Debaixo da água escura escrita por RFS


Capítulo 2
E debaixo da água escura, existe violência.




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E debaixo da água escura, existe violência. — 02

De volta ao consultório, as fotografias reveladas repousavam no colo de Arthur, sentado de costas para a terapeuta. Ela mexia distraída nos cabelos tonalizados de vermelho, esperando seu paciente começar a falar. Do outro do lado do cômodo — porque era como se a sala se dividisse em dois: o espaço de Cooper e o dela, comunicando-se a uma distância anonimamente segura —, o garoto mirava gravemente as fotos, até dar um pigarro.

Arthur entregou-lhe a primeira. Na fotografia estavam ele e uma garota muito baixinha, em vestes modestas e pretas, de cabelos prateados. Eles mostravam a língua para a câmera e, pelo pouco cenário visível, não dava para dizer onde foi tirada.

— Essa é a Corinna. Tiramos essa foto pelo celular num dia que estávamos matando Educação Física. Nos escondemos numa das salas da escola. Acho que ela foi uma das primeiras pessoas que conheci na cidade… em Westfield. Mas as circunstâncias foram pouco usuais quando nos conhecemos.

— Defina “pouco usuais”.

— Pouco usuais tipo peguei uma briga com ela no cemitério, uns dias antes das aulas começarem. Ela estava fazendo um ritual… de transmutação. Acho ofensivo quando perturbam os mortos desse modo. Não sei qual é a diferença entre ser uma péssima bruxa e ser uma bruxa sombria. Eu devia perguntar. 

— Bem, me conte quando souber, porque também não sei.

Ele sorriu, embora a psicóloga não conseguisse ver. Prosseguiu e entregou a foto do lixão, a mesma que intrigou Brian Tennant. A mulher também estreitou os olhos para a imagem, analisando seu aspecto tão lixo-americano. Arthur precisou de um momento antes de conseguir falar.

— Essa foi uma das primeiras fotos que tiramos juntos, nós três. Por isso tenho um carinho por ela. E tem algo nela que te dá uma vontade de dar uma segunda olhada, não é? Penso nisso quando olho pra eles dois. Eu lembro desse dia… — começou a esfregar o pulso devagar. — Eu tinha quatorze anos. A escola tinha começado há pouco tempo. A gente ia para o lixão e eu assistia o Viktor atirar em latas, garrafas, essas coisas.

— Suponho que Viktor é o que segura a arma.

— Sim. E o do lado dele é o Faísca, que é só um ano mais velho que eu. Eles são melhores amigos desde sempre. Daí conheci Viktor Higgins, mais velho três anos, por causa do Faísca.

— Entendi. Você não sentia medo de estar perto de armas? De pessoas atirando assim?

A resposta veio rápida: 

— No começo sim. Parte de minha vida eu fui criado na Califórnia, onde as leis de porte de arma são mais rígidas, você sabe, e outra parte fui criado no Japão. Lá é difícil encontrar alguém que já chegou a ver uma arma verdadeira pessoalmente, até de longe. E então… — afundou mais na poltrona, encolhendo os ombros. No colo dele havia uma fotografia em que Viktor aparecia, seu sorriso afiado como uma lâmina e brilhando tanto quanto uma de sempre.

“Não sei. Acho que era minha tentativa de se acostumar ao jeito Westfield de viver. Mas também havia uma… familiaridade naquilo. De repente as coisas só encaixavam. Eu e os objetos quebrados do lixão. Nós comemorando a pontaria excelente do Higgins, bebendo refrigerante quente, rindo de histórias.”

Cooper pôs a ponta do indicador no vértice pontiagudo da fotografia, sua própria roca. Achava engraçado como sua fala fluía agora. Aquelas memórias tinham nada e tudo a ver com o incidente. Naquele consultório, tanto ele quanto a terapeuta estavam apenas andando pela borda do pântano, circundando a profundidade, porém sem mergulhar nela ainda.

— Éramos exatamente assim. Andando com literais cães bravos pelas ruas empoeiradas, bebendo energético sob o sol quente, escrevendo impropérios em igrejas — segurou uma risadinha curta. A ruiva fez o mesmo, porém mais porque achava curioso o vocabulário do adolescente.

“Queimando coisas não para nos aquecer, mas sim para ver a destruição de perto. Eu observava mais do que fazia. E sempre me intrigou a despreocupação deles. Para eles não havia uma motivação tipo fazemos isso pela revolta, fazemos isso como protesto. Não havia por que parar para pensar numa motivação. Apenas é fazemos isso porque é o que fazemos.

Apertou os lábios em frustração. Parecia que nunca conseguiria chegar no ponto o qual almejava. De qualquer jeito, precisavam continuar.

— Eu diria que frequentemente fazíamos coisas normais também, só que é essa a questão que estou querendo apontar. Porque sempre existia algo pairando por cima… não, por baixo. Por baixo, isso. Imagine um curativo e debaixo dele tem uma ferida horrível. Vermelha, funda. Nunca cicatriza. Ninguém sabe o quão feio parece, mas você sabe o que existe debaixo da gaze. Esse tipo de feiura. Esse tipo de produto de violência. É algo… feroz, que queima. Que quebra. É uma ferida com uma boca. Que implora porque é insaciável. Que devora. 

Sem querer, ele cortou o dedo no papel que imprimiu a fotografia do lixão. Trêmulo, o pôs na boca e chupou o sangue. O gosto metálico era familiar dum jeito melancolicamente afiado. Então lembrou que a foto do lixão estava em cima da mesa da psicóloga, e piscando, reparou que na verdade se cortou com outra. Arthur entregou-a para a mulher.

A ruiva ajeitou os óculos no rosto para ver melhor. A imagem era de Arthur e os amigos numa piscina de plástico improvisada, um dia de verão com risadas e roupas molhadas. Havia alguns rostos que ela reconhecia, outros ela não fora apresentada. Todavia, um deles ela conhecia da televisão por ter cometido um crime. Por baixo do sorriso estático dela, existia uma ferida voraz.


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