Debaixo da água escura escrita por RFS


Capítulo 1
E debaixo da água escura, existe hesitação.




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— Me sinto melhor quando não tenho que olhar pro seu rosto.

A terapeuta ergueu uma sobrancelha, simultaneamente entretida e inquisitiva. Arthur Nomura Cooper é um paciente diferente de se lidar — na primeira sessão, depois de algumas perguntas, ele ficara sem falar nada até terminar o horário. Na sessão seguinte, ele entrara já vestindo o silêncio como se fosse uma de suas roupas pretas, tão quieto que trazia um certo mau agouro para o ambiente. Como um corvo maculando aquele lugar todo projetado em branco e azul claro apenas por sua mera presença desprovida de palavras.

Porém não era só a ausência de palavras. Eram os olhos, também. Constrastando com tudo ao redor. O consultório: limpo, claro, tranquilo. Os olhos de Nomura Cooper: escuros feito a água dum pântano, tempestuosos. Você não consegue dizer o que há debaixo da superfície, quão fundo isso vai, apenas que é escuro e, quanto mais você observa silenciosamente, mais aguda fica a impressão ominosa de que algo horrível existe por baixo. 

O trabalho dela era ver além disso. Além dos diagnósticos e além da recusa em falar do que aconteceu. Todos sabem o que aconteceu. Mas ela precisa fazer que ele comece a contar sobre isso.

E debaixo da água escura, existe hesitação. — 01

— Minha cara é tão ruim assim? — a psicóloga brincou, agora dando um sorriso. — Pode virar a poltrona para o outro lado, então. Só temos que ter certeza que posso te ouvir.

Arthur confirmou assentindo e fez o que ela recomendou. Continuou de onde pararam:

—...Então meus amigos de Westfield, não é? Éramos estranhos. Tipo, esquisitos, entende. De certa forma isso me confortava porque eu tinha outros deslocados para poder virar amigo. Sinto… falta deles — fez uma pausa longa. — Não sei como continuar isso, honestamente. Não sei bem como explicar como era nosso dia a dia lá.

A mulher bateu a caneta na mesinha brevemente, pensativa.

— Por que não traz algumas fotos? Elas costumam ter um contexto daquele dia, algo memorável. Talvez te ajude a elaborar se contar a história delas para mim.

Ela não podia ver, contudo algo sutilmente se iluminou no rosto dele ao contemplar essa possibilidade. A mulher checou o relógio.

— Passamos um pouquinho do tempo, mas está tudo bem. Nos vemos na próxima semana, Arthur. 

— x — 

Brian se encontrava vagamente desconfortável. Checar as fotos que as pessoas vinham revelar no estabelecimento era algo comum, automático, visto que ele era o responsável por as imprimir ou manipular no quarto escuro. Por vezes, quando uma chamava sua atenção num sentido artístico, ele a inspecionava melhor, mas em geral cuidava da própria vida.

Nesse caso, as fotos recém impressas em cima da mesa o atraíram por uma razão desconhecida por si. Um tipo misterioso de magnetismo. Cooper havia deixado o pendrive na reveladora e saído para resolver os próprios assuntos, disse que voltaria depois. Restou Brian e as fotografias as quais nelas existia algo ali difícil de explicar.

a foto que logo chamou a atenção de brian tennant

e também mais o impressionou

À primeira vista, aparentava ser uma foto normal, como todas as coisas cotidianas, porém secretamente sombrias são. Nela, três garotos estavam na frente do que deveria ser um lixão. O da direita em relação ao espectador tinha cabelos descoloridos e um grande sorriso. O do meio, também de pé e sorrindo, tinha cabelos escuros na altura dos ombros e parecia mais velho. Ele portava um riffle próximo ao corpo, apenas segurando-o. Por fim, Arthur na esquerda, sentado numa poltrona velha, mais jovem do que Brian jamais o vira, talvez aos quinze; mantinha uma expressão neutra. O céu claro e limpo de um dia de sol ao fundo. Não era possível saber se alguém estava atrás da câmera ou se foi tirada com timer.

Sem perceber, Brian passou minutos tentando decifrar a fotografia. O foco foi primeiro para o centro, portanto para o rapaz armado. Quanto mais fitava, mais o semblante lhe parecia estranho — primeiro feliz, depois orgulhoso, até detectar um brilho rápido de sadismo nos olhos. Cintilou brevemente e desapareceu. Brian piscou várias vezes, confuso. A impressão quase foi de que a foto se mexeu. Não havia muito do que pensar do garoto na direita, exceto que por algum motivo o relaxamento dele era desconcertante. Talvez por estar tão próximo do cano, tão tranquilo no cenário vagamente caótico.

De forma similar, o tédio de Arthur também lhe causava arrepios. No lado esquerdo, ele estava mais longe dos outros. Como se não fizesse parte o suficiente, porém também não se importasse. A impressão que ele fitava não a câmera, mas quem tirava a foto, começou a afundar docemente. Por fim, nas mãos de Brian, após tanto ser investigada, a fotografia ganhou uma energia quase demoníaca e, como se fosse carvão incandescente queimando seus dedos, a largou.

Assim que ele ergueu o olhar, se deparou com uma figura esguia toda de preto. Cooper, o de verdade, parado bem na frente dele, depois da porta. Não mais um ser com um coração batendo no peito, porém sim um objeto estranho, estático e divergindo dos arredores.

O sangue de Brian fugiu-lhe do rosto, a boca seca curvou-se num sorriso automático de atendente. Naquele momento específico do dia, ele não reconheceu Arthur como algo real, mas entregou as fotos e guardou o dinheiro mesmo assim.


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