Sinais escrita por Sirena


Capítulo 24
Conversa, Conversa e Mais Conversa


Notas iniciais do capítulo

Obrigada heywtl, Isah Doll e fran_silva pelos comentários ♥
Capítulo longo, capítulo de papo, capítulo daorinha inspirado em Dont Worry About Me da Frances



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Ícaro

Eu estava andando de um lado para o outro com o coração disparado. Minhas mãos suavam.

Só até a garagem, tentei me convencer. Se eu conseguisse chegar só até a garagem... Levei as mãos ao pescoço, tentando lutar contra a sensação de falta de ar que esse pensamento me fez ter e dei um pulo de susto quando a porta do meu quarto abriu.

“Oi.”

Respirei fundo, tentando controlar o tremor em minhas mãos enquanto Mathias me observava encolhido, quase como se estivesse com medo de se aproximar, o que não era tão ridículo olhando em retrospecto. Ele usava uma camiseta preta com o logo da Marvel e uma jeans cinza, o cabelo trançado caindo sobre o ombro, com várias presilhas pequenas em formato de estrela.

“Oi.”

“Alexia disse que você não comeu hoje. Ela acabou de sair. Disse que ia encontrar o Davi e a Sabrina.”

“Não to com fome.” – menti fazendo careta, meu estômago chegava a doer de fome, mas eu estava enjoado demais para conseguir me convencer a comer. Respirei fundo. – “Quero sair.”

Aí estava.

A grande confissão que tava fazendo meu peito apertar e meu coração disparar desde o minuto que eu pus o pé para fora da cama.

Mathias abriu um sorriso como se tivesse recebido a melhor notícia do ano.

“Então vamos sair.”

“Não quero.”

Ele uniu as sobrancelhas, parecendo confuso. - “Ícaro, se decide. Você quer sair ou não?”

Respirei fundo. – “Eu quero, mas... Eu to com medo e não quero e... E...” — apertei meu pescoço de novo e bati o pé sem conseguir concluir a frase, voltando a andar de um lado para o outro.

Eu não aguentava mais. Não aguentava. Não conseguia. Estava realmente enlouquecendo ali dentro. Meu rosto ardia e minhas mãos tremiam e eu não conseguiria aguentar mais um minuto ali dentro, tampouco conseguia sair. Passei as mãos pelo rosto tentando afastar as lágrimas.

Senti um aperto no ombro e olhei assustado para o Mathias. Ele me olhava de forma paciente enquanto me puxava para sentar na cama.

Engoli em seco, puxando meu travesseiro e me encolhendo com ele entre os abraços.

“Abre a janela pra mim?” – pedi, apertando o travesseiro com mais força.

Ele concordou com a cabeça, se levantando.

Escondi o rosto, tentando controlar minha respiração, meu pensamento correndo acelerado e o suor escorrendo pela minha testa e pelo meu pescoço. Me sentia tonto enquanto puxava ar.

Ergui os olhos ao sentir um toque no ombro. Mathias sentara ao meu lado e me observava com a sobrancelha arqueada.

Suspirei, colocando o travesseiro de lado e pondo os pés na cama.

“Desculpa.”

“Pelo quê?”

“Pelo que eu disse. Eu não devia... Eu...” – respirei fundo outra vez. – “Eu sei que você tá tentando ajudar e que eu to insuportável e você tá sendo muito mais paciente do que eu podia querer. Desculpa. Eu fui injusto. Por favor, me desculpa. Eu... Sei o quão é ruim quando jogam nossas ansiedades na nossa cara, não devia ter feito isso. Passei do limite. Por favor, vou entender se não puder... Mas, se puder, me perdoa. Não vai acontecer de novo, prometo.”

“Ícaro... Eu to aqui.” – ele deu de ombros. – “Eu não estaria aqui se já não tivesse te desculpado.”

“Desculpa tá te fazendo aguentar tudo isso.” – suspirei. – “Tipo... Dois meses e você me aguentando... E as férias chegando e você deve tá louco pra poder sair e curtir por aí e eu aqui e... E... Desculpa.”

“Ok. Para.” – franziu a testa, uma ruguinha de irritação entre as sobrancelhas. Fofo. – “A gente já falou disso. Você não tem permissão para pedir desculpas por estar mal. Pode parar.”

Suspirei e franzi a testa em seguida.

“Você passou maquiagem?” – Mathias sorriu com minha pergunta e encolheu os ombros, como se dissesse que não era nada de mais.

Uni as sobrancelhas indo para mais perto dele e segurando seu rosto para olhar melhor. Ele estava usando um lápis de olho azul-claro que destacava seus olhos de uma forma encantadora.

“Ficou lindo.” — passei a mão pelo seu rosto, sem conseguir deixar de admirar. – “Senti falta de te ver com isso. Fica tão bem em você. Seus olhos são tão lindos...”

O rosto dele ficou vermelho e outra vez, encolheu os ombros, mas seu sorriso do tamanho do mundo mostrava o quão feliz estava com aquilo.

Mathias beijou o dorso da minha mão e me puxou para sentar ao seu lado.

“Eu só não te beijo agora, porque você tá há muito tempo sem comer e isso te deixa com bafo.”

Cobri a boca quando ele disse isso e lhe dei um beliscão na perna. Mathias riu dando um puxãozinho no meu cabelo.

“Não tinha nenhum cachorro na rua quando eu vim, sabe? Você pode sair sem precisar ter medo.”

Suspirei.

“Não é só do cachorro que eu tenho medo.”

“A gente pode ir pra algum lugar mais...” - ele mordeu os lábios. - "Eu não consigo pensar na palavra em português pra traduzir pra sinais. Inferno. Porque a gente usa tanta palavra em inglês? Tipo... Sabe... Como se diz? Eu não consigo..." - ele fechou as mãos com uma expressão frustrada no rosto.

Dei risada.

“Eu acho que entendi e... Não é isso.” — suspirei. – “Tá, é um pouco. Eu tenho medo de algo acontecer... Mas, é mais medo de como as coisas vão tá quando eu sair.”

“Como assim?”

Respirei fundo e comecei a estalar os dedos da mão, tentando pensar em como explicar todas aquelas neuras que iam e vinham na minha mente sem pausa durante os últimos meses. Tipo... Sequer valia a pena explicar toda aquela confusão na minha cabeça?

Mordi os lábios e contive um suspiro enquanto me ajeitava.

“A primeira vez que eu fiquei aqui... Quando eu voltei a sair tudo estava diferente. Meus amigos... Tipo...” – respirei fundo. – “Eu não atendia quando meus amigos vinham visitar, não respondia quando mandavam mensagem... Uma hora eles pararam. E quando eu voltei a sair, foi difícil voltar a me aproximar deles. Foram meses pra eu conseguir ser amigo deles igual antes. Eu perdi muita coisa. Passeios, acontecimentos, piadas internas... E eles me olhavam o tempo todo como se esperassem que um dia eu surtasse de novo... Parecia que eu não encaixava ali. E ano passado eu surtei e foi a mesma coisa. Eles mandavam mensagem e eu não respondia e uma hora eles pararam e... Quando eu voltei, tinha um amigo novo sentado onde eu costumava ficar e novas piadas e várias coisas que eu perdi e eu não encaixava mais. Eu demorei pra voltar a me encaixar e foi mais difícil da segunda vez. Mas, agora... Eu não acho que eles vão me deixar ser amigo deles de novo. Eu to com medo.”

“Ícaro...”

Fechei os olhos.

Era como se eu tivesse aberto uma torneira e não conseguisse mais fechá-la. Tudo vinha numa corrente sem fim, eu não conseguia mais me impedir de falar. Precisava deixar tudo correr... Por menos que eu quisesse admitir tudo, eu só não conseguia mais me impedir de contar.

“Eu sei que eu preciso voltar a sair logo. Sei que meus pais tão bravos por eu tá fazendo eles aguentarem isso de novo e que logo eles vão perder a paciência. Sei que eles odeiam que eu faça eles aguentarem isso, mas...”

Abri os olhos quando Mathias segurou minha mão.

“Eles só tão preocupados.”

Neguei com a cabeça, contendo um riso sarcástico. – “Se eu já morasse fora, eles nem iam se importar. Eu sei que não.”

“De onde você tirou isso, doido?”

“Eu sei.” – repeti. – “Eu... Nunca fui fácil de lidar. Nem quando era criança. Eu irrito todo mundo. Eu só irrito todo mundo! Eu só sirvo pra isso. Pra irritar meus pais. E eu to mais irritante que o normal e eles devem estar me odiando por isso e... Eu me odeio tanto por estar fazendo eles passarem por isso de novo! Eu só... Me odeio tanto por ficar assim!”

“Ícaro, seus pais te amam muito! O que você tá falando não faz sentido! Eles te adoram! Eles insistem pra você sair porque querem te ver bem!”

“Eles querem porque não tem outra escolha. Eu moro aqui. Eles não podem sumir como meus amigos ou você podem. Eles ficam e tentam me acolher porque não têm escolha. Duvido muito que eles iam escolher ficar cuidando de um garoto irritante que têm medo até da própria sombra. Só um doido ia querer isso. Se eu tivesse minha casa e me trancasse lá, eles não iam se incomodar. Mas, eu moro aqui então eles não podem fingir que não tá acontecendo.”

Ele franziu a testa mais ainda.

“Ok, eu to vendo que isso é um momento de desabafo profundo, mas, eu posso dizer o que acho? Eu acho que você tá interpretando as coisas de um jeito completamente diferente porque tá se julgando tanto por não sair que acha que todo mundo também tá... Quando a gente só tá preocupado. Eu, Alexia, seus pais... A gente só tá preocupado. Não tem ninguém com raiva de você, Ícaro.”

Rangi os dentes e virei à cara, contendo a vontade de revirar os olhos.

Mathias puxou meu queixo devagar com o indicador, me olhando daquele jeito condescendente cheio de pena.

“Eu não quis te interromper. Desculpa, pode continuar.” – falou. – “Faz tempo desde a última vez que você desabafou assim comigo, eu não devia interromper... Especialmente porque parece difícil pra você falar isso. Desculpa.”

Encolhi os ombros, remoendo meus pensamentos e as palavras dele por um instante enquanto tentava pensar no que iria dizer. Mas, desisti de pensar. Pensar não me ajudou em nada nos últimos meses mesmo.

“Eu não posso ficar em casa muito mais tempo porque meus pais vão perder a paciência. Mas, também tenho medo de sair e não ter mais amigos e daquele cachorro idiota e de alguma outra pessoa fazer alguma coisa...” – respirei fundo. – “E eu sei que você também não vai demorar a perder a paciência... To com medo.”

“Eu?”

Dei de ombros.

Mathias cerrou os lábios e levantou as mãos, mas abaixou-as em seguida, parecendo pensativo.

“Alexia me disse que se isso tudo fosse demais para eu lidar, eu devia avisar. Eu pensei que ela tava falando por falar, um aviso sobre responsabilidade emocional ou algo assim... Mas, não foi só isso, foi?"

Abaixei a cabeça e cobri o rosto, sem saber como explicar tudo aquilo. Era muito, pensei. Era muito para contar.

Agarrei meu travesseiro outra vez e respirei fundo. Mathias apertou meu ombro, mas eu afastei sua mão enquanto pensava em como começar.

“Ano passado... Quando eu surtei, eu tava namorando.” – dei de ombros. – “E ele vinha aqui e tentava ser paciente, mas... Eu fui ficando mais e mais irritado por ficar trancado e ele foi ficando impaciente... Na verdade ele sempre foi bem impaciente, então... E... A gente começou a brigar muito. Ele perdeu a paciência e tentou me arrastar pra fora. Me arrastar mesmo. Eu fiquei com marcas nos braços por um tempo e arranhões nas minhas costas porque eu caí no chão e ele continuou me puxando e acabou machucando.”

“Filho da puta!” - uau, a aula de palavrões deu algum resultado.

Franzi a testa remoendo a lembrança um instante, era tão estranho. Às vezes, quando eu lembrava de como foram os meses com o Marcelo, eu ficava com medo de achar que estava exagerando, que estava interpretando as coisas errado, mas... Não tinha como interpretar seu namorado te arrastando para fora com você gritando e chorando de uma forma diferente... Bom, eu acho que não tem, talvez... Mas, sei lá.

Marcelo sempre teve um jeito de fazer tudo ser minha culpa, sinceramente, ele conseguiria me fazer sentir culpado pela fome no mundo e a corrupção no Brasil, porque ele era assim. Nunca estava errado e fazia questão de provar isso, não importava o quanto eu pedisse desculpas ou que eu já estivesse chorando, ele fazia questão de provar de cinquenta e oito maneiras diferentes que estava certo. Era assustador.

E, ao mesmo tempo, era... Não sei. Era como se eu ainda tivesse que achar um jeito de justificar isso por alguma razão porque se não algo horrível aconteceria. Não sei explicar. Só sei que às vezes me pegava pensando se não exagerei, ou se não tinha imaginado algo ou se tinha algo na minha genética que fazia os garotos irem de super adoráveis para super detestáveis. Era como se meu cérebro estivesse o tempo todo procurando uma forma de provar que a culpa no fim foi minha.

Revirei os olhos para os meus pensamentos porque sabia o quanto era idiota ainda procurar justificativas para aquilo tudo. Respirei fundo voltando para o presente e continuando:

“Ele veio uns dias depois, pediu desculpas e pareceu que ia ficar tudo bem... Mas, eu piorei. Ele vinha e eu não abria a porta, ele mandava mensagem e eu não respondia... Com o tempo ele desistiu de mandar mensagens e de vir.” – franzi os lábios, tentando pensar em como explicar a parte seguinte. – “Eu voltei pra escola. E ele tava namorando... Não teve um término, sabe? Ele só sumiu. Então, eu fiquei bravo... Hoje em dia eu não acho que tinha o direito de ficar bravo, mas... Na hora eu fiquei. E foi uma cena de novela, uma briga horrível ao ponto do namorado dele até hoje me olhar feio.”

“Certo...”

Respirei fundo, repassando um momento na minha mente as coisas que Marcelo tinha dito aquele dia e me encolhi. Mesmo sendo só uma lembrança era o bastante para que eu me encolhesse no lugar.

“Ele disse muita coisa. Muita. ‘Não é problema meu se você é doido. Não é minha culpa se você não conseguia sair de casa. A culpa é sua se não consegue esquecer coisas que aconteceram há anos. A culpa é só sua, então não me olhe assim. Você quis assim. E eu não ia ficar esperando você sair.” – fechei os olhos. – “Ele disse coisas piores, mas prefiro fingir que esqueci. Como eu disse, quando ele tentava falar comigo, eu ignorava. Eu estava mal demais pra conversar... Então não é como se ele tivesse como terminar. Ele não tinha que aguentar. Mas... Mas, ele disse coisas muito cruéis depois. Não foi mentira, mas...”

“Não foi mentira?” – Mathias franziu a testa, uma expressão irritada no rosto e uma veia saltando um pouquinho na testa.

“Foi culpa minha. Eu não devia surtar por algo de tanto tempo atrás. Não devia me trancar em casa. Eu sou um idiota por afastar quem tenta ajudar e a culpa é só minha por isso. Não posso por toda culpa num velho idiota que já morreu!”

“Pelo amor de Deus, Ícaro!” – as mãos dele tremiam enquanto sinalizava. – “Você teve um trauma que você nunca tratou e várias vezes você parecer ter mais ansiedade do que eu! Você passou meses trancado aqui se auto sabotando e tenho certeza que fez isso todas às vezes que se trancou! Óbvio que você tem responsabilidade sobre as coisas que diz, mas você não tem culpa por ter um surto desses. Você tem um trauma que te faz ter medo de sair de casa e você não tem culpa de não ter superado ainda porque você não sabe como superar isso! E ninguém no mundo tem o direito de fazer isso parecer culpa sua! Meu Deus, eu vou ter um ataque aqui!” — parou de falar, o rosto vermelho de raiva, se abanando com as mãos e respirando fundo.

Suspirei.

Sinceramente, em certas situações talvez as pessoas tivessem sim, o direito de jogar isso na minha cara e... De certas formas, talvez eu tivesse sim um quê de culpa. Talvez por achar isso eu ainda insistisse tanto em justificar as ações do Marcelo, porque de certa forma, no fim eu mereci aquilo tudo, talvez tivesse culpa mesmo...

Estalei a língua e revirei os olhos de novo.

“Eu não ligo muito pro que aconteceu. Não mais. Mas... Se eu demorar a voltar a sair, vai a acontecer de novo, porque já to abusando muito da sua paciência e... E... Eu tenho medo de ir longe demais e de você querer terminar comigo. Porque eu não quero que a gente termine e eu não quero estragar a gente e... E eu sei que eu sou difícil e que estando desse jeito você não consegue me contar o que tem te acontecido e eu me sinto muito mal por isso e... E eu só não quero que a gente termine!” – cobri o rosto, tentando não chorar.

Senti o Mathias me envolver entre seus braços e imediatamente desmanchei o abraço, limpando as lágrimas.

“Eu...” – engoli em seco, contendo os soluços. – “Eu não gosto... Quando eu to assim... Eu não gosto de abraços. Às vezes é bom, mas na maior parte do tempo me deixa sufocado. Desculpa.”

“Tudo bem.” – ele deu de ombros, passando a mão sob os olhos vermelhos rapidamente. A maquiagem levemente borrada por baixo dos cílios. – “Abraços me ajudam quando eu to assim, mas o que funciona pra mim não tem que funcionar com você. Não precisa pedir desculpa.”

“... Ok.” – abracei o travesseiro com mais força, respirando fundo e tentando me acalmar.

 

 

“E eu não vou pra lugar nenhum. Eu não quero ir pra lugar nenhum, ok? Não precisa se preocupar com isso. A gente não vai terminar por você tá mal.”

“Mas... Se você perder a paciência...” — solucei.

“Ícaro.” – Mathias apertou minhas mãos, me impedindo de falar e me olhando seriamente enquanto me soltava. – “Amor, você tá realmente muito irritante, não vou mentir. Mas, eu sei que é só porque você tá muito mal e... Sim, algumas vezes você fala coisas que realmente machucam. Mas, eu sei que não é o que você quer falar, que você só tá muito estressado e tá descontando em todo mundo porque não consegue lidar. E principalmente, você pede desculpas! Você se estressa, mas pede desculpa logo que percebe o que falou e tenta se redimir. Sempre é assim quando você sai do controle... Ok, agora você realmente saiu do controle em um nível totalmente diferente, mas... Acontece. Então, tá tudo bem. Eu me estresso, mas sei o que realmente tá acontecendo, eu entendo. Eu me estresso e com razão, mas eu sei o que tá acontecendo e escolho perdoar.”

“Mas, eu passei do limite.” — insisti, porque eu realmente tinha passado do limite em alta velocidade, um limite que tinha um semáforo vermelho e um guarda e agora estava prestes a cair de um precipício e lá embaixo eu ia encontrar um cara tocando banjo.

E eu não sei o que to pensando.

Céus, porque minha mente era assim?

“Um pouco. Eu ainda to chateado, mas... É como aquela vez que você foi comprar suco e eu fui atrás e mesmo depois de você ter me desculpado, continuou com raiva. Eu ainda to chateado, mas eu já te desculpei e você já fez sua parte me pedindo desculpas. Agora eu só preciso de um tempo pra organizar minhas emoções. Mas, a gente tá bem.”

“Mas... Mas, e se isso for um limite muito grande? Tipo... Eu fico pensando e se isso for demais? E se essa linha for demais? Eu fico com medo de ser. De a linha que separa o que é minha casa e o que é calçada acabe virando uma coisa realmente insuportável e... E que eu acabe te cansando.”

“Eu estou aqui, não é? Então, não pense nisso. A gente já passou por barreiras linguísticas e culturais, a linha da calçada vai ser moleza, pode acreditar. Então, pode respirar e deixar essa preocupação de lado porque tá tudo bem. Eu to aqui com você.”

Suspirei sem saber bem o que dizer então apenas fiz o sinal de obrigado.

“Mas, sério, seu bafo tá horrível. Vou pegar algo pra você comer.”

Fiz careta cobrindo a boca com uma mão e sinalizando com a outra. – “To enjoado.”

“Então vou pegar algo pra você comer e um remédio pra enjoo. Você não pode ficar sem comer, Ícaro. Vai acabar caindo doente. Já volto.”

Revirei os olhos enquanto ele se levantava e saía do quarto.

Massageei minhas mãos, minha cabeça doendo, meus olhos ardendo. Funguei tentando limpar todas minhas lágrimas e respirei fundo uma, duas, três vezes, meu peito doendo.

Quanto tempo eu ainda iria aguentar ficar aqui dentro?

Mathias voltou com uma bandeja enorme me fazendo arregalar os olhos. Trazia iogurte, maçã, um enorme copo de suco, pão com manteiga, bolinhos Ana Maria, um copo de água e remédio para enjoo.

“Eu não vou comer isso tudo.”

“Pelo menos um pouco de cada.” – ele pediu. – “Come primeiro a maçã e depois toma o remédio. Aí você come o resto.”

“Por quê?”

“Assim você não toma remédio de barriga vazia e maçã serve pra abrir o apetite.”

Suspirei.

O cuidado dele era tão fofo que me dava vontade de bagunçar sua cara toda. Talvez isso o deixasse um pouquinho menos perfeito... Se bem que, considerando que era do Mathias que estava falando, era capaz que ele ficasse ainda melhor com a cara bagunçada. Inferno, por que ele tinha de ser tão bonito?

***

Depois que comi, Mathias me perguntou se eu queria ir assistir algo.

Eu disse que não.

Então ele perguntou se eu queria jogar alguma coisa.

E eu disse que não.

Provavelmente já sem ideias, ele me perguntou se eu queria tocar alguma música para que ele ouvir.

E, de novo, eu disse que não.

Então, ele respirou fundo e concordou, pegando o celular e vindo deitar do meu lado na cama. Deitei o rosto em seu ombro e fiquei mexendo no seu cabelo. Nada de conversas.

A maioria dos dias comigo trancado eram assim. Mathias respeitava que eu estivesse apático e não pressionava nada. Respeitava os momentos que eu me levantava afoito e ficava andando de um lado para o outro no quarto. Respeitava os momentos em que me sentava encolhido no canto sem querer ser tocado. Também respeitava os momentos em que eu ficava manhoso e carente, praticamente desesperado por carinho.

Ele respeitava cada uma das nuances da minha ansiedade com uma paciência tão única e uma gentileza tão... Tão... Não sei. Não sei como definir. Mas, sei que eu gostava disso. Gostava de poder contar com ele a esse ponto, mas... Mas, sei lá. A paranoia funciona de um jeito estranho.

Me sentei e fui para outra ponta da cama. Mathias observou, provavelmente tentando ver para qual dos variados estados de nervoso eu estava indo.

“Senta.” – mandei.

Ele franziu a testa antes de dar de ombros, colocando o celular de lado e sentou se espreguiçando, tentando ajeitar o cabelo, mas ficar deitado tinha estragado o penteado por completo, então apenas suspirou.

“O que foi?” – perguntou antes de começar a desmanchar a trança, soltando as presilhas de estrela sobre o colchão.

Hesitei.

Eu já tinha falado demais hoje, pensei. Podia ficar quieto e guardar minhas paranoias para mim, já tinha abusado muito da paciência dele hoje, mas... Mas...

“Eu sou um namorado muito ruim?”

Mathias franziu a testa, a trança desmanchada pela metade. Ele me encarou um instante antes de rir e revirar os olhos.

“Você pensa cada coisa.”

“É sério!”

Outra vez ele franziu a testa. – “Primeiro, por que você tá perguntando isso?”

Esperto, pensei. Era uma forma esperta de tentar se desviar da pergunta, mas eu não ia deixar.

“Responde primeiro.”

Mathias bufou. – “Você não é um namorado ruim. Na verdade, é ótimo.”

Cerrei os olhos, desconfiado.

“Quantos namorados você já teve?”

A testa dele franziu mais ainda. – “Essa é uma pergunta relevante?”

“Dependendo, sua resposta não é muito válida.”

“Minha opinião sobre o meu namorado ser um bom namorado pode deixar de ser válida pelo fato de eu só ter um ex-namorado? Que lógica é essa?”

“Um só? Isso explica. Você não tem com quem me comparar. Qualquer coisa que eu fizer já vai ser considerada ótima mesmo se for péssima.”

“Amor!” — me olhou confuso, boquiaberto antes de revirar os olhos para o teto do mesmo jeito que eu revirava quando o primo da minha mãe dizia que à Terra era plana. Ter um parente terraplanista e antivacina era uma das maiores vergonhas dela.

Dei de ombros e observei o Mathias respirar fundo.

“Me explica de onde tá vindo essa pergunta. Por favor.”

“Não sei. Só to pensando... Você é todo paciente e gentil e fofo e todas essas coisas que a gente fica imaginando quando vê muito filme de comédia romântica.” – ele deu risada da minha definição. – “E eu sou só... Implicante e irritante e ninguém gosta muito de gente irritante. Além de que eu sou mandão e chato e... Sei lá.”

Mathias franziu os lábios, voltando a desmanchar a trança com um semblante pensativo no rosto.

“Bom, você tá esquecendo que eu também sou ansioso, inseguro, exagerado, desatento e todas essas coisas que a gente não vê num filme de comédia romântica...” – ele enrugou a testa. – “E sim, você é implicante e mandão, mas também é confiante e engraçado e direto. Você não fica rodeando um assunto, é direto ao ponto quando percebe algo errado enquanto eu tento sempre fugir. Todo mundo tem qualidades e defeitos, Ícaro, se você for enumerar seus defeitos, eu me vejo na obrigação de enumerar as qualidades.”

“Mas...”

“Sem mas.”

“Eu só... Queria ser melhor em ajudar você." - suspirei por fim. - "Não sei dar conselhos como a Alexia, não sei te distrair dos problemas, não sei respeitar quando você diz que não quer conversar e também não sei o que falar quando você quer conversar. Não sei como ajudar... E quero te ajudar de algum jeito, você sempre me ajuda."

Ele ficou sério, ajeitando a postura e erguendo o queixo.

“Ícaro, você me ajuda o bastante. Eu não gosto de conversar sobre meus problemas. Já passo muito tempo pensando neles, gosto de como você me ajuda a pensar em outras coisas. Não preciso que me ajude a encontrar soluções, eu sei as soluções. Só sou covarde demais pra fazer alguma coisa, mas isso não significa que eu não saiba o que fazer." - sua expressão enquanto falava era extremamente rígida. - "Eu te ajudo na medida que você me deixa te ajudar, e você me ajuda na medida que eu te deixo me ajudar. Nem mais e nem menos."

“Mas..."

"Não, você tá ignorando metade da equação pra chegar nesse raciocínio. A gente não conversa sobre o que acontece na minha vida porque eu não gosto. A gente conversa sobre seus problemas, porque eu sei que isso faz sentido pra você. E você me abraça quando eu tenho um problema, porque sabe que isso é o que faz sentido pra mim. Não falar dos meus problemas, não significa que você não me ajude. Você não faz nem ideia do quanto me ajuda poder vir aqui e não pensar em notas ou na escola e... Só ficar tentando te convencer a assistir Vingadores ou discutir por alguma coisa idiota com que nenhum de nós se incomoda de verdade ou... Ou só ser abraçado pelo meu namorado e receber carinho e não ficar com medo quando você começa mexer no meu cabelo e poder respirar e pensar que às vezes a vida não é tão ruim..." - ele parou um instante, pressionando as mãos contra os olhos. - "Por favor, não pense que não me ajuda, porque você ajuda como eu preciso. E o que eu preciso é diferente do que você precisa, entende?"

Mordi os lábios.

Mathias suspirou, passando os dedos entre as mechas dos cabelos, desembaraçando e ajeitando, os olhos perdidos pelos quadros nas minhas paredes um instante enquanto eu me encolhia na cama. Estiquei a mão para o meu travesseiro e abracei com força, tentando acalmar meus nervos. Mas, sério, meus nervos estavam loucos enquanto meus pensamentos seguiam por caminhos cada vez mais perigosos de autojulgamento e autodestruição.

"Eu não sei... Não acho que tenho feito minha parte nesses últimos meses e não quero ser um namorado ruim. Tipo... Ok eu to mal, mas a vida continua enquanto isso e você também tem seus problemas e se nós dois estamos mal, sei lá... Devia ter um jeito de equilibrar pra eu conseguir cuidar de você igual você tá cuidando de mim mesmo com tudo isso."

Encolhi os ombros e ele deu risada, beliscando minha bochecha.

"Eu entendo o que você quer dizer, amor, mas... Você tá pior, então precisa de mais atenção do que eu agora. E eu sei que se, por algum milagre, eu acabar ficando pior do que você... Você vai dar um jeito de me ajudar. Você não tá me deixando de lado. Nós só estamos dando atenção pro que é mais importante agora. E eu sei que assim que você se sentir um pouco melhor, vai me puxar pro seu colo e retribuir todo o carinho desses meses me fazendo carinho."

Mordi a bochecha. Não sei se gostava desse jeito de ver as coisas. Ainda sentia que tava sendo injusto e negligenciando de alguma forma. E sei que é estranho pensar nisso aleatoriamente e ficar tão consumido de repente, mas... Não sei. Minha cabeça parecia subitamente estar repetindo "por que eu merecia um namorado tão bom se era um tão ruim?"

“Além do mais..." - continuou, franzindo a testa pro meu silêncio. - "Quando você tá bem, eu sou sempre prioridade. Isso prova meu ponto. Você é prático quando se trata de me deixar confortável e de me ajudar, Ícaro. Você avisou seus amigos pra falarem devagar perto de mim antes de eu ir encontrá-los e quando viu que não tava funcionando chamou a atenção deles. Coisa que eu nunca pensei em fazer quando você ia sair com meus amigos, nunca nem mesmo depois de saber que você tinha feito isso. Você é cuidadoso e isso te faz um ótimo namorado.”

Dei de ombros, porque aquele exemplo não era grande coisa. – “Eu só falei para eles o mesmo que falei pros meus pais. Falar devagar e tal... A Sabrina não é boa lendo lábios, então isso não ia dar, mas, falar devagar dava.”

“Você falou com seus pais também?”

“Eles não gostam de oralizar em casa.” – expliquei. – “Não gostaram quando eu disse que como você ainda tava aprendendo era bom falarem em português e Libras ao mesmo tempo. Mas, eu convenci eles... Achei que podia ser bom pra você ficar mais confortável. Como você ficava nervoso tão fácil quando a gente começou a sair... Eu queria que você pudesse se sentir bem aqui em casa.”

Mathias deu risada, o rosto ficando vermelho.

“Viu? Você toma cuidados práticos. Você procura solucionar as coisas primeiro. Mais ainda, você procura solucionar antes mesmo que vire problema. E isso é algo cuidadoso e gentil, porque você é um bom namorado.”

Fiz careta sem saber bem o que dizer ou se acreditava naquele ponto de vista. Ele me olhava esperando que eu dissesse algo, mas sinceramente eu não sabia o que falar e percebendo isso ele suspirou.

“Preciso pensar.” – declarei porque não tinha certeza se acreditava nele.

“Pra constar, ninguém tem permissão pra dizer que meu namorado é qualquer coisa menos que incrível. E se você disser de novo que meu namorado não é um bom namorado, vai se arrepender.”

Arquei a sobrancelha. – “Vou, é?”

Mathias deu um meio sorriso, os olhos brilhando de um jeitinho meio malicioso que fez meu rosto esquentar.

“Vou garantir que se arrependa.”

Dei risada virando o rosto.

Esse garoto vem com cada coisa...


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