Debaixo da água escura escrita por RFS


Capítulo 3
E debaixo da água escura, existe fragilidade.




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E debaixo da água escura, existe fragilidade. — 03

Depois da sessão da terapia, em casa, Cooper se jogou na cama com preguiça demais para realmente trocar de roupa. Ele pegou o envelope com as fotos e as derramou sobre o cobertor para vê-las mais uma vez. Instantaneamente atraído por uma delas, a pegou e avaliou. Uma fotografia de um garoto usando trança, o rosto tímido de perfil.

Assim como apontado por Arthur, os jovens problema de Westfield também engajavam em atividades normais. Algumas delas eram, entretanto, tão delicadas que não podiam ser reconhecidas como existentes. Quando o olhar elétrico de Viktor cruzava com o de Ferrugem, o amigável irmão mais velho de Faísca, ele de repente se tornava mais suave, sendo domado pela ternura. Ferrugem respondia a essa mudança com um sorriso de canto discreto, porém entretido. Os amigos ao redor apenas fingiam não perceber nada disso.

Frequentemente Arthur se encontrava em situação semelhante com Lynx. A relação deles era tão diferente das outras, especialmente no círculo de amizade entre os rapazes, que chegava a ser rídiculo. Talvez porque ambos estavam tão longe de serem ordinários: Arthur, o estrangeiro funerário da cidade; Lynx, o “estrangeiro” que cresceu na floresta da cidade, tão longe, mas tão próximo de todos.

Das peças de Westfield, Lynx era uma das mais curiosas. Nem parecia com um garoto de quinze anos, nem era tratado como um pela maioria da cidade quando se conheceram. Ele já era tão alto e forte que as batentes baixas das portas e as cadeiras pequenas da sala de aula se revelavam uma complicação. As duas cicatrizes atravessando o rosto traziam atenção indevida o tempo inteiro, ao mesmo tempo um sinal para não se aproximarem. Perigo era o que aquelas linhas escreviam na face dele. Os boatos eram muitos.

No topo de tudo isso, seu constante ar hostil, o qual vinha junto de um silêncio que não se incomodava em se explicar, ser educado nem responder xingamentos. Falava pouco, de tal forma que, entre encontros semanais frequentes com os amigos, demorou um mês para Arthur escutar a voz dele.

— Mas o Lynx agora é homem reformado, tu não é, Lynx? — Faísca comentou entre um gole de energético e outro.

— Ele se reformou — Viktor assentia sorrindo na direção do rapaz alto. — Agora ele não bate na galera, só joga o que tiver mais próximo nela.

A risada dos dois cortou o ar noturno. De longe, parecia que estavam maltratando Lynx, e Arthur teve que checar a expressão dele para saber o que ele achava dos comentários. Ele esboçava um sorriso, o que não era usual.

— Daí o que foi que cê disse mesmo? — Viktor instigou, ainda meio risonho.

A voz de Lynx veio rouca pela falta de uso:

— Depois de jogar... nele? Que só um babaca como ele... não aguentaria levar uma cadeirada.

As sobrancelhas de Arthur se ergueram em surpresa, não pela agressão, mas por ouvir o outro. Os outros dois rapazes gargalharam até a barriga doer.

 

 

 

Por causa das suspensões recebidas por comportamento agressivo, Lynx às vezes se encontrava pelas redondezas da escola, vadiando até o horário de saída para seu pai — ou o homem que cuidava dele ao menos — não descobrir. Isso acabava em Arthur encontrando com ele no caminho depois da aula e sendo acompanhado até casa pelo rapaz alto.

Eventualmente se tornou um hábito, mesmo quando não havia suspensão. Arthur o ajudava com o dever de casa — estavam na mesma série — e Lynx o acompanhava até a residência Nomura Cooper. Silencioso, como se tornasse a grande sombra de Arthur. Não conversavam, apenas chutavam pedrinhas e apontavam para uma ou outra coisa que lhe chamassem a atenção.

O dia estava quente quando, logo em frente da porta da residência dos Nomura Cooper, o menino corvo girou nos calcanhares para encarar Lynx antes de entrar. Uma curiosidade o consumia e fazia seus olhos brilharem com determinação veemente nunca antes vista.

— Por que você sempre me leva? — Arthur disparou. Desde o começo nunca entendeu por quê. Levantava apenas hipóteses sobre: por amizade, por tédio, por cortejo. 

Não foi respondido, como já imaginava. Lynx permaneceu impassível, mãos nos bolsos e sustentando o olhar alheio. Intimamente lutava para apanhar as palavras e fazê-las ter sentido. Arthur suspirou e lhe ofereceu um sorriso cansado, mas gentil, antes de voltar a entrar.

A resposta passou flutuando pela brecha da porta antes dela se fechar, como se as palavras fossem trazidas pelo próprio vento:

— Para te proteger. Esse lugar…

Ele abriu a porta novamente para encontrá-lo. A frase foi deixada assim, faltando um pedaço. Mas Arthur ainda não tinha que se preocupar com isso, não enquanto a própria cidade completaria o sentido para ele em alguns meses. Na época, Arthur pensava que estava sendo protegido dos velhos veteranos de guerra, os quais frequentemente gritavam com ele se o vissem passando em frente de suas casas. Ainda não sabia onde morava a outra ferida oculta.

Portanto, simplesmente deu outro sorriso, agora ligeiramente mais radiante, e agradeceu.

— Adoro caminhar contigo — confessou. Gostava de ser claro e direto. — Obrigado. Quer sair juntos esse fim de semana? Eu e você.

O outro notavelmente foi pego de surpresa e começou a fitar a calçada empoeirada como se houvesse algo muito interessante ali, as orelhas queimando sem ele saber por quê. Por fim, só assentiu. Desse modo, se despediram.

— x —

Quando caminhava com Lynx sem rumo por Westfield, Arthur sentia a paz finalmente se alojar em seu peito de novo. E também privilegiado: a voz de Lynx tornou-se mais familiar, já que ele se via mais livre para soltá-la. Gostava de perguntar para Arthur sobre o ofício funerário de sua família, sobre o Japão, essa terra que pra ele só existia em mapa impresso da escola, visto que não cresceu exatamente com muito acesso a televisão e internet; sobre a Califórnia, pelo mesmo motivo. 

Arthur também aprendia bastante. Sobre animais da floresta, como acender uma fogueira decente, nós de escoteiro, cogumelos selvagens. E aprendia a se deixar aproveitar essa fragilidade dos momentos enquanto o Sol aquecia seus corpos. A colher não só das flores, mas daquela delicadeza que só encontrava nesses passeios secretos.

Sentaram na grama da clareira naquela tarde, como era usual deles quando cansavam. Arthur observou os dedos calejados de Lynx trabalhando numa trança no próprio cabelo longo. Às vezes o olhar de Cooper ia especificamente para as pontas dos dedos do garoto. As unhas eram afiadas como as garras de um animal de forma desconcertante.

Um dia já tinha visto sangue seco naquelas garras. Sabia que Lynx não era como ele, nem como Viktor ou Faísca, nem como ninguém que ele já conheceu. Porém nenhum deles queria falar demais sobre isso. A ignorância era uma benção.

Ainda assim, aquelas mãos com garras que um dia vira sangue seco nelas eram as mesmas que seguravam as de Arthur nas noites geladas para poder soprar ar quente nelas e aquecê-lo. 

— ...Tá diferente hoje — Lynx disse devagar, pondo vários espaços entre palavras, típico dele. — Você tá.

Arthur deixou uma risada sair arranhando por sua garganta. Lynx franziu o cenho porque Arthur simplesmente não ria assim.

— Estou empolgado para as férias — respondeu. — E parei de tomar meus remédios há uma semana. Me sinto ok, por incrível que pareça. Tipo… cansado — ele começou a arrancar flores pequenas e enfeitar a trança feita de Lynx com elas. O outro não objetou. — Mas sinto que há essa energia em mim, entende? Fluindo. Me sinto poderoso, isso. Como se finalmente algumas portas se abriram para mim. Mais possibilidades.

Ele desviou a atenção para um ponto distante, onde estava uma teia de aranha numa árvore. Entre a teia e a escuridão da parte além do que enxergava, um espectro permanecia de pé, observando com seus olhos brancos de pura luz. 

— Vejo melhor… — Arthur deu um sorriso cúmplice na direção do espírito, depois voltou-se para Lynx, sem perturbar-se com a presença alheia.  Seu tom tornou-se mais baixo, secretivo. — Tão claramente. E escuto. E sinto...

Nessa hora, Cooper fechou os olhos como se saboreasse daquela conexão entre todas as coisas do mundo. Entre a terra e o céu, entre os vivos e os mortos, e tudo que há no meio disso. A realidade sempre fora assim, porém nem sempre conseguia sentir essas linhas unindo tudo dum modo tão vigoroso.

De súbito, porém numa suavidade sem igual, a mão de Lynx alcançou o rosto do médium, repousando sobre sua bochecha. A mão em si era pesada, conseguia sentir a aspereza dela contra sua pele, porém o simples toque permanecendo ali possuía a leveza dum suspiro. No mundo existia a linha entre ele e Lynx também.

Abriu os olhos e se deparou com as sobrancelhas grossas de Lynx se juntando em preocupação, mas sua atenção logo se desviou para como o novo corte de franja dele, dado pelos garotos num dia de tédio com uma tesoura por perto, fazia-o parecer mais adorável. Borboletas se agitaram dentro das costelas do funerário, vívidas. Seu coração era esmagado como uma flor.

— Posso tirar uma foto sua?

A julgar pelo jeito que seus olhos se arregalaram de leve e a boca se entreabriu, o rapaz se surpreendeu. Ele assentiu timidamente. 

Dada a permissão, Cooper tirou o celular do bolso e bateu a foto. Quando a checou na galeria, desejou que a câmera pudesse captar o leve rubor tomando o pescoço e maçãs do rosto de Lynx no momento. Tentou mostrá-la para o fotografado, mas foi rapidamente dispensado com um gesto. Lynx preferia não ver a própria face com frequência.

O sorriso de Arthur morreu assim que o telefone começou a tocar o alarme do horário de voltar para casa. Por pouco não revirou os olhos. Tinha que se aprontar para o jantar com os pais da namorada. Relutantemente, se levantou e despediu-se.

— Te vejo depois da escola? — Arthur pergunta, esperançoso.

Lynx assentiu mais uma vez, sorrindo como se florescesse. Depois acenou adeus.

Demoraria quase um ano para se verem novamente, entretanto. Quando Arthur olha para a foto tirada nesse dia, pensa em como nunca se beijaram ou se declararam com todas as letras, então entende por que dizem que o mundo é injusto.


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