Sinais escrita por Sirena


Capítulo 26
Amigos e ONGs


Notas iniciais do capítulo

Obrigada fran_silva, Isah Doll e Joshua de Vine pelos comentários ♥



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Ícaro

Meus dedos sangraram depois de eu roer demais as unhas e arrancar muito da pele. Mesmo assim, continuei roendo e arrancando. Ardia e doía, mas eu não me importava muito.

E eu definitivamente teria trancado a porta do quarto se soubesse que minha irmã tinha chamado artilharia pesada para me fazer sair de casa. Por artilharia pesada, quero dizer o Davi.

Ele entrou no meu quarto de rompante, o cabelo cacheado preso num coque e a bolsa transversal onde carregava sua câmera pendurada num dos ombros.

Me encolhi no lugar quando seus olhos fixaram em mim como o de um demônio que foi invocado com o único propósito de me arrastar diretamente para as profundezas do inferno, que no caso era qualquer lugar fora da minha casa.

“Oi.” — cumprimentei, hesitante.

“Levanta, a gente vai sair.”

Mal-educado, nem me deu oi!

“Não quero.” – fiz careta.

“E quem te perguntou?” – Davi arqueou as sobrancelhas e se virou, abrindo as portas do meu guarda-roupa e começando a revirar minhas camisas e jaquetas.

Não me movi quando ele jogou uma camiseta de mangas longas, de lã amarela e vermelha em mim e continuei parado quando jogou uma jeans preta velha na minha cara.

“Onde estão seus sapatos?”

“Não vou sair.”

“Larga de charme, Ícaro. Levanta, toma um banho e coloca essa roupa. A gente vai sair você querendo ou não.” – declarou me fuzilando com o olhar.

“Pode tentar me obrigar, quero ver conseguir.” – bufei e afastei as roupas que ele tinha escolhido.

Davi semicerrou os olhos antes de se aproximar. Arregalei os olhos, confuso, quando o nariz dele roçou no meu pescoço e me afastei quando senti ele dar um cheiro.

“Você tem problema?” — franzi a testa.

“Você tá cheiroso.”

“Eu sei que to trancado aqui faz tempo, mas eu ainda tomo banho, Davi! Não virei um porco.”

“Ah, é que seu cabelo tá horrível então eu pensei...” – ele encolheu os ombros, corado. – “Bom, era só pra ver se você realmente precisava de banho. Só se troca e vamos sair daqui.”

“Davi, eu vou falar devagar pra você entender. Eu não quero sair!”

Existe uma razão para Alexia considerar chamar o Davi “artilharia pesada.” Ele era ainda mais teimoso do que eu! Basicamente, tudo acabaria com nós dois brigando até um lado ceder e ela sabia que eu estava um tanto frágil demais para aguentar bater de frente com o Davi por muito tempo então quem acabaria cedendo seria eu.

Minha mãe costumava achar que íamos acabar ficando juntos eventualmente, mas eu só olhava com o maior deboche e perguntava se ela vivia em um mundo ideal em que Davi e eu não acabaríamos nos matando se isso acontecesse. Normalmente era o bastante para o assunto morrer.

A verdade era que eu meio que odiava quando ela falava isso. Não sei bem explicar, mas havia algo de chato em como minha mãe achava que eu acabaria, eventualmente, arrastando todos os garotos com quem interagia para a cama. Ok, eu tive algumas escolhas bem duvidosas na vida, reconheço... Mas, mesmo assim... Era chato.

“Ícaro, foi um susto. Só isso.”

“Ele me arranhou!”

“Você não pode ficar assim sempre que vê um cachorro!”

“Não é só com cachorro.” – revirei os olhos, porque eu não gostava quando reduziam tudo a um cachorro. Sim, meus surtos eram bem mais fortes quando envolvia esse animal em específico porque me fazia reviver a situação que começou isso tudo, mas... O problema não era só o cachorro. Tinha gatilhos. Não era só um medo de cães.

“É com o que mais?”

Encolhi os ombros, me arrependendo de ter mencionado isso.

“Contando com a vez do cachorro, ano passado eu surtei três vezes.”

Ele uniu as sobrancelhas, provavelmente tentando lembrar de algum momento em que eu tenha ficado trancado por tempo demais, mas ele não iria lembrar, eu tinha cuidado para que não.

“Eu inventava que tava muito doente.” - expliquei. – “Que não tava indo pra escola porque tava doente, mas... Eu só tava com medo. Normalmente durava só uma ou duas semanas... Três se fosse muito sério.”

“O que acontecia?”

Hesitei. – “Ano passado, a última vez que eu surtei antes dos cachorros serem colocados na rua... Eu tava num encontro com o Marcelo e sei lá... Uma moça começou a gritar com a gente e eu surtei, vim pra casa e no dia seguinte eu inventei que tava com virose.”

... Eu lembro disso. O Marcelo contou pra Sabrina, ele tentou comprar briga com a pessoa não foi?”

Estremeci com a lembrança e concordei com a cabeça.

“É, foi legal da parte dele, mas não me ajudou a me acalmar, porque depois disso eu tava tipo... Tremendo e quase vomitando e ele não parava de querer comprar briga com qualquer um que olhasse e eu só queria ir embora e ele não... E ele meio que brigou comigo por querer ir embora sendo que a gente não tava fazendo nada errado e eu me senti pior ainda e no fim ele não me ajudou em nada, a gente brigou e eu vim pra casa sozinho e em pânico. Ótimo encontro.”

“Marcelo nunca foi bom pra acalmar os outros. O Fernando que diga.”

Lutei contra a curiosidade que essa informação trouxe e me compadeci um pouco com Fernando mesmo sem saber bem a situação. Sei lá. Acho que seria bom para saber com certeza que não inventei todas aquelas coisas desagradáveis... Tentei não revirar os olhos para minha mente porque odiava como ficava tentando me convencer de que foi tudo ilusão minha quando sabia que não tinha sido.

"Eu nunca gostei muito do Marcelo." - Davi continuou.

"Mentira." - dei risada. - "Você adorava quando saíamos os três para fotografar."

"Certo, eu nunca gostei dele desde que ele tentou te arrastar pra fora. Mas, se eu soubesse como ele lidava com sua ansiedade e ficava te dando medo, tinha deixado de gostar dele bem antes." - deu de ombros, sentando-se sobre um dos próprios pés.

"Era horrível." - suspirei. - "Mas, não sinto que o Marcelo me dava medo, sabe? Eu sinto diferente. Como se fosse o contrário. Sinto que ele me tirou todo o direito de sentir medo. Como se eu fosse errado por isso. Até hoje parece que eu não tenho direito de ter medo de certas coisas."

Davi balançou a cabeça, uma veia saltando de leve no pescoço, tive a impressão que ele estava se imaginando batendo no Marcelo.

"Você tem todo direito aos seus sentimentos, Ícaro... Olha... Eu sei que parece uma corda bamba. Todos esses sentimentos, bons e ruins e tentar manter todos eles equilibrados é como andar na corda bamba, às vezes a gente pende mais pra um lado, às vezes mais pro outro e às vezes a gente cai... Mas... A gente precisa de todos esses sentimentos."

"Não precisa não."

"Precisa sim. Tem insetos que voam pro fogo, atraídos pela beleza das chamas e sem medo algum do que vai acontecer. Medo nos impede de voar em direção ao fogo."

"Então eu devo estar no meio de um incêndio." - bufei e cruzei os braços, irritado e ele deu risada revirando os olhos antes de voltar ao foco.

“Quantas vezes você surtou tipo... No todo?”

Franzi os lábios.

“Eu... Não sei. Perdi a conta. Quando eu tinha treze qualquer coisa me fazia surtar, com catorze foi menos... Quinze foram cinco. Dezesseis foram três. Esse ano só essa. É só que... Sei lá, quando algo me faz sentir que o único lugar seguro é a minha casa... Não é só quando algo acontece comigo, sabe? Às vezes é uma notícia que eu leio, ou algo que eu vejo acontecer com outra pessoa e... Aí, eu surto. Às vezes é algo de homofobia, às vezes algo de racismo... Se lá fora não parece seguro, eu fico aqui. E não é tudo também, tem vezes que essas coisas me acontecem e eu lido bem, mas... Tem vezes que não. Não sei explicar. Normalmente eu me sinto bem em deitar no colo do Mathias quando a gente sai, mas tem dias que... Que só não.”

“Entendi.” – Davi suspirou e mexeu distraidamente na correia da bolsa antes de suspirar. – “Mas, o mundo não é um mar de monstros, Ícaro. Às vezes parece, eu sei. Mas, não é. Então se troca e vamos sair.”

“Eu não quero.” – estava praticamente suplicando, meus olhos enchendo sem saber como lidar com a insistência.

“Confia em mim. Se troca, pega sua câmera e vem.”

“Eu não quero!” – repeti mais firmemente, embora soubesse que era inútil.

Davi respirou fundo.

"Ícaro... Eu entendo que deva ser difícil, mas você já passou por isso antes. Duas vezes. Você consegue."

"Eu não quero!"

"Você precisa. E mais ainda..." - ele franziu a testa. - "Você sabe que precisa de terapia e sabe que atendimento a distância e em Libras é algo um tanto quanto impossível de conseguir. A menos que você conheça um Gênio da Lâmpada."

"Eu... Não sei como essas coisas de terapia ajudam. Não sei como funciona."

"O importante é que ajuda." - ele deu de ombros. - "Me promete que vai marcar?"

"... Prometo."

"Agora vamos sair!"

"E o que você vai fazer se eu continuar negando?" - arqueei a sobrancelha, irritado. - "Me arrastar aos gritos pra fora igual o Marcelo?"

Isso foi o bastante. Os ombros do Davi abaixaram enquanto ele se ajeitava perto de mim.

"Sabe que eu não faria isso."

Olhei-o de lado. - "Quero ficar sozinho."

"Não quer não. Olha pra mim." - suspirei obedecendo. - "Se você não quer sair, tudo bem. Eu fico aqui. Eu ia vir antes, mas passei os últimos dias com um zumbido horrível no ouvido que não passava por nada. Se você não quer sair mesmo, tudo bem. Mas você sabe que precisa."

Concordei com a cabeça e ele continuou, uma expressão amena no rosto, mexendo as mãos devagar, como se recitasse um poema em Libras.

"Eu tinha uma sessão de fotos agendada pra hoje numa ONG não muito longe. Achei que você ia gostar de ir, que ia te fazer bem tirar fotos. É uma ONG de animais, então pensei que você podia ficar na parte dos gatos e eu ficar tirando foto dos cachorros... É bem legal, eu já voluntario lá tem uns três anos. A gente ia fantasiar os animais de super-heróis para as fotos porque as pessoas sentem mais vontade de adotar um quando ele tá fantasiado do seu personagem favorito."— Davi respirou fundo antes de continuar. - "Achei que sair pra tirar fotos podia te fazer bem... A gente iria de bicicleta porque você tá há muito tempo aqui, então pensei que isso ajudaria a gastar energia."

"Você planejou bem." - observei porque a ideia realmente soava tentadora. Sair para fotografar era sempre tentador, era um dos meus passatempos prediletos desde sempre.

"Planejei." - concordou. - "Mas, sair ou não tem que ser uma escolha sua. Não vou te forçar. Se você não quiser, eu mando mensagem pra ONG falando que não vou poder ir e fico aqui com você."

Abaixei a cabeça e franzi os lábios pensando por um longo instante.

Minhas pernas doíam depois de dois meses sem sair de casa, eu mal estava andando trancado aqui então meu equilíbrio tava seriamente prejudicado e sair para andar de bicicleta poderia ser uma boa forma de evitar que minhas pernas pedissem divórcio do resto do meu corpo.

E tirar fotos podia ser legal. Ok, tinha cachorros lá, mas também tinha gatos e isso podia ser bom... Mordi os lábios ponderando a ideia mais um instante.

Além do mais, o Davi disse que se voluntariava lá já tinha uns anos, então, não pegaria bem ele desmarcar tão em cima da hora, né? Não seria legal da minha parte isso.

Pelo pouco que eu podia ver da janela do quarto, o dia estava bonito, um pouco nublado, mas ainda assim ensolarado e eu gostava de dias assim, dias amenos... Sair parecia bom.

Parecia.

Suspirei.

"Ok. Vou trocar de roupa."

Davi abriu um enorme sorriso se levantando.

"To te esperando."

Ele fechou a porta do quarto ao sair.

***

Mathias disse que achava que eu estava mal e me julgando ao ponto de achar todos a minha volta também estavam. Acho que ele estava certo. Acho isso porque quando sai, a impressão que eu tive era que todos os passantes, todos os vizinhos, as pessoas em seus carros, todas, todas sem exceção sabiam tudo de mim e estavam me julgando.

Era como se todos soubessem tudo em mim, cada vergonha, cada medo, cada defeito e cada uma das coisas que julgavam errado sobre mim. Era como se soubessem tudo e julgassem tudo e me olhassem e... Era tão sufocante. Tentei me focar nos meus pés e na rua e no que estava fazendo.

Agradeci mentalmente ao Davi umas oito vezes pela ideia da bicicleta, ajudou muito porque invés de prestar atenção em toda aquelas sensações ruins, me foquei em pedalar, volta e meia olhando pelos retrovisores da bicicleta para ter certeza que não tinha nenhum louco atrás de mim prestes a me atropelar. Tecnicamente falando, segundo o DETRAN, é obrigatório que todas as bicicletas tenham retrovisor, mas na maioria das vezes você só vai ver isso em bicicletas de surdos. É a melhor forma de ficar atento ao trânsito. Se alguém buzinar atrás de mim eu não ouviria, mas, veria. Ver era o mais importante sempre. É como diz o ditado, o olho é caro.

Quando finalmente paramos, umas três horas depois, minhas pernas estavam definitivamente querendo divórcio do meu corpo e eu tinha lágrimas nos olhos que ardiam pelo vento. Me sentei na calçada, meu peito disparado, tentando recuperar o fôlego. Fiquei surpreso por não ter acabado ficado com alguma câimbra ou algo assim. Massageei minhas panturrilhas, tentando aliviar a dor, conseguia sentir a câimbra querendo vir...

Davi riu tocando a campainha e se sentou do meu lado esperando. Óbvio que para ele aquilo não tinha sido nada, ele e a Sabrina saiam para correr alguns quilômetros todos os dias. Além de que ele fazia futebol e ela basquete. Meu Deus, quem suporta gente saudável a esse ponto? Quem acorda de manhãzinha com uma disposição para correr todos os dias? Eu acordava tarde e mesmo assim acordava cansado!

“Então, deixa eu ver se eu entendi...” - mordi os lábios, um pensamento me correndo rapidamente. - “Você planejou me trazer aqui pra ajudar um monte de animais maltratados e me dizer que os cães que me atacaram não tinham culpa. Que eu não preciso ter medo de cães porque não é culpa deles, né? Mas, assim... Eu sei disso, tá? Eu sei! Racionalmente falando, eu sei. Mas, quando eu vejo aquele cachorro na minha rua, eu não sou racional! Não é questão de saber ou não, é questão do que eu sinto. Eu sei que aqueles cães não me atacaram por maldade, sei que só tinham um dono idiota, mas... Mas...” – respirei fundo, sem saber como concluir.

Ele balançou a cabeça dando risada, pegou a mochila que me fez trazer e tirou de dentro uma garrafa de água e uma cartela de analgésicos.

“Você me dá mais crédito do que eu mereço, Ícaro.”

O olhei desconfiado enquanto tomava o remédio.

“Sua irmã me chamou porque achou que eu ia conseguir te convencer a sair. Por acaso eu já tinha essa sessão agendada há alguns meses  e achei que sair pra fotografar te faria bem. Só isso. Juro. Não pensei nessa parte emotiva sobre cães maltratados. Como eu disse antes, você não precisa me ajudar com os cachorros, pode ficar fotografando os gatos na outra ala.”

Mordi os lábios antes de concordar.

Não sei o quanto eu acreditava naquela explicação, mas àquele ponto não tinha muito mais como discutir.

***

Cães por todos os lados. Pequenos, grandes e médios. Cães, cães, cães.

Eu praticamente fugi para o gatil. Davi explicou um pouco como funcionava a organização. Eles contavam com um certo número de voluntariados que variava dependendo do dia. Ele explicou que conheceu a ONG procurava por um cachorro para adotar e dar de presente para Vanessa quando Vanessa decidiu que queria porque queria um cão-guia e não entendia que eles não tinham como fazer isso porque tinha muito mais gente querendo adotar um cão-guia do que cão-guia sendo treinado no Brasil.

Solução: adotar um cachorro qualquer para passar o tempo com a Vanessa e ela  parar de encher um pouco. Acho que ela não ficou tão feliz assim, mas ela gosta muito do Caramelo. Ele me dá medo, mas é fofinho... Desde que fique bem longe de mim, ele é fofinho.

Suspirei olhando ao redor. Não tinham muitos voluntários na ONG, mas os que tinham pareciam simpáticos e sabiam um pouquinho de Libras, provavelmente por conta do Davi. Elas me explicaram quais gatos eram mais mansos e quais eram muito arredios. Também explicaram que os gatos filhotes eram mais fofos e por isso tinham mais chance de adoção do que os adultos que provavelmente ficariam ali pra sempre (acho que qualquer semelhança com como funciona a adoção de humanos não é mera coincidência).

Colocar fantasias de super-heróis em gatos era particularmente difícil, mas consegui tirar boas fotos da maioria. Fiz uma nota mental de mandar uma de um gatinho malhado fantasiado de Capitão América para o Mathias. No fim, consegui tirar foto da maioria dos gatos.

Me sentei em posição de índio em frente a caixinha de transporte de um dos que não tinha fotografado, observando o gato branco com manchas pretas e olhos azuis. Ele tinha apenas uma orelha e parecia incrivelmente entediado deitado ali dentro. Mordi os lábios antes de levantar e pegar uma fita que tinha visto algumas das voluntárias usarem para brincar com os animais e sentei outra vez de frente pro animal, abrindo a portinha para que ele saísse.

Ele continuou deitado e me olhou de forma julgadora como se estivesse tentando entender o que eu estava planejando.

Suspirei colocando a fita de lado.

“Oi.”

Ele piscou. Não sei se isso era um bom sinal, mas resolvi fingir que sim.

“Me disseram que o seu antigo dono cortou uma das suas orelhas. Deve ser difícil escutar, não é? Também falaram que você tá aqui faz tempo, acho que ninguém quer um gato que não ouve direito.” – suspirei e ele piscou de novo. - “Eu não escuto nada.”

Outra piscada. As pupilas dele estavam dilatadas. Ele mudou de posição, encolhendo as patas sob o corpo e miou.

Dei de ombros.

“É sério. Nem um pouquinho. Quando eu era criança gostava de correr no meio da rua e quase fui atropelado por uma moto. O cara disse que tava buzinando, mas... Eu realmente não escuto.” – suspirei. – “Na verdade, eu cheguei a cair no chão... E o cara também, ele se machucou mais do que eu pelo que sei. Meu pai disse que eu que atropelei a moto e não o contrário.” — dei risada.

Suspirei e dei um tapinha no chão a minha frente, convidando o gatinho a sair e vir para perto de mim. Ele me olhou e seus bigodes tremeram levemente, mas não se mexeu.

“Tudo bem. Deve ser confortável aí dentro, né? Eu também não gosto muito de sair. Em casa sempre parece mais seguro. Mas, se eu não tirar uma foto bem legal sua você tem menos chance de ser adotado, sabe? Eu posso te vestir de Batman! Todo mundo gosta do Batman!” — tentei, forçando um sorriso, mas a julgar por como ele me olhava, acho que não colou. – “Tudo bem. Você não deve tá entendendo o que eu to dizendo mesmo, né? Eu vi dizer que animais são adaptativos, mas acho que demora pra adaptação acontecer. Tudo bem. Não precisa sair se não quiser.”

Continuei sentado sem me mexer, sustentando o olhar do gatinho por um longo instante. Por fim, ele miou novamente e se espreguiçou antes de dar passos hesitantes para fora da caixa. Dei um meio sorriso quando se sentou na minha frente.

Peguei a fita e balancei na frente dele, seus olhos seguiram o movimento enquanto se agachava, a cauda balançando suavemente de um lado para o outro.

Quase soltei a fita quando o gatinho pulou, agarrando uma ponta entre as garras e os dentes. Dei risada puxando até que soltasse e balancei a fita novamente. Fiz isso mais algumas vezes, e o gatinho acabou no meu colo, uma pata apoiada no meu peito enquanto a outra tentava alcançar a ponta que estava na minha mão.

Me assustei quando o Davi se sentou ao meu lado e deixei a fita cair. O gatinho fez a festa, puxando-a para longe de mim.

“Acabei.”

“A gente já vai embora?” – perguntei, erguendo as sobrancelhas.

“Podemos ficar mais um pouco se quiser. Parece estar se divertindo.” — ele sorriu e me mostrou o sinal da gatinha em seguida. Claramente foi ele que inventou porque ele é preguiçoso com sinais, então ao invés de criar um sinal especifico para gata, o sinal dela era igual ao sinal de Cacau.

Davi deu um tapinha no chão para chamar a atenção de Cacau e ela miou, se desenroscando da fita e vindo pra perto. Achei que ela iria subir no colo dele, mas ao invés disso, a gatinha colocou uma pata sobre o joelho do Davi e ficou parada, piscando devagar.

Observei o Davi piscar igualmente devagar antes de erguer a mão bem lentamente para lhe fazer carinho.

“Cacau é surda?”

Davi balançou a cabeça e afastou as mãos da gatinha, ela miou em protesto.

“Ela ainda escuta, mas perdeu parte da audição. Ela passou por muita coisa.” – ele mordeu os lábios antes de continuar. – “Tá vendo as falhas no pelo dela? Jogaram óleo quente nela quando era filhote. O pelo ainda tá se recuperando. Devem ter feito mais coisas porque demorou pra gente conseguir a confiança dela, às vezes ela ainda é desconfiada... Mas, tá superando. Ela ainda não quer vir pro colo de ninguém. O mais perto que chega é isso.”

Concordei com a cabeça e estendi a mão.

Cacau virou o rosto na minha direção e se afastou de Davi, cheirando meus dedos um segundo antes de abaixar a cabeça. Dei um sorriso fazendo carinho nela.

***

Voltar para casa foi agonizante. A sensação de liberdade foi aos poucos sendo substituída por uma sensação de aprisionamento, como se estivesse sendo jogado para trás de grades. Davi se despediu com um aperto de mão e me deu um soco no ombro, seu semblante preocupado deixava bem claro que ele duvidava muito que um dia fora tinha sido o bastante para me convencer a voltar sair. Não julgo, ele tava meio que certo.

Já era noite e meus pais estavam servindo a mesa de jantar. Alexia estava deitada no sofá vendo uma novela qualquer e estendeu a mão quando me viu. Suspirei me agachando em frente a ele e segurando sua mão para dar-lhe um beijo na bochecha. Ela fez carinho no meu cabelo e me deu um beijinho na testa.

Sorri indo para a cozinha. Meu pai estava colocando os pratos na mesa enquanto minha mãe terminava de fazer a comida. Respirei fundo.

“Oi.”

“Como foi o dia?” – minha mãe perguntou, se afastando do fogão e vindo pro meu lado, dando um beijo na minha têmpora.

“Foi legal. Eu tirei várias fotos.”

“Então, você voltou a sair?” – meu pai arqueou a sobrancelha, esperançoso.

Suspirei mexendo meus pés sem jeito e indo pro lado dele.

“Ainda não. Eu fui forçado a sair. Mas, é um começo.” – mordi os lábios, nervoso em acrescentar. - Você sabe como é... Deve demorar pra eu voltar a sair normalmente. Vai ser aos poucos, sair um dia, ficar cinco trancados... Igual sempre.”

Os ombros dele baixaram.

Mexi os pés de novo, sem saber bem o que fazer. Não queria deixar meus pais tristes ou esmagar suas esperanças de que eu estava voltando ao normal. Me senti mal por não poder dizer a eles que estava completamente bem e que eles não precisavam mais se preocupar com nada. Me senti como um peso na mente deles. Senti o ar diminuir a minha volta e tentei respirar fundo enquanto esses pensamentos se formavam e outra onda de ansiedade me tomava.

Mas, o ar voltou ao normal quando meu pai me puxou para um abraço forte. Arfei enquanto encostava a cabeça no ombro dele, sua mão era pesada enquanto fazia carinho no meu cabelo.

“Você vai ficar bem. A gente tá aqui.” – falou sorrindo para mim ao se afastar.

Tive que respirar fundo e me segurar na mesa para não cair no choro, meu coração disparando. Aquelas duas frases pareceram me desestruturar por completo. Senti as mãos da minha mãe nas minhas costas, pronta para me amparar caso eu caísse.

Acho que nunca me senti tão grato por tê-los como meus pais quanto naquele instante.

***

Me obriguei a jantar com meus pais e aguentar as pequenas ondas de ansiedade que me vinham em silêncio. Depois, fui falar com a Alexia porque bom... Estava me sentindo um pouco mais corajoso depois de hoje.

"Obrigado por chamar o Davi pra cá." - falei entrando no quarto dela.

Minha irmã sorriu, tirando os fones de ouvido e dando um tapinha no espaço ao seu lado para que me sentasse na cama junto dela.

Obedeci.

"Ajudou?"

"Um pouco... Mas, não exatamente. Eu só quero me trancar no meu quarto e chorar, mas foi legal ficar tirando fotos. Mas, agora eu to cansado."

"Tudo bem."

Mordi os lábios. - "Desculpa tá sendo mal com você esses últimos meses."

"Eu vacilei." - Alexia fez careta se encolhendo na camisola de She-Ra, franzi os lábios decidindo que iria colocar meu pijama dos Simpsons mais tarde porque nunca tinha encontrado um pijama bonito do He-Man.

"Você não fez por mal, sei que queria ajudar, eu só... Só não é da sua conta, Alexia."

"Ícaro, você é meu irmão..."

"Mas não é da sua conta como eu lido com isso, a menos que eu te peça por ajuda." - bufei. - "Do mesmo jeito que não é da minha conta você ter um péssimo gosto para amigos."

Alexia franziu a testa e em seguida suspirou. - "Eles não são tão ruins assim, Ícaro. Fiquei amiga do Juan quando ele bateu num garoto que tentou me beijar a força no primeiro dia de aula, Simone e Eloá são gentis comigo e sempre me ajudam a estudar pra artes e Eloá sempre me apresenta pros primos bonitos  dela. Francisco é mais tímido, mas ele sempre me passa cola é meu par na educação física porque sabe que eu sou péssima. E o Eric é sempre muito protetor quando percebe alguém me olhando com maldade. Eles não são de todo bons, reconheço, mas é difícil pra mim ver eles como você vê quando eu sei o quanto podem ser legais e gente boa."

"Serem legais com o que eles querem, né?" - revirei os olhos. -"São seus amigos você sabe quem quer por perto. Eu não me meto, só quando sou obrigado a interagir com eles. Do mesmo jeito você não tem que se preocupar com meus problemas se eu não te pedir ajuda, ok?"

Alexia abaixou os olhos e suspirou. - "Desculpa. É o hábito. Eu sempre quero cuidar de você."

"E eu sempre quero cuidar de você também." - garanti sorrindo. - "Mas a gente tem que tomar cuidado pra não acabar atrapalhando mais do que ajudando."

"Me perdoa por aquela ideia horrível com o cachorro?"

Hesitei antes de concordar com a cabeça e então sorri. - "E você me perdoa por estar sendo cruel com você esses meses?"

"Óbvio."

Dei um abraço na minha irmã e ainda fiquei ali com ela uns minutos, vendo-a jogar, mas logo fui para o meu quarto.

Tranquei a porta e respirei fundo, peguei meu celular para ver se tinha alguma mensagem, mesmo sabendo que não teria. Nem mesmo o Mathias tinha me mandado algo hoje, o que eu achava estranho porque ele sempre mandava alguma coisa, nem que fosse só uma figurinha engraçadinha que tinha baixado. Eu tinha mandado mensagem para ele de manhã, mas estava até agora sem resposta... E minha cabeça não gostava das paranoias que isso me permitia ter.

Suspirei pegando meu travesseiro e me encolhendo num canto do chão. Pode não parecer, mas o dia não foi bom. Ele teve momentos bons apenas isso. Mas, acho que ao menos já era alguma coisa.

Encostei a cabeça, tentando respirar fundo e cedi a vontade de chorar. Sentia como se estivesse segurando o choro desde o instante que pus o pé para fora de casa, lutando contra a sensação de sufocamento e medo o dia inteiro, muito mais forte do que era quando eu estava no meu quarto... Mas aqui, sozinho no meu quarto abraçado com meu travesseiro, completamente exausto depois de passar o dia fingindo estar bem, cedi às lágrimas.

Me levantei tremendo e acendi a luz do quarto, jogando o travesseiro no chão. Hesitei um longo instante, antes de começar a ajeitar meu teclado, tirando as coisas de cima e posicionando-o bem, liguei-o e respirei fundo tocando teclas aleatórias sem saber bem o que fazer...

Continuei chorando enquanto escolhia uma música.

Continuei chorando enquanto a tocava do começo ao fim.

Continuei chorando enquanto escolhia outra.

Chorei até secar meus olhos, desligando tudo e me jogando na cama, exausto e com uma sensação de angústia completamente nauseante.

Eu não queria continuar sentindo essas coisas, pensei e sabia que pensar isso já era um começo. Era realmente um começo, pensei. Quer dizer, tecnicamente falando eu não fui forçado a sair, né? Eu fui porque eu quis e mesmo tendo sido ruim, acho que passar o resto da semana trancado seria pior.

Mordi os lábios, tateando em busca do meu travesseiro e apertando-o entre os braços, deixei o pensamento fatídico se formar na minha cabeça como uma luz no fim no túnel:

"Chega de ficar trancado."


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