. Exigia um nível de coragem diferente, um que eu não sei se estava tendo no momento.

Mas... Mas... Ah, foda-se!

“Pode.”

Ícaro sorriu enormemente se levantando e me puxando com ele.

“Espera na cozinha. Vou pegar a maquiagem da Alexia.”

“Ok.”

Fui para a cozinha e puxei uma cadeira, tentando me acalmar com a ideia de realmente passar maquiagem de novo. Fazia tanto, tanto tempo... Ai. Ai.

Ícaro voltou com oito maletas equilibradas precariamente nos braços, abriu-as sobre a mesa sorrindo e prendeu meu cabelo com uma piranha velha antes de se sentar de frente para mim, encostando o indicador no lábio por um instante.

Olhei as maletas de maquiagem e afastei as que tinham blush, base, corretivo e esses itens para pele, puxei para mais perto às cinco maletas cheias de pós coloridos, rímeis e delineadores, me dando um instante para admirar a variedade de coisas disponíveis. Alexia tinha uma maleta inteira só para batons e considerei isso impressionante.

Fiz careta quando o Ícaro pegou o estojinho de sombras coloridas.

“Ícaro quando eu sair daqui ainda vai ser dia. Sombra assim é mais pra noite.”

Ele fez bico e suspirou empurrando o estojo e pegando outro com cores em tons de preto, branco, dourado e marrom.

“Eu nunca maquiei ninguém.”

Ergui os olhos para o teto.

“Deus, proteja meus olhos. Eu preciso deles. Ainda não inventaram um método de ligação que torne Libras-tátil algo possível a distância então se eu ficar cego acho que não vou poder falar com meu namorado na mesma frequência.”

Ícaro deu risada e beliscou meu ombro.

“Você vai ficar lindo.”

“Espero.”

“Fecha os olhos.”

Suspirei.

Senti o pincel nas minhas pálpebras com certa força e apertei o cotovelo do Ícaro. Ele afastou um instante antes de começar de novo, agora com bem mais suavidade e eu suspirei porque tinha me esquecido de como a sensação da penugem dos pincéis era boa.

A cada poucos instantes, Ícaro afastava o pincel antes de voltar, passando-o pela área dos meus olhos com delicadeza, segurando meu queixo entre o polegar e o indicador de maneira afável, virando meu rosto minimamente sempre que necessário para ver melhor. Após longos minutos ele apertou meu ombro num sinal para que abrisse meus olhos.

Ícaro ainda analisou um instante como fiquei com os olhos abertos antes de sorrir.

“Ok, não tá muito ruim. Delineador agora.”

Suspirei. – “Você já tentou isso?”

“Não. Como faz pra ficar reto?”

Engoli em seco.

Meu Deus, eu ia mesmo ficar cego.

“Aqui, espera.”

Peguei minha carteira no bolso da calça e tirei meu bilhete único de dentro.

“Encosta assim no olho e usa pra deixar reto.” – expliquei posicionando o bilhete no canto dos olhos dele um instante. – “Passa o delineador aqui no canto e fica bonito. Tá bom?”

“Tá bom.” – ele sorriu pegando o bilhete da minha mão e escolhendo um delineador.

Fechei os olhos.

A sensação do delineador não era tão boa quanto dos pincéis. Era gelado e o Ícaro passava com certa grosseria então, também era desagradável. Não que passar delineador fosse normalmente agradável, mas porra! Parecia que ele estava tentando arrancar meus olhos!

Resisti bravamente enquanto o Ícaro passava o delineador nos meus olhos e suspirei assim que ele se afastou e peguei um espelhinho entre as maletas.

Torto.

“Algodão.” – pedi.

Ícaro fez bico antes de me entregar um algodão molhado com desmaquilante. Passei com cuidado sobre a ponta do delineador, tentando não tirar a sombra que Ícaro tinha passado: um degrade suave de tons de preto, marrom e branco. Peguei o delineador para fazer uma ponta pequena, estilo “olho de gato.” Fiquei feliz que mesmo depois de anos ainda conseguir fazer isso com facilidade.

Coloquei o delineador sobre a mesa e analisei as maletas da Alexia antes de achar uma cheia de rímeis. Cheia mesmo. Mal fechava. Foi impossível não me perguntar se ela repararia caso eu levasse algum, porque não era possível que ela usasse todos aqueles.

Mordi os lábios pensando um instante antes de escolher um e passar, cílios superiores e inferiores com todo o cuidado para não borrar quando piscasse.

Ícaro apoiou o queixo na mão me observando um instante antes de pegar um batom vermelho numa das maletas e estender para mim.

“Muito forte pro dia.” – fiz careta e ele cerrou os lábios antes de concordar, colocando o batom de volta na maleta escolhendo outro mais claro em seguida.

Era um num tom nude bonito e discreto.

Hesitei um instante antes de passar, sentindo meu rosto ficar quente enquanto Ícaro novamente segurava meu queixo observando com atenção o resultado.

Ele abriu um sorriso antes de se curvar para me beijar, passando os braços em volta do meu pescoço gentilmente e mexendo no meu cabelo. Sorri, retribuindo e sentindo a mesma sensação de quando passei o lápis de olho pela primeira vez em meses. Era como me reconectar comigo de uma forma estranha e, ao mesmo tempo maravilhosa.

Ícaro se afastou lambendo os lábios e sorriu.

"Sabia que eu gosto de marca de batom?"

"Sério?" - uni as sobrancelhas.

"Quando eu era criança, minha mãe saía muito cedo pro trabalho então eu e Alexia não víamos. Aí ela sempre passava um batom forte e dava um beijo na gente pra quando acordássemos, pudéssemos ver que ela tinha nos dado um beijo." - explicou. - "Às vezes, ela saía muito apressada e acabava não conseguindo beijar a gente. Sempre que eu acordava, corria pra me olhar no espelho pra ver a marca do beijo e ficava muito triste quando não tinha marca nenhuma."

"Que fofo."

"Sempre que a Alexia e a Sabrina passam algum batom forte, eu peço pra me darem um beijo."

Dei risada entendendo e puxei seu rosto e lhe dando um beijo estalado na bochecha para deixar a marca. Ícaro deu risada, o rosto um pouco vermelho o que me fez rir porque era bem raro Ícaro ficar vermelho.

Ele mordeu os lábios e mexeu os pés antes de perguntar:

“Posso fazer uma trança no seu cabelo?”

Sorri e concordei.

Ícaro se levantou colocando rapidamente as maquiagens de volta nas maletas e empilhando todas para levá-las para o quarto da irmã. Quando voltou, trazia o celular, grampos, minhas presilhas de estrela, amarradores de cabelo e um borrifador cheio de água.

“A gente só tem creme de pentear pra cabelo crespo. Não vai funcionar com o seu cabelo, né?”

“Provavelmente não.”

“Então a gente molha para conseguir arrumar. Aqui olha, a Sabrina gravou esse vídeo de trança, eu achei bonito. Mas, parece complicada.”

Mordi os lábios olhando o título.

Era uma trança espinha de peixe embutida e lateral, realmente não era fácil, mas era bonita então concordei. Ícaro ria enquanto borrifava água no meu cabelo, tentando deixar as mechas os mais maleáveis possíveis. Levantei o celular com o tutorial da Sabrina passando para que ele conseguisse ver o que devia fazer.

Demorou uma pequena eternidade e Ícaro teve que refazer a trança algumas vezes antes de ficar bom, mas no final o resultado compensou. Dei risada para o meu reflexo enquanto ele sentava de frente para mim sorridente.

“Você tá tão lindo!”

Sorri erguendo os olhos para o teto numa tentativa de manter as emoções bem longe da maquiagem. As mãos de Ícaro passaram pelo meu rosto bem devagar antes de ele me beijar de novo, com menos delicadeza dessa vez, as agarrando minha camisa.

“Vou guardar essas coisas.” – ele sorriu, se levantando, juntou todos os enfeites e amarradores de cabelo numa mão antes de me dirigir uma expressão séria. – “Me espera na sala.”

“Ok.” – concordei franzindo a testa enquanto ele ia pro quarto da Alexia guardar tudo.

Suspirei, me deitando no sofá e resistindo ao impulso de coçar os olhos sentindo os pós das maquiagens pinicarem meu rosto. Era tão estranho estar usando maquiagem de novo... Mas, era bom. Eu demoraria a me acostumar de novo porque a sensação no momento era como se todo o meu rosto estivesse coçando, mas tudo ao seu tempo. Peguei meu celular para poder ver meu reflexo na tela, admirei por mais um instante como meus olhos estavam. Não era a melhor maquiagem do mundo, mas era boa. Destacava tão bem meus olhos...

Ergui os olhos quando Ícaro cutucou minha perna.

“Senta!”

Obedeci.

Ícaro sorriu se sentando do meu lado e colocando uma perna sobre a minha, me olhando todo sorridente.

"Você ficou lindo."

"Obrigado."

“Eu to ainda mais apaixonado... Não. Espera. Deixa eu reformular.” – ele respirou fundo e umedeceu os lábios antes de voltar a erguer as mãos. – “Você é lindo demais, é só que quando você se maquia fica... Não sei. Você parece mais confiante e isso é sexy demais e agora você tá tão... E meu coração tá tipo... Meu Deus!” – Ícaro deu risada se abanando.

Dei risada, minhas bochechas queimando, tive que lutar para não cobrir o rosto.

“Entendi.”

Ele sorriu de lado, passando a mão pelo meu rosto, os dedos descendo devagar pelo meu pescoço e se enrolando no meu colar de turmalinas negras e ametistas, puxando como se fosse uma coleira. Engoli em seco, meu coração acelerando sob seu olhar. Ícaro ergueu o queixo daquele jeito austero, os olhos brilhando com malícia, o rosto aproximando-se devagar do meu, a expressão tão rígida no rosto que eu mal me atrevia a respirar.

Seus lábios roçaram os meus, mas não mais que isso, desviando-se logo para o meu maxilar, descendo pelo meu pescoço com beijos suaves, sua respiração fazendo cócegas na minha pele.

Senti um arrepio conforme seus lábios seguiam, os dentes tocando de leve sobre minha clavícula, suspirei baixo enquanto apertava sua coxa. Ícaro parou um instante antes de se afastar deixando mais um beijo sobre meu ombro.

“Isso é triste.”

Uni as sobrancelhas, confuso. - “O quê?”

“Eu não posso puxar seu cabelo.” – explicou. – “Tá muito bonito pra puxar e essa trança deu muito trabalho para desmanchar agora. Mas... Eu gosto tanto de puxar seu cabelo.”

Dei risada revirando os olhos para o teto. Foi inevitável não achar graça da sua expressão pirracenta, como uma criança que descobre que não vai poder brincar com um brinquedo favorito por alguma razão.

“Verdade. Eu gosto quando você puxa meu cabelo.”

“Eu sei disso.” – Ícaro deu um sorrisinho voltando a colocar uma perna sobre a minha enquanto se aproximava para me beijar, suas mãos acariciando meu pescoço e descendo agilmente para meus ombros, apertando com força.

Me afastei contendo um grito de dor, minha vista escurecendo um instante. Respirei fundo, piscando enquanto o mundo entrava em foco de novo.

Ícaro me olhou preocupado.

"Nó muscular." - expliquei.

"Espera um instante." - mandou, sério.

Ele foi para cozinha. O ouvi acender o fogo e o barulho de água antes de voltar para sala e ir direto para o quarto, franzi a testa esperando. Ícaro voltou trazendo um creme hidratante e sentou-se ao meu lado.

 "Tira a camisa."

Obedeci.

Senti o creme frio nos meus ombros e suspirei sentindo o aperto suave de suas mãos enquanto Ícaro começava a massagear, apertando os pontos tensos. Respirei fundo aproveitando a sensação. Meu namorado definitivamente tem muitos talentos, pensei sentindo-o pressionar os nós doloridos.

Ele se levantou de repente (e acho que olhei irritado quando ele fez isso, porque sério, a massagem tava muito boa), voltou instantes depois trazendo uma tigela com água quente e um pano. Tive vontade de dizer que não precisava daquilo tudo, mas lembrei bem a tempo a conversa que tivemos no quarto e decidi ficar quieto, deixando o colocar o pano molhado sobre meus ombros e cuidar de mim já que ele pareceu tão incomodado com a ideia de não estar fazendo isso.

"Confortável?"

"Com certeza." - sorri e realmente era confortável.

"Bom." - Ícaro abriu aquele sorriso de covinhas enquanto sentava ao meu lado novamente. - "Alexia tem uma bolsa de água quente, mas eu não sei onde ela guarda, então o pano vai ter que servir, desculpa."

"Tá ótimo." - garanti, sorrindo. - "Obrigado, amor."

"Quer assistir alguma coisa?"

Arqueei a sobrancelha um pouco surpreso e então suspirei.

"Por que não coloca alguma coisa que você goste de assistir?"

Ele pareceu desconfortável antes de fazer bico.

"Eu não..."

"Ícaro, escolhe alguma coisa pra gente." - pedi o mais gentilmente possível, sabendo que ele diria que não queria assistir nada.

Tentar convencer Ícaro a fazer alguma coisa era algo que exigia um certo nível de cuidado. Se eu pressionasse demais ele começava a chorar e pedia para ficar sozinho, se eu não pressionasse nada... Bom a gente ficava o dia inteiro sem fazer nada. Era meio difícil saber o quanto eu podia pressionar, mas acho que estava pegando o jeito.

"O que você quer assistir?" - perguntou mexendo os pés.

Mordi os lábios pensando. - "Que tal colocar algo que você gostava de assistir quando criança?"

Sei que parece um pedido estranho, mas de acordo minha cunhada, era uma boa forma de tentar fazer o Ícaro fazer coisas que ele costumava gostar, então...

Observei sua expressão pensativa antes de sorrir.

"Eu gostava de assistir 'O Milagre de A-N-N-E S-U-L-L-I-V-A-N.' Era o único filme que eu conhecia que tinha uma personagem surda." - contou sorrindo. - "Mas não tem em português, só em inglês, mas é legendado." — fez cara de quem pede desculpas, como se realmente se preocupasse que eu ia achar isso algo negativo.

Meu Deus, esse menino precisa de terapia urgente. Quando foi a última vez que a gente viu algo dublado? Eu já estava até esquecendo a voz do  Guilherme Briggs!

"Pode ser. Sobre o que é?"

"É baseado numa história real. A-N-N-E era uma mulher com baixa visão, ela foi professora de H-E-L-L-E-N K-E-L-L-E-R, que foi a primeira surda-cega a se formar numa universidade. O filme é sobre ela ensinando a H-E-L-L-E-N língua de sinais."

"Que legal!"

"Posso colocar?"

"Pode sim." - sorri porque sempre me sentia mais feliz quando conseguia colocá-lo para fazer algo, mesmo que fosse só ficar sentado no sofá assistindo um filme antigo.

*** 

Eu estava acordado quando minha mãe chegou. Estava roendo as unhas enquanto respondia às questões do teste de um curso online sobre Excel. Sei lá, pareceu uma coisa boa de se ter no currículo, fora que, tentar me entreter aprendendo coisas ajudava a deixar para trás o cansaço dos dias tentando ajudar o Ícaro.

Mesmo quando tudo corria bem, vê-lo mal era cansativo. Eu precisava relaxar.

— Ainda acordado?

— Não, imagina. – murmurei, revirando os olhos.

Minha mãe deu risada, vindo para o meu lado e me dando um beijo no alto da cabeça.

— To ocupado. – murmurei, franzi a testa pra ela. — Como foi a semana?

— Foi. – ela deu de ombros e bocejou. — Me ligaram da sua escola hoje.

— Como é? – arregalei os olhos, voltando minha atenção para minha mãe um instante, mas olhei de novo o cronometro no computador para ter certeza de que conseguiria terminar o teste a tempo. Ok, quarenta minutos para responder mais cinco questões alternativas. Seria fácil. — Por que ligaram?

Minha mãe massageou a ponte do nariz, tirando os sapatos, as olheiras mais aparentes do que nunca.

— Vão diminuir seu desconto no próximo ano.

Gelei.

Fiquei sem saber se tinha ouvido direito e tive que engolir em seco para conseguir falar, de repente minhas mãos tremiam.

— Como é? – minha voz saiu com dificuldade. Pisquei e senti lágrimas pesadas alcançando meus cílios. — O quanto?

— Vão diminuir em trinta por cento.

Meu coração pareceu parar um instante antes de acelerar.

— Então, eu vou ficar só com cinquenta por cento? Isso... Isso... – engoli em seco sem saber concluir.

A conta não ia fechar.

Eu não precisava nem fazer as contas do quanto exatamente ficaria o preço da mensalidade para saber isso. As contas não iam fechar. Já havia meses difíceis com oitenta por cento. Com cinquenta então...

— Disseram que suas notas estão muito baixas. – minha mãe cruzou os braços enquanto falava. — Você disse que estava estudando.

— Eu to! – garanti me levantando num susto. — Eu to estudando!

— Como isso foi acontecer? Você sabia que tinha que se esforçar!

Recuei um passo.

— Eu to me esforçando. – murmurei. — Eu...

— Não foi o que me disseram. – a voz da minha mãe era rígida e cansada. Dava para ver que ela não queria ter essa conversa, ela não queria bancar o policial mal. Mas, era exatamente o que ela estava fazendo invés de me deixar falar.

Caralho, eu tava estudando!

Eu tava...

— Você sabia o quão era importante manter suas notas.

— Sim. – concordei, embora não fosse uma pergunta.

— O que aconteceu?

Encolhi os ombros sem saber o que dizer.

— Você se distraiu com o namoro? – ela arqueou a sobrancelha. — Eu não devia deixar você sair tanto, meu Deus.

— Não foi isso! – subi o tom de voz, irritado com a insinuação. Ok, era um pouco difícil equilibrar namoro e estudo, mas eu tava desenrolando isso muito bem! Minhas notas no primeiro bimestre desse ano eram provas disso!

— Então o que foi? Porque claramente tem algo te distraindo dos estudos e...

— Eu não to distraído! – gritei. — Eu to estudando! To estudando tanto quanto ano passado, tanto quanto ano retrasado, tanto quanto sempre estudei!

— Pois não é o que parece. – a voz de minha mãe foi fria.

Grunhi. — Se você não acredita o problema é seu! Eu sei o que to fazendo e se você fosse um pouquinho mais presente também saberia!

Minha mãe piscou assustada, me olhando como se tivesse levado um tapa na cara.

— Eu passo meus dias estudando e eu sei disso e se você não sabe é simplesmente porque você não tá aqui! Agora se você prefere acreditar em qualquer merda sobre eu não tá me esforçando que a escola disse é problema seu! Não meu!

— Olha esse tom!

Rangi os dentes e cruzei os braços, meu coração estava disparado e eu estava tentando não bufar.

— Se não foi isso, então o que foi? Disseram que você não tá prestando atenção nas aulas e não tá entregando as atividades.

Cerrei os lábios e respirei fundo.

— Eu estaria entregando se pudesse.

— O que quer dizer?

Dei de ombros.

— Mathias...

Aquele tom... Puta que pariu. Aquilo foi demais.

Era um tom de cobrança que parecia demais com o tom dos meus professores. Como se a culpa fosse toda minha, como se eu tivesse todo errado por não conseguir me comportar como um robô que tirava notas perfeitas...

Dei de ombros novamente, sustentando o olhar rígido da minha mãe.

— Mathias, eu não posso ajudar se você não falar.

Não pude evitar um riso irônico.

— E como você ajudaria, posso saber? Indo pra escola falar com a direção em alguma folga? Ah, é, esqueci! Você não folga! Então, você ia fazer o quê? Deitar comigo e dizer que vai ficar tudo bem se eu ignorar? Como se desse pra eu ignorar? Me abraçar quando eu chegar da escola ainda em pânico depois de passar o dia aguentando piadas ridículas? Ah, espera, você nunca tá aqui quando eu chego! Aliás, você nunca tá aqui! Então, não me venha com cobranças porque você não tem o direito de me cobrar nada, entendeu? Você não tem porque você não sabe nada do que acontece na minha vida porque você nunca tá por perto!

Os olhos da minha mãe estavam cheios e eu estava arfando quando parei de falar.

— Eu passo a semana trabalhando...

— Eu sei. – dei de ombros.

— E você também sabe que esse é o único jeito de eu conseguir pagar tudo.

— Porque você não me deixa trabalhar porque eu tenho que estudar para manter esse desconto maldito pra continuar estudando naquela escola cheia de gente bosta! – gritei. — Você não me deixa ajudar!

— É, e você não tá conseguindo manter suas notas mesmo não fazendo mais nada da vida! Imagina se fizesse! – ela também subiu a voz.

— Ah, e por que será? Será que é difícil manter as notas altas quando passam os dias roubando meu material, rasgando meus trabalhos e me humilhando de todos os jeitos possíveis? Será que é difícil me concentrar na aula quando estão todos espalhando boatos sobre eu estar dando uns pegas no filho da diretora e só por isso tá recebendo desconto? E não venha me dizer que é só ignorar que param porque não para! Só piora e eu não sei mais o que fazer!

Minha mãe fechou os olhos, as lágrimas escorrendo, ela fez menção a falar, mas não deixei. Não me importava estar sendo cruel ou se estivesse exagerando, não queria deixá-la falar, não queria ouvir nada... Tano esforço para isso? Não, eu não precisava de sermão. Só queria que tudo fosse para o inferno!

— Você não sabe como é, então não vem me cobrar. – cortei novamente. — Não vem me dizer que eu to distraído com namoro e não sei mais o que. Eu não sou você. Não sou um adolescente iludido que dá mais atenção pra namoro do que pra estudo e acaba tendo que largar a escola por descuido!

Sabia que jogar a carta "você largou a escola porque tinha dedo podre e engravidou de um idiota que sumiu no mundo pra não me assumir" era crueldade, mas quer saber? Foda-se! 

— Mathias... Amor...

Balancei a cabeça me afastando de seus braços quando ela tentou me abraçar.

— Eu não consigo me concentrar. Os professores não param de fazer comentários desnecessários sobre minha maquiagem e sobre eu ser gay. As meninas da sala não param de quebrar meus lápis, arrancar as folhas dos meus cadernos... Os meninos ficam me empurrando, me chutando, puxando meu cabelo e fazendo insinuações e piadas realmente nojentas. Eu não consigo me concentrar. Não é minha culpa. Alguns professores tentam ajudar, mas, mesmo assim não muda muito. Então, não ouse falar comigo como se eu fosse culpado porque você não sabe um por cento do que acontece naquela escola.

Dei as costas e fui pro meu quarto.

Tranquei a porta antes que minha mãe viesse atrás de mim e me larguei sobre a cama.

Só cinquenta por cento.

Fechei os olhos e deixei o choro vir, a fronha do travesseiro ficando manchada com a maquiagem. Puxei as presilhas e elásticos do meu cabelo de qualquer jeito, desfazendo a trança de cima para baixo e arrancando vários fios de cabelo em consequência disso.

Eu não ligava.

Estava desde o ano passado, desde antes... Desde sempre lutando contra toda aquela pressão, tentando aguentar tudo aquilo, mas eu não aguentava mais, não ligava. Eu estava cansado, cansado demais de aguentar e tentar agir como se não me atingisse, estava exausto de lutar contra toda aquela pressão e de continuar tentando ficar em pé. Então, fechei os olhos e deixei a pressão me esmagar.


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