Recomeços escrita por Sophia Snape


Capítulo 27
Estranhos


Notas iniciais do capítulo

Bom, pessoal, chegamos oficialmente ao penúltimo capítulo de Recomeços. Tem sido uma jornada e tanto, certo? Como esse capítulo exigiu muito de mim, não vou ficar falando por aqui.

Mas tenho um pedido a fazer antes de começarem a ler: abram o Spotify, Youtube, Apple Music ou qualquer outra plataforma de sua preferência e escutem a música Strange, da Celeste. É a música do capítulo (queria que tivesse um jeito de colocar música aqui haha)

Obrigada a minha beta, Julia. Você arrasa!

Boa leitura, pessoal!



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Não é estranho?
Como as pessoas podem mudar
De estranhos a amigos
Amigos em amantes
E estranhos de novo

O chalé parecia frio e sem vida quando Severo finalmente voltara na manhã seguinte a briga. Ele vagara por Paris pelo que pareceram horas, sem saber exatamente para onde ir ou o que fazer. Tudo parecia sem sentido, e seu peito doía como se tivessem arrancado o seu coração. Mas ele não deu atenção a isso. Ele se recusara a sentir mágoa. Não.

Severo Snape não estava triste, estava com raiva. Se sentindo traído. Pior, decepcionado. E ele não sabia o que fazer consigo mesmo. Ele queria voltar e exigir respostas. Queria sacudi-la pelos ombros e perguntar por quê? Por que ela escondera isso dele? Por que ela se afastara por tantos anos? Por que voltar agora?

Mas ele sabia que se o fizesse diria coisas cruéis que não poderiam ser tomadas de volta. E esse erro ele não cometeria novamente. Não diria nada que não quisesse realmente dizer no calor da raiva, por mais que fosse tentador cair em velhos hábitos. Seria tão fácil magoá-la, usar frases cruéis para atingi-la. Mas então... ele percebeu que não queria. Não era mais sobre isso. Ele não era mais essa pessoa, e a verdade é que talvez nunca tivesse sido. Não. Severo estava num ponto da vida em que tais comportamentos não lhe cabiam mais. Não haviam senhores a quem se reportar, se curvar. Não havia uma vida dupla.

Então, o que restava?

Severo havia lutado tão duro para se fechar, para proteger o seu coração. E em poucos meses aquela... aquela mulher adorável destruíra todas as barreiras em torno do seu coração cansado.

Ele lhe deu a chave, e agora ele se sentia tão exposto, tão vulnerável, que não sabia o que fazer consigo mesmo. E olhando ao redor tudo lembrava a ela. Cada maldito pedaço daquele chalé. Hermione Granger estava em todos os lugares. Na bancada, na porta que dava para o jardim, na sala, na mesa do café, e por Merlin, no seu quarto. Na sua cama. 

Sem forças para andar mais, não quando o seu mundo parecia desabar sobre ele, Severo se sentou no chão da cozinha, a cabeça encostada na parede fria, e esperou. Pelo que, ele não sabia. Ele queria acordar daquele pesadelo. Abrir os olhos e perceber que era só mais um dia de janeiro, e não um em que Hermione Granger o magoara profundamente.

Severo queria desvê-la. Apagá-la da sua memória. Esquecer os toques, os beijos, o calor da sua pele. Queria fechar os olhos e não ser invadido pela expressão dela no êxtase da paixão, pelos seus seios balançando enquanto eles se moviam juntos, atentos ao prazer um do outro. E ele queria mais que tudo destruir a ilha onde eles se beijaram pela primeira vez, e a xícara onde ela serviu chá morno, e o prato onde ela queimara torradas.

E então tinha a porra dos discos. E o tapete onde... Bem, eles fizeram muitas coisas naquele tapete persa. E havia o maldito cachecol que ele praticamente arrancara do pescoço ainda em Paris, mas não tivera coragem de jogar fora. Ele quase fez, mas o tecido se agarrou a ele, quase que por magia, mas não a de um bruxo. Era outro tipo de magia, mais elementar, profunda e antiga.

Tantas coisas o lembrariam dela...

A árvore de Natal. - ele riu sem humor. Ele tinha uma árvore de natal, por Merlin. O que ela fizera com ele?

Hermione Granger mudara tudo. Ela se agarrara a ele, recuperando pedaços de um coração que Severo nem acreditava mais que era capaz de amar, invadindo toda a sua rotina com a sutileza grifinória de um rolo compressor, e virou tudo de cabeça para baixo.

Ele queria odiá-la por isso. E quanto mais as implicações do que ela fizera o invadiam, mais furioso ele ficava. Como ela podia ter mentido para ele?

Severo balançou a cabeça, sentindo um peso terrível no estômago. Seus olhos ardiam com lágrimas que ele lutava para que não escorressem. Ele precisava sair dali. Precisava fazer alguma coisa, qualquer coisa. Falar com alguém, culpar alguém, gritar com qualquer pessoa. Ele precisava... de repente ele sabia exatamente quem deveria procurar, exceto que... bem, essa pessoa estava em Hogwarts. E voltar a Hogwarts seria como um incendio. As fofocas se espalhariam ainda mais rápido. Mas do que importava agora?

— Foda-se. — ele murmurou antes de pegar a varinha na manga. Tudo já estava uma grande bagunça mesmo, então que diferença faria? Era dia de enfrentar o passado.

...

A última vez que Severo andara por aquele corredor de pedra a caminho da sala do diretor fora em circunstâncias terríveis. Mas depois de um tempo, de tanto horror, de tanta exaustão mental, ele se desligara completamente. Não havia mais emoção, apenas um objetivo em mente. Por que se ele se permitisse sentir, se ele se permitisse pensar, chegaria a triste conclusão de que a única decisão errada que tomara o levara a uma sucessão de escolhas ruins e a uma vida vazia.

A medida que os seus passos ressoavam nas pedras e a sua longa capa preta ondulava atrás dele, Severo quase cedera: o que eu fiz comigo mesmo? Que tipo de existência eu tive? Eu fui feliz?

Imediatamente, no entanto, ele se impedira de pensar. Suas mãos se fecharam em punho e ele caminhou resoluto, apenas a sombra de um homem a caminho de uma morte inevitável, tentando conter os estragos de uma coordenação de Comensais da Morte numa escola cheia de crianças, jovens, funcionários e colegas. Ele fizera o suficiente? Ele poderia ter feito mais? Severo sabia que nunca seria o suficiente. Ele nunca faria o suficiente para aplacar aquela culpa, e ainda sim... Merlin, como ele queria viver. Como ele queria ser feliz.

Mas ele sabia que tinha que ser feito. Voldemort precisava morrer. Severo faria tudo o que ainda estivesse ao seu alcance, e além dele, como sempre fizera, para garantir isso. O resto... bem, não importava. Ninguém se importava. Não com ele. E tudo bem. Ele fizera isso consigo mesmo. Não havia perdão. O que quer que a sua mente tola tentasse pregar, de que ainda havia esperança, de que ainda havia algo para ele no futuro, Severo não podia se agarrar. Porque seria tão doloroso não ter no final. Seria doloroso demais sonhar e saber que ele acabaria numa vala qualquer em Hogwarts, morto pelas mãos do Lorde das Trevas, sem ninguém para chorar por ele.

E como ele era tolo. Ninguém nunca saberia o que ele sonhara. O que era o desejo mais profundo do seu coração. Nas horas mais silenciosas da noite, quando ele não conseguia dormir, tudo que Severo sonhara era o que as pessoas mais tinham e menos valorizavam. Uma casa simples, mas digna, com cerca e branca e tudo. Clara, com a luz entrando pelas janelas, e talvez, se ele não estivesse sendo autoindulgente demais, uma boa estante para colocar os seus livros mais queridos. E nessa casa, ele voltaria para uma mulher que ele amasse e, nos seus sonhos mais loucos, o amasse de volta. Parecia impossível, mas eram sonhos nas horas obscuras da noite, então quem poderia julgá-lo? Ele queria se enroscar em alguém, trazer para perto do seu coração, se sentir desejado.

E agora ele estava de volta, andando pelo mesmo corredor, que estava silencioso e gelado, o frio de janeiro perscrutando todos os espaços nas janelas, para saber – não, exigir – o quanto a Minerva tinha participação nisso. Ele queria respostas, e as teria. Mesmo que fosse absurdo e terrivelmente vulnerável estar ali sem a sua armadura. Ele se sentia quase nu sem a sobrecasaca escura e as botas de couro de dragão. Parecia estranho e errado, mas tinha que ser feito.

— Professor Snape?

— Não mais, Sr. Filch. Minerva está na sala dela?

O pobre homem assentiu freneticamente, apontando a gárgula. — A sala da direção.

Severo acenou, murmurando a senha antes de ser engolido pelas asas da estátua de pedra, deixando um Sr. Filch completamente chocado para trás.

...

— Severo? — Minerva olhou por trás dos óculos, e a pena que ela segurava ficou parada no ar, poucos centímetros acima do pergaminho.

— Você sabia? — seu tom era taxativo. Ele poderia não estar com a sua longa capa preta, mas a sua postura era de Prof. Snape dos pés à cabeça.

Minerva torceu a boca, soltando a pena para ficar de pé. Ela contornou a mesa para ficar na frente dele. — Você vai ter que ser mais específico.

— Não faça isso, Minerva. Estou no limite da minha paciência. Quero que me diga o que sabe. — ele jogou o jornal em cima da mesa com força.

Minerva nem se deu ao trabalho de olhar. Ela sabia do que se tratava, embora tivesse desejado que as coisas não tivessem chegado naquele ponto.

— Estou esperando. — ele insistiu, e Minerva suspirou.

— Bem — ela o encarou por cima das lentes, num gesto assustadoramente similar ao antigo diretor — sente-se. Vamos conversar.

— Não quero me sentar. — ele agarrou as costas da cadeira, se inclinando sobre ela — Quero respostas. Você sabia disso o tempo todo?

Minerva considerou a sua pergunta, suspirando pesadamente. Não fazia sentido mentir. — Sim, sabia.

Ele estava prestes a falar quando Minerva o interrompeu. Ela tocou a ponta do nariz enquanto se sentava, ponderando o que dizer. — Naquela noite terrível Hermione voltou para buscar o seu corpo. Ela sempre teve um bom instinto, e decidiu segui-lo na noite da batalha. Ela sentia que alguma coisa estava errada, e resolveu voltar para verificá-lo, apenas para descobrir que você ainda estava vivo. Por um triz, é claro. Seu corpo estava sofrendo, e você não parecia nem um pouco inclinado a lutar.

Severo desviou o olhar, caminhando duramente pela sala. Ele queria dizer para ela ir direto ao ponto, mas não teve forças. Lembrar daquela noite era doloroso. Ele quase podia sentir as mordidas dolorosas no seu pescoço; e como se isso não fosse horrível o suficiente, tinha o veneno. Ardia como o inferno, o imobilizando como se estivesse se afogando na própria respiração.

— Severo? — Minerva o chamou, sua voz carregada de preocupação. — Imagino o quão doloroso deve ser ouvir sobre aquela noite.

Ele continuou em silêncio, e Minerva fechou os olhos, resignada. Era difícil, mas tinha que ser dito. Ela contou tudo o que acontecera depois, como o Hermione desaparatara sozinha com ele até o St. Mungus, e como ela lutara para que ele fosse dignamente atendido.

— E quando a verdade veio à tona, quando o Sr. Potter contou a verdade sobre a sua lealdade durante a guerra... Bem, aquela garota lutou por você. Foram meses de internação, e ela o visitava todos os dias. Você tinha uma Ala exclusiva no St. Mungus, e apenas o medibruxo chefe sabia das visitas dela. Hermione cuidou de tudo.

— Ela mencionou algo sobre sermos... — ele pigarreou, ainda sem olhar para ela. Seus ombros estavam rígidos, tensos, e emanava todo tipo de energia nervosa dele.

— Almas gêmeas? Bem, Hermione queria entender como ela poderia ter te protegido naquela noite. Não fazia sentido. Ela já o admirava, claro; ela parecia ter uma inclinação natural a você, embora não de uma maneira romântica. Mas depois da Batalha Final ela tentou entender. Ficou obcecada com isso. E você a conhece. Aliás, vocês dois também são muito parecidos nisso.

Severo fechou os olhos. As emoções do dia começaram lentamente a cobri-lo, envolvendo o seu corpo num sentimento terrível de puro pânico.

— Quando ela descobriu?

— Alguns meses depois da Batalha Final. Ela alternava entre cuidar de você, me ajudar aqui em Hogwarts, e pesquisar sobre o feitiço de proteção que ela invocara na Casa dos Gritos. Isso neutralizou parte do veneno, e foi possível salvá-lo a tempo.

— Por que você não me contou? Você mentiu para mim, Minerva. Como pode fazer isso?

Minerva balançou a cabeça. — Não cabia a mim dizer, Severo.

Severo estourou, caminhando até a mesa. — Você teria me privado de conhecer a mulher que... — que ele amava. Que ele venerava. Que trouxera vida para a sua existência solitária.

— Severo — Minerva o encarou profundamente — você honestamente acha que estaria pronto para conhecê-la naquela época? Hermione era jovem, e você precisava tirar um tempo para si mesmo. Pela primeira vez você teria uma vida de escolhas e-

— E você tirou a minha.

— Queria que fosse feliz, Severo. O conhecimento de que a sua alma gêmea era ninguém menos que Hermione Granger o teria apavorado. Você nunca daria uma chance a ela. Só pense um pouco e seja honesto consigo mesmo. 

— Não cabia a você decidir. Era o meu direito! A minha escolha! — ele gritou, pontuando cada palavra com uma batida na mesa.

Minerva não se alterou, sequer piscou. Ela sabia que não era justo, mas não se arrependia da sua decisão. — Você se apaixonou por ela sem saber, Severo. E, ouso dizer, ela também. Aquela jovem mulher só queria deixá-lo viver a própria vida. Hermione achava que se contasse você se sentiria em débito com ela. E me diz, com segurança, que você não faria exatamente isso?

Ele bufou. — Não cometa o erro de achar que me conhece. Você passou quase duas décadas desconfiando da minha lealdade.

Severo mal acreditou nas palavras que saíram da sua boca. Ele se convencera durante todo esse tempo que não importava. Não importava que todos tivessem desconfiado dele porque isso implicava que ele tinha feito o seu trabalho com maestria. Que ele convencera como espião duplo. Mas ainda... doía.

Pela primeira vez na conversa Minerva recuou. O comentário a pegara desprevenida, e ela piscou, desviando o olhar. — Severo, eu sinto muito. Sinto muito mesmo. Não deveria ter duvidado da sua lealdade. Graças a você estamos aqui hoje.

Severo não respondeu, e Minerva percebeu que ele simplesmente sairia pela porta sem olhar para trás. Antecipando o movimento, ela se levantou rapidamente e o alcançou, colocando a mão magra no seu braço. — Severo Snape, não ouse sair desse escritório.

— Eu não respondo a ninguém, diretora. Não mais. — ele deu um sorriso de escárnio e imediatamente se odiou por isso. Parecia tanto com o homem que ele fora, vivendo uma vida que ele tentou a todo custo enterrar.

— Não faça isso, Severo. Não jogue essa oportunidade fora. — Minerva praticamente implorou. — Sei que Hermione o magoou, traiu a sua confiança. Sei também que fiz isso, mais vezes do que gostaria de admitir. Não posso expressar o quanto sinto muito. Mas era esse o ponto, não era? Você, como sempre, fez o seu trabalho bem feito. E eu, desde então, estou tentando compensar meu lapso de julgamento.

— Eu não me importo. Não faz diferença para mim. — ele mentiu, se afastando dela e olhando resolutamente para a porta.

A velha diretora suspirou, cansada, e balançou a cabeça tristemente. — Não desperdice uma chance de ser feliz, Severo. Abra o seu coração, escute o que ele tem a dizer, e não permita que essa omissão os afaste. Por favor.

Severo não se dignou a responder. Em poucos passos ele alcançou a porta e desapareceu pelo corredor, tentando ignorar o peso quase insuportável em seu coração.

...

Severo dispensara a garota Lovengood sem meias palavras, praticamente a expulsando pela porta enquanto ela o olhava com aqueles olhos grandes, calmos e inquisidores. Ele não desgostava da garota, mas a achava perturbadoramente instintiva. Luna nunca tivera medo dele, e sempre o confundia com as suas frases sem sentido e roupas estranhas. E ao que parecia, os anos a tornaram ainda mais perigosa e intrometida.

Ele não tinha a menor disposição para os olhares questionadores e palavras de sabedoria que com certeza estavam rondando a mente dela, então ele simplesmente a dispensara dizendo que depositaria o pagamento pelos dias trabalhados na conta em Gringotes.

— Senhor? — ele suspirou, massageando a testa. A garota não tinha ido embora?

— O que foi?

— Se quiser posso ficar até o fim da semana. Até...

— Até o que? — ele a cortara, cruzando os braços sobre o peito, esperando que isso a intimidasse.

A garota, no entanto, apenas deu de ombros, indiferente. — Às vezes é bom se afastar. Pensar.

— Tenho trabalho a fazer, como deve ter percebido. Além disso, não há o que pensar. Você pode ir embora. — ele indicou a porta com um gesto vago, se curvando mais para dentro da própria fortaleza quanto possível. Ele só queria ficar sozinho.

— Tudo bem. — Luna respondeu, e embora Severo não estivesse olhando para ela, conseguia imaginar exatamente a sua expressão distante e sonhadora, como se estivesse lendo-o por inteiro. E ele odiava a sensação. — E, senhor.

Severo deu as costas e fechou os olhos. Sua mão parou na maçaneta da porta que dava para o laboratório, e ele suspirou. — O que foi agora? — sua voz entediada escondia sua irritação.

— Hermione esteve aqui mais cedo. Ela pediu para te entregar isso.

Ele sentiu o coração pular dentro do peito. Apenas a menção do nome dela o tirava do próprio eixo. Vagamente, ele percebeu a garota se movimentar pela loja, até deixar algo em cima do balcão. Severo queria desesperadamente se virar e pegar, mas algo dentro dele torceu e se adiantou, fazendo-o dizer o que não desejava realmente.

— Leve de volta, não quero isso. Nada que a Srta. Granger tenha a dizer é relevante.

— Mas-

— Leve de volta ou eu mesmo o farei.

Ele não esperou para ver o que a garota faria, batendo a porta com força atrás de si enquanto se afundava na única coisa que ele podia: poções.

...

Em seguida, o silêncio se esgueirou para a minha cabeceira
E sussurra quem eu sou
Essa revelação violenta me revira por dentro
Me impede quando tento ficar de pé
Não é estranho?

Hermione chorou tanto que não sabia ao certo como era possível. Ela acordou na pousada, incerta sobre a hora do dia, com os olhos inchados e o corpo pegajoso de suor. Sua cabeça doía profundamente, e suas bochechas ardiam.

Ela se sentou no meio da cama e olhou para a janela. Mal tinha amanhecido ainda, mas parecia que uma vida inteira tivesse se passado. Ela viu aquele olhar nele... Um que ela já conhecia, possuído pela raiva, e um lampejo de algo diferente, mais profundo, doloroso. Era decepção. Tristeza. Ele parecia tão perdido, tão magoado. O coração de Hermione se retorceu pela culpa. Ela se odiou. Aquele olhar ficaria gravado em sua memória para sempre.

Hermione não apenas o magoara profundamente, partindo o seu coração; ela também arruinara tudo que havia sido construído entre eles.

— Estúpida! — ela bateu com força no colchão e empurrou os cobertores para o lado, saltando da cama rapidamente. Ela tinha que fazer alguma coisa, falar com ele, ao menos tentar, mas o que ela poderia dizer? Hermione sabia que no instante em que olhasse para ele começaria a chorar, e sua explicação se perderia em algum lugar do meio. Ela realmente errara, e não havia nada a fazer sobre isso a não ser esperar que ele a perdoasse. E se ele não fizesse... só o pensamento disso a deixava doente.

Harry e Gina ligaram várias vezes na noite passada, preocupados, e Luna tentara falar com ela na pousada, mas Hermione não tinha disposição nenhuma trazer o assunto à tona. Ela apenas dissera que estava bem, e precisava de um tempo para processar tudo, e eles estavam respeitando o seu espaço. Hermione sorriu tristemente. Ela realmente tinha amigos incríveis, e ela só desejava parar de dar tanto trabalho a eles.

Como ela poderia ter saído da bruxa mais brilhante da sua idade para aquilo? Para aquela bagunça completa? Ela honestamente não sabia em que ponto da vida adulta tomara a curva errada, só sabia que desde então tudo havia desmoronado ao redor dela e das pessoas que a amavam. Hermione só queria acertar uma única vez, e parar de magoar tantas pessoas, incluindo ela mesma.

Ela olhou para a carta em cima da mesa. Hermione gostava de escrever. Era a maneira como os seus pensamentos fluíam melhor, e as palavras jorravam dela com facilidade. Era tanto uma maneira de se expressar quanto de escape. Depois de ficar horas esperando por ele no frio, do lado de fora do chalé, e ele não aparecer, Hermione sufocou um soluço e desaparatara nos fundos da Botica. Ela desabara nos braços da Luna, mal conseguindo falar o que acontecera, então elas apenas ficaram ali, em silêncio.

Era em parte porque Hermione gostava tanto dela. Luna não a forçava a falar, ou dar explicações; ao contrário disso, ela apenas entendia e esperava, sem julgamentos. Era refrescante. Depois de quase quatro horas sentada no laboratório enquanto um cliente ou outro entrava na loja, Hermione finalmente entendeu que ele não apareceria e praticamente se arrastou até a pousada e escrevera. Ela descartou vários papeis, riscou frases sem sentido, sentimentos mal articulados, e chorou de frustração.

Olhando para o teto, ela deixou os pensamentos e lembranças a dominarem.

“Por favor, viva”

“Por favor, não me deixe”

“Eu não posso...”

“Por favor...”

“Eu... deuses! Alguém... Façam alguma coisa!”

“Só... fica comigo”

“Eu...”

Hermione fechou os olhos com força, não fazendo nada para impedir que mais lágrimas escorressem pelo seu rosto. Ela raramente se permitia lembrar desse dia, porque era doloroso demais. Depois que ela descobrira o que eles eram, o que representavam um para o outro, ela ficara quase duas semanas sem ir ao hospital. Era demais. Como ela poderia viver com esse conhecimento e saber que eles nunca poderiam ficar juntos? Que espécie de almas gêmeas eles eram se as oportunidades para que eles ficassem juntos era praticamente inexistente?

Tudo sobre eles gritava errado, proibido, impossível. Ela era a sua aluna, tão mais jovem, numa posição tão vulnerável na guerra. Ela era triplamente uma mira para a supremacia racial de Voldemort. Nascida trouxa, amiga de Harry Potter, e uma grifinória sem travas na língua. Em que momento eles poderiam ter se encontrado? Em que realidade paralela duas vidas tão diferentes poderiam ter se esbarrado para ter uma chance no amor?

Hermione fora dominada por uma raiva tão grande; de Deus, do Universo, dos deuses, ou seja lá quem fora responsável por aquela piada estúpida do destino. Mas mesmo apesar de todas as inadequações, era a verdade. E era ainda mais dolorosa. Porque conhecer a outra metade da sua alma, da pessoa que não a completaria, mais a tornaria mais forte, mais ela mesma, apenas para perdê-la depois... Como ela poderia viver com a certeza de que a sua alma gêmea existia, mas partira? Ou que ela existia, mas nunca a daria uma segunda olhada?

Mas, que Merlin a perdoasse, quando ela vira o nome dele e o dela lado a lado, juntos... Deuses, parecia tão certo. Hermione se lembrou de ter se ajoelhado no chão frio do Ministério sozinha e chorar. Seu coração doía tanto que ela teve que lutar para respirar. Era demais.

Vagamente a ocorreu que, sim, ela tivera uma pequena queda por ele em seu quarto ano. A maneira como não parecia certo com Victor Krum a fez perceber que talvez Ron Weasley também não seria o que ela procuraria no futuro, e do nada o pensamento a ocorreu. Mas era tão absurdo, tão platônico, que Hermione se forçou a esquecer. Não valia a pena ficar pensando numa paixão tola de escola por um homem que, pouco tempo depois, seria acusado de matar Dumbledore.

Mas algo parecia não se encaixar. Havia alguma coisa de muito estranho em toda essa história. A maneira como o Snape os protegera do Prof. Lupin no terceiro ano foi tão visceral. Ele pode ter atuado muitas vezes na sua vida, mas Hermione ficara com a impressão de que naquele momento foi um dos poucos que ela pode ter visto a máscara cair. Ninguém percebera. Talvez nem ele mesmo. Mas ficara com ela.

E então, como um homem que protegera três alunos daquela maneira os mandaria para a morte no final? Não fazia sentido. Nada naquela história fazia. Mas quando Harry disse que vira o diretor cair da Torre de Astronomia com os próprios olhos, Hermione não podia fazer nada se não acreditar.

Ela não acreditava que ele era um assassino nem por um momento, mas não valeria a pena insistir nisso quando havia tanto em jogo. Começar uma briga com o Harry e o Ron seria no mínimo desgastante, e eles já estavam exaustos o suficiente. Andar como fugitivos por meses era terrível, e Hermione prometera a si mesma que nunca mais chegaria perto de uma floresta. Os dias eram longos, sem fim; e as noites, frias e assustadoras. Na maior parte das vezes eles mal sabiam o que estavam fazendo, e tinha tanto em jogo. Mas o silêncio também a permitia pensar. Em tudo. Na sua família, nos seus amigos, na guerra. Na saudade. Num banho quente. No futuro.

E quando Hermione pensava no futuro, num exercício metade otimista e metade masoquista, ela tentava pensar em Ron. Por algum motivo estranho, o pensamento não vingava. Parecia... errado de alguma forma. Como se não fosse para ser. E quando ele a deixara... Hermione nunca imaginou que podia se sentir tão furiosa. Raiva dominou cada parte do seu ser. Ela estava tão incrivelmente brava com ele. Como ela poderia confiar no seu comprometimento depois daquilo? Sim, eles estavam sob influência da horcrux; ela ficava estridente, irritantemente mandona; Harry tinha abismos entre o adolescente furioso e a auto piedade, se tornando indeciso na maior parte do tempo. Mas Ron... ele os abandonara. Ela podia perdoá-lo como seu amigo, mas como homem era difícil. Era como um daqueles defeitos que ela não poderia lidar porque voltaria a assombrá-los no futuro. O que, de fato, aconteceu.

— A vida é tão complicada. — ela falou para si mesma enquanto brincava com a carta em suas mãos. Em pensar que dois dias antes eles estavam rodopiando por Paris, felizes. Que duas noites antes eles estavam fazendo amor, tão íntimos, tão profundamente conectados, que pareciam um só. Era um clichê terrível, ela sabia, mas era também uma verdade.

“Tem muitas coisas recomeçando na minha vida, Hermione. Inclusive isso.”

Hermione fechou os lábios, tentando não chorar, mas as lembranças a invadiram com força. Ele estava tão tímido quando a confidenciara isso. O coração dela esquentou em seu peito, batendo mais rápido.

“Eu amo você, Hermione. Amo você com tudo o que eu tenho. Com todo o meu corpo, toda a minha alma. Mas eu não amo levianamente. Quando amo alguém sou dedicado a esse sentimento, mas eu nunca me senti assim antes. Nunca amei ninguém como amo você. E é assustador.”

Poderia no mundo haver declaração mais romântica? Hermione se perguntou, rindo sem humor. Além de tudo Severo Snape ainda era um homem completo, como se tivesse saído das páginas de algum romance das irmãs Brontë. Ele a arruinara para qualquer outro, porque nenhum homem jamais poderia chegar aos pés dele.

E agora ela o perdera. Ele poderia ser um herói de algum romance bonito de época. Mas Hermione estava longe de ser uma Jane Eyre.

...

— Sinto muito, Hermione. — Luna disse, se desculpando.

Hermione sentiu o peso da decepção invadi-la. — Não é sua culpa. Como ele está?

Luna hesitou. — Ele parecia exatamente como o Prof. Snape, mas cansado.

Hermione fechou os olhos com força. Era pior do que ela imaginava. — Ele vai agir com indiferença sobre isso, como se nada tivesse acontecido?

Luna não sabia o que responder, então apenas ficou em silêncio. De repente, Hermione se sentia furiosa. Ela não tinha nenhum direito, e sabia disso, mas o homem era frustrante.

— Talvez você possa reconquistá-lo? Mas espere um pouco. Dê alguns dias, e então vá falar com ele.

Hermione sabia que era o mais sensato a se fazer, mas como ela poderia aguentar? Seriam dias de silêncio, correndo o risco de cruzar com ele na vila. E a Botica, como ficaria? Eles ainda eram sócios?

— Não posso esperar Luna, preciso falar com ele.

— Hermione, talvez-

Mas Hermione não deu ouvidos, recuperando a carta em cima da escrivaninha e o casaco nas costas da cadeira. Ela abriu a porta com força, mal notando a Sra. Janet do outro lado, quando gritou por cima do ombro que não precisavam esperar que ela voltasse, saindo na tarde fria a caminho da Botica.

...

Hermione sentiu o estômago gelar quando viu a plaquinha de ABERTO na porta de vidro da Botica, indicando que ele realmente estaria lá dentro. Ela não sabia o que pensar, e suas pernas pareciam chumbo. Com o coração a mil ela entrou.

Assim como no primeiro dia em que ela estivera ali, a loja estava calma e silenciosa, e ele não estava em lugar nenhum. Nervosa, ela torceu as mãos enquanto esperava, pensando se talvez Luna não estivesse certa em dizer para ela esperar. Dominada por um pânico repentino, ela se virou rapidamente para sair e tropeçou na mesinha com a garrafa de café, derrubando-a num estrondo.

Severo abriu a porta com uma expressão confusa e preocupada, que rapidamente se transformou na máscara impassível quando ele olhou para ela. Hermione se sentiu estúpida, estremecendo com a percepção de que parecia completamente fora de si.

Antes que ela pudesse fazer isso, Severo murmurou um feitiço e tanto a mesa quanto a garrafa voltaram para o lugar. Hermione se endireitou, passando as mãos pela calça para tentar conter o nervosismo.

Ele estava prestes a dizer alguma coisa quando ela o interrompeu. — Sei que não quer me ver agora, mas precisava dizer uma última coisa. — Hermione arriscou um olhar para ele e, quando não houve resposta, ela continuou. — Desde o come-

— Não.

A palavra foi dita com tanta força que Hermione piscou, assustada.

— Não temos nada a dizer um para o outro. A partir de agora somos sócios, apenas isso. Você pode continuar trabalhando na Botica ou pode vender a sua parte. — ele parou por alguns segundos, mas Hermione estava chocada demais para falar — Eu prefiro a última opção. Posso pedir ao meu advogado para redigir um contrato e oficializamos a venda.

Hermione podia sentir o sangue esvaindo do seu rosto. Ele não poderia estar falando sério.

— Severo, entendo que esteja magoado mas-

— Não, você não entende. — Hermione tentou detectar alguma emoção em sua voz, mas não havia nada. Ele estava indiferente e distante, falando com ela como se estivesse entregando um relatório.

Ela respirou fundo, mas a raiva rastejou pela sua pele. — É isso que você quer?

Severo simplesmente olhou para ela. — Seria o melhor a se fazer.

— Melhor para quem?

— Para todos.

Hermione sentiu um zumbido estranho no ouvido enquanto processava as palavras dele. Sua boca ficou seca, e seu coração batia tão rápido que parecia que ela havia acabado de correr uma maratona. Ela sabia que naquele momento não faria sentido insistir, ele havia tomado essa decisão e não voltaria atrás.

— Se você quer assim, então... que seja. — ela se esforçou para que a sua voz não vacilasse, mas por dentro seu coração estava se partindo em um milhão de pedaços — Mas gostaria de terminar as próximas duas semanas, se não se importar. Quero terminar pessoalmente os lotes para o hospital.

Severo deu de ombros, indiferente. — Não há necessidade.

— Por favor. — ela implorou, e por um momento Hermione pensou que ele recusaria.

— Não me oponho.

O alívio a inundou, mas a sua voz parecia tão fria que a quebrou. — Então é isso? Vai ser assim?

— Se está se referindo ao nosso... — ele ponderou, como se escolhesse as palavras minunciosamente — envolvimento amoroso, então sim. Não temos mais nada a falar.

Hermione soltou um bufo estrangulado. Sua garganta estava apertada com um soluço contido, e seus olhos ardiam. — Tudo bem. Volto amanhã então.

— Como quiser. — ele respondeu, e Hermione se virou o mais rápido que pode para que ele não a visse chorar. E quando ela estava quase cruzando o limiar da porta, ele completou — Senhorita Granger.

...

— O que aconteceu? Você e a Hermione terminaram? É realmente verdade?

Severo nem se deu ao trabalho de olhar para o amigo quando respondeu, numa voz falsamente entediada. — Boa noite para você também, Bernard.

— Não venha com isso, garoto. Quero ouvir de você. O que aconteceu? Vocês pareciam o casal mais apaixonado.

Severo estava de costas para a porta, etiquetando alguns frascos, e respondeu sem se virar. — Acontece, Bernard. Relacionamentos acabam.

— Bobagem! — Severo finalmente se virou para o velho amigo, furioso. Ele nunca havia escutado o Sr. Bernard falar daquela maneira.

— O que você disse?

— Eu disse: bobagem! Você não me engana, Severo.

— E o que exatamente você acha que sabe sobre mim, Bernard? Não suponha que me conhece, porque não é o caso. Só porque trocamos algumas palavras cordiais ao longo dos anos e temos uma brincadeira estúpida em comum não te faz um maldito especialista na minha vida.

— Será mesmo? Por que eu sei, por exemplo, que você está triste. Essa máscara não me convence, Severo. Não vim aqui cobrar nada a você, homem teimoso. Só quero saber como está.

E isso o desarmou completamente. Severo estava sempre pronto para lutar, mas não estava acostumado a ser ouvido. Ele não sabia o que dizer.

— Bem. — ele pigarreou, deixando a cortina de cabelos negros esconder o seu rosto. — Estou bem, como pode ver. Agradeço a... — ele pigarreou — preocupação. Você pode ir agora.

Mas o Sr. Bernard o ignorou, puxando o banquinho detrás do balcão. — Nunca disse isso a você, mas quando chegou na vila eu disse para a Valérie: acho que seremos bons amigos.

— Bernard-

— E então você começou a aparecer no café, mas se recusava a falar com qualquer pessoa. Sempre fechado. Educado, sim, mas sempre distante. Ainda não sei como conquistamos você, garoto, mas quero que saiba que pode confiar em mim. Se não quiser falar, tudo bem. Podemos só ficar aqui, parados.

— Bernard, você é um homem irritante.

Ele bufou. — É preciso de um para reconhecer o outro.

Severo massageou a têmpora. — Você não vai sair enquanto eu não disser nada, não é?

Bernard respondeu alegremente. — Correto.

Severo devolveu alguns frascos para a prateleira. — Não há o que dizer. Tivemos um desentendimento e nós brigamos.

— Mas brigas podem ser resolvidas e perdoadas, certo? Não precisam terminar nada.

— Não acho que seja o caso, Bernard. Herm- digo, a Srta. Granger traiu a minha confiança, e não sei se poderia confiar nela novamente.

— Sinto muito, rapaz. Mas ela parece miserável. Não tem nenhuma maneira em que ela possa compensar isso? Ganhar a sua confiança de volta?

Sim. Severo queria gritar mil vezes, sim! Mas ele estava com tanto medo. Assustado. Quantas vezes ele não merecera o perdão de alguém e teve isso negado? Mas ele estava sendo sincero sobre estar profundamente magoado. Ele confiara nela, contara seus segredos mais íntimos e obscuros, se permitira ficar vulnerável.

— Você, meu rapaz, é como um filho para mim.

— Bernard.

— Você pode aceitar esse velho chato?

— Prefiro você como amigo. Não tive bons exemplos com figuras paternas.

Bernard deu um aceno triste, depois arriscou um sorriso, batendo nas costas do bruxo taciturno. — Vou aceitar o cargo, amigo. Agora, deixe de ser um idiota rabugento e me diga logo o que aconteceu.

Severo suspirou. Seria tão mais fácil poder contar toda a verdade. — Hermione mentiu para mim, Bernard. Veja, fui professor dela.

— Naquele internato da Escócia.

— Sim. No internato. E a Srta. Granger era uma criança irritante. Deus me ajude, ela era chata. Vivia com a mão levantada querendo mostrar que sabia tudo. Acabei a apelidando de irritante-sabe-tudo, e infelizmente pegou.

— Severo! — Bernard o recriminou, chocado, e Severo se encolheu.

— Era um homem diferente na época. Amargo. Mesmo sabendo que ela era muito inteligente e que provavelmente governaria a droga da Inglaterra se quisesse, não podia demonstrar favoritismo.

— Por que não?

Severo passou a mão pelos cabelos, tenso. — É complicado. Existem — ele hesitou — coisas sobre o meu passado, Bernard, que não posso compartilhar.

— O que, você foi um espião para o FBI ou algo assim?

Severo riu, amargo. — Algo assim.

— E porque diabos você dava aulas numa escola para crianças e adolescentes?

— Não posso dizer, Bernard, e nisso você vai ter que confiar em mim. É muito complicado.

— Severo, meu filho, sei sobre coisas que desafiam as leis humanas. Você ficaria chocado.

— Impossível. Nessa altura da vida nada mais me choca. — Severo balançou a cabeça, até que algo o ocorreu — A menos que-

Os pensamentos passaram por ele como um furacão. Não poderia ser... Como ele não percebera antes? — Bernard, como é o mesmo o sobrenome de solteiro da Valérie?

Todo o corpo do homem mais velho enrijeceu, assumindo uma postura defensiva. — Por que quer saber?

Severo o ignorou. — Bernard, prometo que não vou machucá-la.

Bernard se levantou rapidamente, assustado. — E porque você poderia machucá-la?

— O que exatamente você sabe, Bernard?

— E o que exatamente você é, Severo?

O bruxo hesitou. Se essa conversa desse muito errado, ele tinha a opção de obliviá-lo, mesmo que odiasse a ideia de levantar a sua varinha para um amigo. — Acho que você sabe.

O homem na frente dele empalideceu, e Severo fechou os olhos, lamentando profundamente o seu cansaço e falta de controle para ter deixado a conversa chegar a esse ponto. Mas se o Bernard conhecia sobre o mundo bruxo, então Severo tinha que saber o porquê.

— Você é um bruxo! — Bernard exclamou, de repente parecendo mais chocado e surpreso que preocupado. — Céus! Você se escondeu bem, rapaz. Jamais poderia imaginar. E, claro, agora tudo faz sentido.

Severo não sabia muito bem o que fazer ou falar, porque aparentemente ele ainda podia, sim, se surpreender com alguma coisa. A vida estava mais fora do controle dele do que ele imaginava. — Tudo o que exatamente?

— Ah, você sabe. O jeito tenso e desconfiado de quando chegou, querendo se isolar de todos, não permitindo que ninguém se aproximasse. Deduzi que, pela sua idade, você pudesse ter lutado em alguma guerra para os Estados Unidos ou algo nesse sentido, por isso nunca perguntei. Quis respeitar o seu passado.

— Quanto você sabe?

— Bem, só o que a Valérie me contou, claro. Não muita coisa, embora. Valérie detesta falar sobre isso. É difícil para ela.

— Presumo que ela seja um aborto.

— Aborto? — Bernard franziu a testa.

Severo fez um aceno no ar. — Filhos de pais bruxos, mas sem poderes mágicos.

— Esse nome é horrível!

— Sim, bem — Severo o interrompeu, impaciente — então ela é?

— Sim, sim. Os pais dela eram bruxos, a irmã também. Mas ela nasceu sem poderes mágicos. Foi... difícil.

Severo estremeceu. — O nome Bernard. Qual o sobrenome dela. Não o de agora, claro. O de solteira.

— Os pais dela não a nomearam com o nome da família, Severo. Você teria que perguntar.

Severo assentiu vagamente, cruzando a loja em rápidas passadas. Ele se sentia zonzo, quase claustrofóbico. Como a sua vida virara de cabeça para baixo assim? A Valérie sabia quem ele era o tempo todo? Pior, até onde ela sabia?

— Posso só fazer uma pergunta, Severo?

Severo fechou os olhos, levando a mão em punho até próximo a boca. Todo o seu corpo se enrijeceu. Ele já podia imaginar o que Bernard iria perguntar. Você era um desses bruxos? Você era ruim? Você faria isso com a Valérie? Você era um Comensal da Morte? Ele perderia seu amigo, perderia a família que o acolhera. Ele deveria saber que nada bom durava. Não era assim que havia sido a sua vida até ali?

— Pergunte o que quiser, Bernard. — Severo finalmente cedeu, preparado para ver a repulsa em seu olhar, a decepção em seu rosto.

Até que...

— É verdade que vocês podem voar em vassouras? Uma vez a Valérie comentou, mas confesso que até hoje fico pensando se isso é realmente verdade.

Severo olhou para ele como se Bernard tivesse enlouquecido.

— Como é?

— Vassouras, sabe? Vocês podem realmente voar numa daquelas?

Severo apenas ficou lá, parado, pelo que pareciam horas. — Bem, sim. Sim, nós podemos.

— E você pode levar um non-magique? Como eu?

Severo piscou. — Bernard, eu disse que você poderia me perguntar qualquer coisa e você desperdiça a sua chance com isso?

— E o que mais eu poderia perguntar? Essas malditas vassouras vêm queimando a minha curiosidade a quase 50 anos, rapaz!

— Mas-

— Além do mais, sei tudo que preciso saber por você, Severo. Você é um bom homem, é tudo que importa. E tem mais: sei que você e a Hermione vão ficar bem, porque está escrito em todo o seu rosto o quanto está te matando ficar longe dela.

— Bernard. — Severo avisou, e o homem mais velho abriu as mãos no ar, se desculpando.

— Você é quem sabe. Mas vou te avisando, não vire as costas para o amor. Quando se está com a pessoa certa, até o difícil fica fácil. Bem — ele levantou de repente — mas agora preciso ir. Pense no que disse, garoto. E converse com a Valérie. Ela vai querer falar com você depois de... bem, tudo isso.

Severo assentiu, percebendo vagamente que o Bernard caminhava até a porta. Então era isso? Era assim que as amizades poderiam funcionar? Poderia ser tão simples?

— Au revoir! E pense na minha pergunta!

Severo ficou olhando para a porta, depois explodiu numa risada baixa e rouca. E depois, ele percebeu, não era mais risada, era choro. Tudo transbordou entre ele e Severo soluçou. A briga com a Hermione, a descoberta de um segredo profundo, a aceitação de um amigo. Era tudo muito.

E para um homem que havia fugido tanto dos sentimentos, era irônico como ele acabara: quase paralisado por sentir demais.

 ...

Uma semana se passou e Hermione podia estrangular o homem. Ela pedira as duas semanas na esperança de que ela tivesse a chance de se desculpar, mas Severo estava irredutível. Ele mal olhava para ela, se recusava a responder mais do que o estritamente necessário, e todas as vezes que ela tentava puxar algum assunto Severo simplesmente a cortava com um tom firme e indiferente, embora educado, e lançava um feitiço silenciador.

Ela estava farta daquilo.

Queria sacudi-lo pelos ombros e forçá-lo a olhar para ela. A vê-la. A falar com ela. Como ele conseguia fingir que não se importava? Era tão real que Hermione estava quase acreditando que ele realmente não sentia a sua falta. Ela estava se sabotando e sabia disso. Não era possível fingir a conexão que eles tiveram nos dias e noites que passaram juntos.

Não.

Era tão forte e bonito, tão poderoso. Era quente e aconchegante, estar nos braços dele. Mas era também intensidade, desafio. Era tanto quanto se sentar em frente a lareira num dia frio quanto correr na praia em pleno verão. Essas sensações... não, nem o melhor dos espiões poderia fingir. Então a questão era: ele poderia perdoá-la? Severo poderia dar uma chance ao amor deles? Era isso que ela queria descobrir, mas o tempo estava acabando e, sinceramente, era doloroso receber cada um dos seus olhares gelados quando ela sabia como eles eram quando a olhavam com calor, no auge da paixão.

E então, ali estava ela. Em sete dias ela iria embora. Para onde, exatamente, ela não sabia. Hermione podia não assinar os papeis e continuar com a sociedade, mas o que ela ganharia com isso? Ela não queria o desprezo dele, então se a distância o fizesse odiá-la menos, que fosse. Mas, Merlin, ela sentiria falta de tudo.

Valérie não parava de perguntar a ela o que havia acontecido. Mas o que Hermione poderia dizer? Era covarde, mas ela estava evitando a todo custo essa conversa. Harry também não parava de ligar, e Hermione só atendera para não deixar a Gina preocupada. Harry, óbvio, não acreditara nela, e ela estava temendo o momento em que ele aparecia na vila. Se o Severo já a odiava agora, imagine trazer o Harry para o seu santuário?

— Merlin. — Hermione bufou sem humor. Ela massageou a testa, tentando se concentrar. Já era a quinta vez que ela lia o mesmo parágrafo do relatório, e isso a irritou. Hermione nunca perdia a concentração. Não importava o problema que ela estivesse enfrentando, nada ficava entre ela e a sua leitura.

E foi então que ela percebeu. — Mas o que-

Sr. Snape, Srta. Granger,

Lamentamos muitíssimo que não poderão continuar com a parceria nesse momento.

Ainda assim, esperamos poder retomá-la no futuro.

Cordialmente,

 Sr. Baussan - Presidente Loccitane.

— Não, não pode ser. Ele vai me escutar, e é agora.

Hermione se levantou tão rápido que a cadeira quase tombou para trás. Ela estava furiosa quando entrou na sala dele sem bater, jogando a pasta em cima da mesa num baque. Vários pergaminhos voaram com o impacto, e Severo a olhou por cima dos óculos, completamente chocado.

— O que significa isso? Você enlouqueceu de vez?

Ela o ignorou. — O que você fez com o contrato de Paris?

— O que?

— O contrato, Snape! Da Loccitane!

— Não que seja da sua conta, Srta. Granger, mas sim. Voltei atrás na minha decisão.

— Você não pode fazer isso! — ela gritou, indignada. Severo Snape podia ser extremamente frustrante quando queria — Sabe quanto foi difícil conseguir essa parceria?

— Com licença, Srta. Granger — ele se levantou, se inclinando perigosamente na mesa, com as mãos espalmadas na madeira — mas não sabia que precisava de permissão para tomar decisões que envolvam o meu negócio.

Hermione levantou a cabeça, não cedendo a postura intimidante dele. — O nosso. O nosso negócio!

— Não por muito tempo.

— Argh! Você é um idiota.

— Surpresa, Granger, é assim que eu sou! — ele abriu os braços —  Me surpreende como você acabou na minha cama se é isso que você acha.

— Realmente, Snape, estou começando a questionar a minha sanidade. Você disse que me amava, mas no primeiro problema fugiu sem sequer ouvir o que eu tinha a dizer!

Severo jogou os óculos com força sobre a mesa, depois a contornou, parando a centímetros de Hermione. — Quando eu disse aquilo não sabia que você estava me escondendo uma parte importante da minha vida. Não ouse virar essa briga para cima de mim.

Hermione assentiu. — Tem razão. É verdade, a culpa é toda minha. Mas eu não menti sobre os meus sentimentos, Severo. Você não pode me perdoar?

Severo ficou em silêncio, se negando a responder. Quando o escrutínio dela se tornou demais, ele tentou se virar, mas Hermione o impediu, segurando-o pela mão. Severo quase estremeceu com o toque. Ele tinha esquecido como a pele dela era suave.

— Diz, olhando nos meus olhos, que você não sente a minha falta. Que não sente falta de fazer amor comigo. Diz!

— Srta. Granger, você está extrapolando. — ele quebrou o contato, passando por ela para sair do escritório. Ele praticamente fugiu para frente da loja, mas Hermione o seguiu, encurralando-o.

Ela parou na frente dele, pontuando cada sílaba com um toque em seu peito largo. – Olha nos meus olhos. Diz, Severo, que você não sente falta. Porque eu sinto falta todo santo dia. De ter você dentro de mim. De sentir as suas mãos no meu corpo.

— Granger.

Severo avisou, prestes a falar alguma coisa, bem na hora que o sino da porta tocou. Ambos olharam rapidamente para o turista alegre que estava prestes a entrar quando Hermione o parou. — Nem pense em entrar.

O pobre homem congelou, sem saber o que fazer.

— Saia imediatamente. Estamos fechados.

Sem pensar duas vezes o turista fechou a porta, deixando-os novamente a sós.

— Diga o meu nome, Severo. É Hermione. Era assim que você me chamava quando fazíamos amor.

Ele se recusou a olhar para ela, ou a responder, mas também não fugiu. Hermione considerou isso como um sinal de que poderia continuar. Ela ficou na ponta dos pés e deslizou as mãos do peito até os ombros largos dele, se inclinando devagar, tão devagar que parecia que ela estava se movendo em câmara lenta.

— Sinto sua falta, Severo. Não me afaste. Não podemos resolver isso?

A pergunta ficou no ar entre eles, pairando como um fantasma. Eles poderiam resolver isso?

Severo queria dizer que sim. Deuses, como ele queria. Mas algo o travou e ele foi incapaz de responder. Ele tirou os braços dela do seu ombro e, sem uma segunda olhada, desaparatou.

...


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Notas finais do capítulo

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