Recomeços escrita por Sophia Snape


Capítulo 12
The Point of No Return


Notas iniciais do capítulo

Não sei o que está acontecendo comigo, mas não consigo parar de escrever. Os comentários e mensagens de vocês tem me ajudado muito, e fico cada vez mais empolgada. Nunca imaginei que Recomeços teria um retorno tão bom, e fico muito feliz com isso.
É uma fanfic que surgiu de uma necessidade minha de amadurecer a escrita, de explorar outros recursos, um pouco mais de drama, e um outro cenário que não fosse Hogwarts ou a Guerra em si.
E o Severo e a Hermione são personagens muito incríveis e complexos que certamente merecem o desdobramento e o reconhecimento que as fanfics dão a eles. Na minha cabeça, se o Severo não tivesse morrido, tenho certeza absoluta que a Hermione se dedicaria a cuidar dele, e quem sabe o que sairia desse contato? Duas pessoas tão inteligentes como eles, tão parecidas, certamente seriam como um ímã um para o outro.
Enfim, espero que gostem deste! Muitas emoções estão por vir ♥



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Nenhuma palavra foi dita quando Severo arrancou com o carro e os levou até a sua casa. Hermione queria questionar, mas do que adiantaria? Havia muita coisa não dita entre eles, e era melhor que ficasse assim. Por enquanto.

Ela mal se deu conta do caminho, totalmente perdida nos próprios pensamentos e na sensação de alívio que aos poucos começava a correr dentro dela.

Severo parou o carro em frente à casa e abriu a porta para ela como o verdadeiro cavalheiro que era, ajudando-a descer enquanto segurava a sua mão. Aquele choque que sempre a percorria quando suas peles se tocavam estava lá, eletrizando cada centímetro do seu corpo.

Eles caminharam em silêncio até a sala, onde ele acendeu a lareira com um feitiço não verbal. Ela teve aquele sentimento estranho novamente ao vê-lo num ambiente tão comum quanto um pequeno e charmoso chalé francês. Era estranho ver um mago tão poderoso, que alguns anos antes andava pelos corredores de pedra de um castelo esvoaçando a enorme capa preta, exercendo domínio e presença onde quer que fosse, e agora... em calças pretas simples de linho, blusas brancas de botão, fazendo coisas mundanas como acender a lareira.

Ele a olhava de uma forma que parecia refletir seus próprios pensamentos.

— Bem – ele disse com a voz trêmula – Fique aqui e se aqueça no fogo. Vou preparar o chá.

Hermione fez o que ele pediu, agachando-se em frente a lareira. Suas roupas ainda estavam úmidas porque ela sequer havia pensado em usar um feitiço para se secar. Suas mãos estavam quase roxas de frio, e ela desejou desesperadamente por um banho. O que ela estava fazendo aqui? Ela poderia ter ido para a pousada, onde poderia ter se recomposto, evitando ficar ainda mais vulnerável na frente do único homem em que ela queria mostrar fortaleza. Mas então... a perspectiva de chegar num quarto vazio que nem era dela a deprimia profundamente.

Severo voltou com duas xícaras de chá e uma chaleira, colocando-as sobre a mesa central. Então puxou a poltrona do canto esquerdo e trouxe para perto da lareira. 

— Como você está? – ele perguntou suavemente.

— Com um pouco de frio ainda. Com tudo o que aconteceu eu sequer me lembrei de secar as roupas.

Ele apenas acenou a cabeça, gesticulando para as xícaras. – Tome um pouco de chá, vai ajudar. Você deveria subir e tomar um banho. Não tenho nada para você se trocar, mas as minhas roupas funcionaram da última vez.

— Eu agradeço, mas provavelmente deveria voltar para a pousada. Estou novamente impondo a minha presença aqui na sua casa em menos de duas semanas. – ela tentou rir, passando as mãos pelo tapete persa para tentar se distrair do escrutínio dele.

— Você pode voltar pela manhã.

O tom de voz dele não dava nenhuma margem para discussão, e ela não tinha muita escolha nesse arranjo. O mundo ainda parecia estar caindo lá fora, com vários clarões no céu. Voltar a pé seria idiotice. Ela também não estava forte o suficiente para uma aparição, então... não havia muito o que pudesse fazer além de ceder. E aquela sala era tão convidativa. O calor do fogo, a chuva batendo na janela, o tapete macio sob as suas mãos, o cheiro delicioso de um chá que ela não reconhecia no ar. Ela fez uma anotação mental para descobrir depois qual era.

Ele pareceu pescar os seus pensamentos enquanto ela olhava para a xícara em suas mãos com uma expressão de curiosidade quando falou. – É o chá de baunilha Dammann. Uma das minhas poucas indulgências.

— Aquela marca que existe desde mil setecentos e alguma coisa? – ela perguntou, surpresa.

— 1692, para ser exato.

Ela ofegou. – Acho que vale cada euro gasto.

Ele riu suavemente. – Concordo. Mas eu não tomo todos os dias, só em ocasiões especiais ou em dias que – ele procurou bem as palavras – uma força externa é necessária para enfrentar o dia. Ou encerrá-lo.

— Presumo que seja o último caso?

Ele deu de ombros. – Talvez. Mas também é uma ocasião especial. Não é uma ocorrência comum ver uma criança chegando ao mundo. Mesmo que nasçam milhares todos os dias não acho que verei outro parto.

Hermione sorriu, mas as implicações de sua resposta eram claras. Ela quis perguntar se ele nunca cogitou refazer a vida, recomeçar com uma outra mulher, ter uma família... Mas quem ela era para se intrometer desta maneira?

— Você encarou tudo muito bem, professor Snape. – ela provocou, tentando dissipar a tensão no ar.

Ele bufou. – Se você diz.

— Eu digo – ela se levantou alegremente, colocando mais chá nas xícaras – Você entregou as toalhas exatamente no momento certo.

Ele agradeceu, tomando um longo gole enquanto seu olhar se perdia nas chamas. – Posso fazer uma pergunta?

Hermione sentiu o estômago gelar. Se ele a perguntasse novamente sobre o porquê dela estar ali, ou sobre o dia em que o caldeirão explodira, ela não conseguiria mentir. Não estando tão física e emocionalmente desgastada. – Você pode – ela finalmente decidiu responder, a sugestão de um sorriso brincando em seus lábios para mascarar sua apreensão – Só não posso prometer responder.

— É justo. Por que você não terminou o seu curso de medibruxa?

Hermione suspirou aliviada. Não era uma pergunta fácil, mas ela podia falar sobre isso.

— Porque ser uma medibruxa exige bastante em dias e horas de trabalho. Há longos plantões, finais de semana, emergências. O estudo nunca para. É o equivalente para os médicos trouxas. Toda a profissão é importante, toda profissão tem os seus prós e contras, mas o Ron achava que sendo medibruxa eu iria estar sempre trabalhando.

Ela parou por um momento. Podia não ser pergunta mais difícil, mas ainda era um assunto delicado. – Ele queria começar uma família, e achava que se eu aceitasse o emprego no Ministério poderíamos ter isso mais rápido. A morte do Fred mexeu muito com toda a família Weasley. Cada um buscou conforto em alguma coisa no pós-guerra, e Ron se dedicou a começar uma família. Não posso culpá-lo.

Severo tinha muitas coisas a dizer, especialmente que ela podia, sim, culpá-lo, mas ficou em silêncio.

— E, bem, depois de... – ela deixou a frase no ar, mas Severo entendeu – eu não podia sequer considerar voltar àquele ritmo. Me sentia tão culpada... E embora ninguém me dissesse isso claramente, podia ver no rosto de algumas pessoas que eles pensavam a mesma coisa. Era demais.

— Você pode voltar agora. A universidade bruxa de Marselha é uma das melhores da França, talvez da Europa. Tenho certeza que a Madame Pomfrey ficaria mais do que feliz em aceitá-la como assistente depois.

— Você quer mesmo me despachar, não é? – ela sorriu, agradecida por conseguir mudar de assunto.

Au contraire, mademoiselle. Na verdade, já que tocamos no assunto, quero te fazer uma proposta.

Hermione se esforçou para respirar, sentindo o coração quase saltar do peito. – Qual proposta?

— Quero que reconsidere seu pedido de demissão, e que aceite ser a minha sócia na Botica.

...

— Sócia?

— Sim, sócia.

— É algum tipo de brincadeira? – ela se levantou tão rápido que quase derrubou a xícara – Por que eu não acho a menor graça.

— Eu pareço estar me divertindo, Granger? – ele se aproximou, fixando-a com olhos tão escuros quanto a noite lá fora. Sua voz estava baixa, naquele tom comedido e rouco que a invadia completamente. Mas hoje ela estava muito brava para se permitir ser dominada por esse efeito.

— Você mal me suportava aqui até, não sei, ontem à noite? E agora você simplesmente me vem com uma proposta de sociedade e espere que eu acredite? Por favor.

Ela estava furiosa.

— Eu estou falando sério, Granger. – ele estava começando a ficar impaciente – Li o seu relatório. As 394 páginas. Tudo que está lá eu concordo.

— E você está me propondo sociedade por um relatório bem feito? Eu não sou idiota, Snape.

— Você é inacreditável. Qualquer pessoa aceitaria uma proposta como essa dando pulos de alegria, e você está gritando comigo porque eu confio no seu trabalho e sinto que ele merece uma proposta a altura!

— Eu só quero entender o que mudou! Até semana passada você mal suportava olhar para mim, e agora está considerando trabalhar comigo como uma igual?

— Você acha o que? Que eu tenho uma intenção oculta para mantê-la aqui?

— Eu não sei, Snape. Me diga você.

— Me diga você. – mais um passo e ele estava praticamente pairando sobre ela – Eu tenho muito mais direito de perguntar isso do que você.

— Já expliquei os meus motivos para ter vindo aqui.

— Então pronto. Estou disposto a encerrar este tópico aqui, Granger. Se você disser sim, vamos prosseguir como colegas de trabalho dedicados a manter a botica crescer.

— E se eu disse não?

— Se você disser não ainda poderá ser funcionária, mas dado o seu prognóstico no relatório a loja não iria muito longe e eu não conseguiria pagá-la por muito mais tempo.

— Não chegaria a isso e você sabe. – ela o interrompeu – Eu só quis mostrar o pior cenário.

— Não, você está certa. Poderia chegar a isso. Eu gosto de fazer Poções, mas admito que a parte administrativa não faz o menor apelo.

— E se eu ainda quiser a demissão?

Um lampejo de surpresa pareceu passar pelos seus olhos, mas foi tão rápido que Hermione pensou estar vendo o que ela queria ver. – Se você ainda quiser a sua demissão, vai cumprir os últimos três dias restantes e seguiremos caminhos separados. Bem simples.

— Bem. – ela murmurou, se sentindo um pouco estúpida por ter explodido.

— Não precisa decidir agora. Não tinha a intenção de tocar no assunto depois desse dia exaustivo.

Ela acenou, grata por poder ter um tempo para pensar. Ela viajara até a França para contar a verdade, e estava cada vez mais envolvida.

— Suba e descanse. Amanhã voltamos a falar sobre isso.

— Eu não poderia ficar com o seu quarto de novo, Snape. Vou ficar aqui no sofá.

— De jeito nenhum. – ele descartou.

— Sério, não quero impor.

— Hermione.

Ele a cortou novamente, e Hermione suspirou. – Tudo bem. Obrigada. Eu vou... subir então. Amanhã conversamos.

Severo assentiu, indicando a escada. – Você sabe onde ficam as toalhas. Vou deixar uma camisa em cima da cama.

— Você quer tomar um banho antes?

— Vou logo depois de você. Suas roupas ainda parecem estar úmidas, vai acabar ficando doente.

Ela concordou, exausta demais para discutir, e praticamente se arrastou escada acima. A cada degrau ela podia sentir o peso do olhar dele nas costas, uma sensação de formigamento percorrendo toda a sua pele.

O mais estranho foi o quão familiarizada ela parecia com tudo. Hermione sabia onde estavam as toalhas, o sabonete, a escova de dentes sobressalente no armário. Claro que da última vez ela estava pouco consciente dos detalhes a sua volta, mas parecia que em algum nível sua mente se lembrava de tudo, até do que ela mal se dava conta de saber.

Mas desta vez, ela tomou o seu tempo para memorizar cada detalhe do banheiro, procurando por pistas do homem imprevisível lá embaixo. Ela reparou na escova de dentes verde, na escova de cabelo dentro do armário, numa camisa surrada pendurada atrás da porta e até nos chinelos ao lado da banheira. Era tão... íntimo.

Decidindo que já havia se intrometido demais, ela tirou a roupa fria do corpo e estremeceu. Olhando no espelho, ela parecia exausta, mas desta vez havia um brilho na sua pele que ela não via a anos. Ela estava cansada, sim, mas tinha vida em sua alma e era isso que importava.

Seu cabelo, no entanto, era um desafio a parte. Estava negligenciado, e amarrar os cachos num elástico velho certamente não melhorava a situação. Ela tentou desembaraçar os fios do coque apertado e mal feito e gemeu de dor quando o elástico voltou com toda a força na sua nuca. Ficando impaciente, ela lançou um feitiço suspirou aliviada quando a dor no seu couro cabeludo começou a passar.

Olhando ao seu redor, ela procurou por algum produto capilar que pudesse tornar a sua situação minimamente decente e não encontrou nada além de sabonetes sólidos.

Hermione estalou a língua, murmurando para si mesma. – E você é dono de uma loja para produtos de beleza.

Decidindo que era melhor que nada ela levou a pequena barra próximo ao nariz, envolvendo-se no cheiro maravilhoso de capim-limão. Tinha o cheiro dele. Num lampejo de fantasia, Hermione se imaginou cheirando a curvatura do pescoço dele, tocando a pele sensível logo abaixo na orelha e mordiscando levemente.

O pensamento veio com tanta força que ela teve agarrar a pia, se segurando para não cair. Não parecia uma cena imaginada, parecia quase uma... lembrança. Mas, claro, seria impossível. O que a levava inevitavelmente para a proposta que ele fizera. Sócia. Hermione não entendia como ela foi de potencialmente desempregada para sócia de uma pequena empresa de sucesso em tão pouco tempo, e tudo isso vindo do homem que ela...

— Chega, Hermione. Pare já com isso. – ela disse para si mesma, com raiva. Com gestos bruscos, ela estendeu a roupa no box e lançou um feitiço de secagem, dobrando-as logo em seguida. Ela tomou um banho rápido, tentando não se concentrar tanto no cheiro do sabonete, mas era impossível quando o vapor espalhou ainda mais o perfume cítrico.

Ótimo. Agora ela não apenas sentiria o cheiro dele do ar, mas o carregaria com ela. Ela não cansava de se torturar?

E novamente aquela proposta maluca a dominou. Ela deveria aceitar? Deveria agradecer e recusar? Ele tinha um motivo oculto? Era genuíno? Hermione estava perdida, precisando desesperadamente de um conselho.

— E de oito horas de sono.

Recolhendo as roupas e os sapatos, Hermione espiou da fresta da porta para saber se era seguro saltitar alguns passos até o quarto e, quando não viu nenhum sinal dele, correu com tudo pelo corredor. Quando ela estava preses a cruzar o limiar da porta em segurança, enrolada apenas em uma toalha, ela bateu o rosto em alguma coisa macia, mas sólida, e caiu.

— Granger! – ele exclamou, chocado, ao vê-la caída no chão do corredor.

Hermione apertava a toalha em volta do corpo com força, tentando preservar um pouco da dignidade que ainda restava.

— Você está bem? – ele perguntou, ajudando-a se levantar.

— Sim, eu... sim. – respondeu Hermione, a pele tão vermelha de vergonha que parecia ter sido escaldada.

Por vários segundos eles ficaram parados na frente um do outro, lutando ao máximo para desviar o olhar. Hermione queria sair correndo dali agora mesmo, e de preferência nunca mais olhar para ele.

— Eu posso... – ela finalmente conseguiu emitir algum som.

— O que?

— O quarto. – O seu quarto.

— Claro. Peço desculpas.

E então começou uma dança ainda mais constrangedora, em que Severo ia para a esquerda ao mesmo tempo que Hermione, e quando ela ia para a direita, ele a seguia. E de novo e de novo, quase uma coreografia de valsa.

— Merlin. – Hermione exalou uma risada nervosa. Ela sempre fora uma péssima dançarina de qualquer maneira.

Severo decidiu assumir o controle e colocou as duas mãos nos ombros nus dela, guiando-a para dentro do quarto como se estivessem numa porta giratória trouxa. O toque dele queimava em sua pele, disparando as sensações mais intensas por todo o seu corpo.

Ela queria fechar a porta imediatamente, mas pareceria rude visto que seria ela o despachando do próprio quarto. Incerta do que fazer a seguir enquanto ele ainda parecia enraizado no lugar – certamente chocado com o quão idiota ela era, Hermione pensou – ela decidiu abaixar para pegar as roupas que haviam caído junto com os seus sapatos e a varinha. Mas ele teve a mesma ideia, abaixando-se em sintonia enquanto as suas cabeças colidiam no meio do caminho.

— Merda!

— Droga, Granger!

— Eu sinto muito! – ela gritou de volta, completamente chocada com aquela situação totalmente ridícula.

— Se esse dia não acabar agora provavelmente vai nos matar. – ele resmungou, massageando a testa, depois se abaixou novamente, com cuidado, e pegou as coisas dela do chão.

— Obrigada. – Hermione murmurou um agradecimento, se recusando a olhar para ele enquanto tentava pegar tudo com uma única mão. E então, quando finalmente os seus olhares se cruzaram, ela não aguentou: começou a rir.

Severo a olhou em choque num primeiro momento, provavelmente achando que ela era completamente louca, mas logo em seguida começou a rir junto com ela. Sua risada era baixa e rouca, macia como veludo, quase como se pudesse tocar. E eles riram tanto que suas bochechas começaram a doer depois de um tempo. Hermione queria preservar o momento, esses segundos, num lugarzinho bem seguro na sua mente. E no seu coração.

— Me desculpe, é que-

— Esse dia beirou o insano. – Severo completou.

— Exatamente. – ela concordou, olhando para o rosto dele. Sua expressão era de puro contentamento, e eles ficaram presos nesse olhar, nesses poucos segundos, desejando que uma vida inteira coubesse ali. – Eu provavelmente deveria entrar.

Severo piscou como se saísse de um transe, e sua voz estava rouca quando ele falou. – Claro, claro. Descanse.

Ele se virou para sair, as mãos nos bolsos da calça de linho, os passos tranquilos, e o coração de Hermione doeu. Ela o queria ali, com ela, mais perto.

— Nos vemos amanhã? – ela gritou quando ele alcançou as escadas.

— Vou ser o homem em pé na cozinha fazendo o café da manhã.

Nesse momento Hermione quase deixou a toalha cair, estremecendo com o quão potencialmente íntima a frase soara. De todos os significados que essa frase poderia ter, ela queria o único que não poderia alcançar.

Finalmente ela fechou a porta do quarto, caindo sobre ela enquanto lutava para acalmar seu coração teimoso que insistia em bater forte por um amor impossível. Com o pouco de energia que ainda restava, ela caminhou até a cama e sentou, tentando processar todos os acontecimentos do dia.

O último pensamento em sua cabeça antes de se entregar ao sono foi que ela tinha lágrimas nos olhos, mas que dessa vez eram de pura alegria.

...

Como se Severo não tivesse material suficiente para povoar os seus sonhos, Hermione Granger havia novamente contribuído mais.

Ela era uma força da natureza, tirando-o totalmente do rumo. A força que ele vira nela hoje... Ele sabia que ela era forte, claro. Seria um idiota se não soubesse. Mas hoje ela se superara. Severo se encolheu pensando na quantidade de vezes em que fora injusto com ela. Como professor e como chefe. Ele não queria mais isso. Não precisava mais disso.

Enquanto ele girava o copo de firewhisky na mão, ele pensava no quão parecidos eles eram. Ambos deslocados, ambos divididos entre dois mundos, tentando desesperadamente se encaixar e nunca conseguindo, sempre fadados a serem metade de um mundo e nunca completos. Mas exatamente onde eram parecidos, eles se distanciavam: ela era muito melhor que ele. Onde ele fora rancoroso, ela foi magnânima. Onde ele foi covarde, ela foi corajosa. Onde ele foi frio e calculista, ela fora amorosa e bondosa. Empática. Onde exatamente ela se perdera ele não sabia. Pelo menos não até aquela noite. Sua necessidade de agradar aos outros, de ser perfeita, a fez sacrificar muito de si, e então... a perda do bebê.

Severo havia perdido muito na vida, a maioria por sua própria culpa, mas um filho... Ele não poderia imaginar. Ele viu a dor e a culpa refletidos nos seus olhos castanhos, a mesma dor que ele carregara por mais de vinte anos, e decidiu que não poderia deixá-la estragar a própria vida. Porquê ele se importava? Severo não sabia. Ele estava agindo com o coração, torcendo para que fosse motivo o suficiente.

A proposta de sociedade, no entanto, o surpreendeu. Mas quanto mais ele argumentava com ela a respeito, e quanto mais pensava no assunto, mais certo ele se sentia. A última vez que ele havia se sentido tão certo sobre uma coisa foi quando ele decidira vender a casa decrépita na Rua da Fiação e se mudar para a França, e ele nunca se arrependera.

Ele esvaziou o copo num único gole e relaxou na poltrona em frente a lareira, tentando descansar. Mas quando ele fechou os olhos, as imagens que inundaram a sua mente eram os olhos castanhos da mulher dormindo no andar de cima, a poucos metros dele, mas perto demais do seu coração.

...

Hermione desceu as escadas para encontrar Severo exatamente do jeito que ele disse que estaria: em pé na cozinha terminando de colocar a mesa do café da manhã.

— Parece delicioso. – ela comentou, observando os movimentos meticulosos dele.

— Bom dia. – ele murmurou, indicando a cadeira – Café?

— Por favor.

— Chaussons aux pommes?

Hermione quase engasgou com o café ao ouvi-lo falar novamente num francês perfeito. A voz dele, claramente ainda rouca de sono, num contexto de café da manhã, a afetou profundamente.

— É claro. Sim, por favor.

Ele a serviu com um pequeno pão triangular caramelizado, completamente alheio ao seu afetamento. O cheiro de maçã invadiu os seus sentidos e seu estômago reclamou de fome.

— Bem, Granger, vamos aos negócios. Você pensou sobre a proposta que fiz a você?

Hermione respirou fundo, cruzando as mãos sobre a mesa. – Sim, pensei.

— E então?

— Decidi aceitar a oferta, senhor. Mas eu tenho algumas condições.

— Claro que sim. – a sombra de um sorriso brincou no canto da boca dele – Muito bem, diga.

— A Botica é sua, claro, mas eu gostaria de ter liberdade criativa. Se vai me deixar a frente da parte administrativa, quero poder trabalhar com a sua confiança. Não estou dizendo que quero decidir sozinha, mas quero que as minhas opiniões sejam levadas em conta.

Severo sabia que alguma condição nesse sentido surgiria, e era perfeitamente razoável, claro. Mas para um homem como ele, que apenas recentemente conseguir tomar as rédeas da própria vida, seria difícil dividir o controle novamente. Ele suspirou, sentindo que uma dor de cabeça de aproximava. – Tudo bem. Façamos assim: quando tiver uma ideia, você faz um relatório ou uma apresentação, e nada formal ou tão... extenso quanto o último relatório – Hermione deu um sorriso tímido, corando – e eu prometo discutir civilizadamente até que cheguemos a um acordo.

— Bem, é- ela estava surpresa, para dizer o mínimo – claro, é exatamente o que eu gostaria.

— Mas se você vier com propostas absurdas do tipo: colocar uma rena em tamanho real para enfeitar a loja durante as festas, pode esquecer.

— Ah, puxa! – ela fingiu descontentamento – Era exatamente o que eu tinha em mente.

— O sarcasmo não combina com você, Granger – seu tom era seco, mas seus olhos brilhavam divertidos.

Eles discutiram por quase duas horas, Hermione se tornando mais e mais empolgada a medida que suas ideias eram recebidas não com desdém, mas aceitação e interesse genuínos.

Números foram discutidos, lucros, impostos, agendas de datas comemorativas, preços, descontos, listas de fornecedores e até um possível funcionário, que eles decidiram adiar a contratação quando estivessem mais tranquilos financeiramente.

— Pensei em fazermos um brainstorming de Natal.

— Natal? Estamos em outubro, Granger.

— Sim, mas as lojas começam a enfeitar muito cedo. As pessoas querem entrar no clima natalino o quanto antes.

— Posso concordar com a... decoração de Natal, mas não antes do dia 1º de dezembro.

Hermione suspirou. – Você fala como se a decoração natalina fosse o pesadelo.

— O Natal é um pesadelo para quem trabalha no comércio, Granger.

— E é também o período em que as vendas disparam. Em algumas lojas chega-se a vender quase 30% de todo o rendimento anual.

Ele resmungou. – Independente disso. Se eu pudesse tirava férias e só voltava em janeiro. E talvez agora que você-

— Nem pense nisso, nós dois seremos muito necessários aqui. E ainda temos que decidir a marca da loja, as cores e um nome. Vou pensar em algumas opções, conversar com alguns designers, e –

— Designers?

— São profissionais que criam projetos de comunicação visual. Pensam de que maneiras uma marca pode conquistar o consumidor, entre outras coisas.

Ele parecia levemente envergonhado com a pergunta, e só então Hermione se deu conta do quão alheio ele ainda estava do mundo trouxa. O universo bruxo era espetacular, mas as coisas demoravam a mudar. Os bruxos se orgulham das tradições, enquanto os trouxas se orgulhavam de evoluir rapidamente. Até ela teve dificuldades de acompanhar as tecnologias dos últimos cinco anos, então só podia imaginar o quão perdido ele deveria se sentir as vezes.

— Não se preocupe com isso. Vou cuidar desta parte, mas mostrar tudo para a aprovação.

Ela sorriu para ele enquanto se levantava para tirar a mesa, e eles seguiram num silêncio confortável até a pousada. Vez ou outra uma coisa era dita, nada muito específico ou importante, mas era bom. Havia um acordo tácito entre eles de cordialidade.

— Obrigada pela carona. – Hermione agradeceu da janela do carro.  

— Disponha.

— Te vejo em – ela olhou para o relógio no pulso – meia hora.

Severo acenou, depois pensou melhor. – E Hermione – ele a chamou, fazendo-a se virar na metade das escadas.

— Sim?

— Se você me apresentar uma marca com as cores da grifinória, pode esquecer.

Ele arrancou com o carro antes que ela tivesse a chance de responder. Sorrindo, Hermione balançou a cabeça enquanto entrava na casa, murmurando um idiota que não tinha nem um pingo de malícia, mas muito carinho.

...


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Notas finais do capítulo

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