O Forte da Caveira, era uma bela visão. A extensão de prédios, o céu azul acima, nas margens do Rio Shira. Os restaurantes sofisticados, o Palácio das Águas, com as enormes vidraças de vidro, que brilhavam fracamente com o sol da manhã. Era início de inverno, estava frio, mas não impedia a claridade daquele dia. Seu coração estava partido, mas o Mercado Nebuloso, sempre movimentado. Denzel observou a construção das docas afastarem-se cada vez mais, conforme remava na direção contrária do forte.

Ele criara uma vida ali.

E estava prestes a seguir outro caminho, abandonar aquele lugar... Trazia um sentimento que não sabia determinar. Tristeza? Ansiedade? Felicidade pela oportunidade que recebera? Era difícil definir.

― Não olhe tanto para trás, garoto. ― Darthurin deu batidinhas em suas costas, quando aproximou-se e colocou uma mão sobre seu ombro.

Denzel semicerrou os olhos castanhos e puxados, sacudiu os cabelos pretos e levou a mão tatuada até a nuca. A marca da ordem, um círculo com uma esfera no centro, na parte superior, combinava com os anéis dourados que utilizava, e os brincos nas orelhas. Lembranças de sua antiga profissão. De Senhor dos Ladrões, estrategista e comandante de uma das guildas que controlavam o Forte da Caveira, a um pirata.

― Sempre esperei por este momento. E agora... Sinto que estou deixando algo para trás. ― Observou o homem ao seu lado, enquanto remava. Darthurin era um lorde pirata, ou melhor, Lorde da Caveira no Forte da Caveira. Controlava todo o local, mas, desavenças antigas haviam o obrigado a abandonar o seu posto em terra, para voltar aos mares.

― E você está deixando. Essa é uma nova vida, garoto. Oh não, você tem vinte anos, já é um homem. ― O Lorde da Caveira apertou o seu queixo, obrigando-o a fazer um biquinho ridículo. Darthurin era um homem estranho, de olhos da cor do oceano, e cabelos compridos e bagunçados da cor das areias da praia. Sempre bem vestido, mas sempre cheirando a rum. ― Aprecie sua nova casa.

Denzel virou-se, deixando a costa do Forte da Caveira para trás.

O navio que os aguardava... Era simplesmente a visão mais incrível. A construção abissal, os mastros e velas erguidos, ancorado há mais de duzentos metros da costa. A bandeira preta que se erguia no alto, com um crânio desenhado, fazia jus ao nome: o Carcaça Negra. Um dos navios dos sete lordes de piratas, da Ordem de Ouro. Um sonho realizado. Deveria ter em torno de cinquenta metros quadrados, a madeira antiga e poderosa adornava aquela construção.  Um galeão, um navio antigo e poderoso. Equipado com trinta canhões em cada lado, uma belíssima arma para navegar naquele vasto oceano.

― Imagino que o Colossal seja tão espetacular quanto o Carcaça Negra

― Ah, meu querido... Certamente. Você verá o quanto é incrível, assim que recuperarmos.

Desde que o encontrara na sarjeta, batendo carteiras e roubando até mesmo do próprio Darthurin, o lorde pirata o acolhera. Conseguira inseri-lo entre os Carpa, a guilda dos ladrões. E desde então, Denzel tornara-se um subordinado a ordem que controlava o Forte da Caveira. E quando assumira o posto de Líder dos Carpa, após assassinar acidentalmente o seu antigo chefe, conseguira uma posição especialmente influente no Mercado Nebuloso. Ele construíra uma vida, ele fizera tantas coisas, e agora estava partindo.

Havia renunciado seu posto, passado o controle da guilda dos ladrões para o segundo no seu comando, um de sua confiança. Que certamente continuaria fazendo os membros prosperarem. Para poder aceitar a proposta de Darthurin: velejar ao lado de piratas, no Carcaça Negra, auxiliar o capitão do Colossal a encontrar o seu navio, raptado pela capitã do Maré Sangrenta. E então, assim que conseguissem cumprir tal missão, Denzel se tornaria o segundo no comando de Darthurin, e assumiria o controle do Colossal em nome do pirata.

― Vamos remar garoto, precisamos chegar no Carcaça Negra antes do meio dia.

Denzel balançou a cabeça, e ajeitou os cabelos pretos. O corte de cabelo, típico entre homens abastados de Porto Livre, cidade na qual fazia divisa com o Forte da Caveira, era uma ironia. Ele era um trapaceiro, um ladrão, um ladino e agora um pirata. Mas o cabelo raspado nos lados, com um degrade suave, e os fios compridos jogados para trás combinavam com o formato de rosto oval. E ele realmente se apegara.

Bom, eles certamente levariam pelo menos mais uns quinze minutos remando até o navio pirata ancorado, e Darthurin era a criatura mais exagerada que ele conhecia. Havia quatro pares de braços empurrando contra a costa do Rio Shira, e a velocidade estava adequada.

Denzel suspirou, quando vislumbrou novamente o enorme navio.

O Carcaça Negra.

Ele conheceria outro integrante da Ordem de Ouro, um dos sete capitães. Antes de partir para Ilha das Fadas, um território neutro, onde os demais piratas se encontravam eventualmente. Sair de Sidgar, era arriscado. Aquele continente, dominado especialmente por humanos, era selado pelo que ele descobrira ser chamado de Muralha Cintilante. Uma concentração de magia, que protegia Sidgar de ataques de outras terras. Que marcara o evento conhecido como Queda. E Denzel estava realmente espantado por nenhum soldado edesiano ter surgido no meio do caminho e impedido que aquele navio espalhafatoso ancorasse.

Mas todos aqueles fatos, ficariam no passado.

Uma vida nova.

Então ele remou.

*** 

Quando colocou os pés no navio, e vislumbrou o enorme convés, a sensação era de que estava no caminho certo. Ainda hesitante, mas seguindo. A movimentação dos marujos, passando de um lado para o outro, ajustando as velas e verificando o vento, empoleirados no mastro, não chegava nem perto nas pequenas expedições que fizera ao longo dos anos para a guilda dos ladrões.

Não, certamente, não poderia comparar.

Embora aquele trabalho servira como uma boa experiência.

E, no entanto, a visão de Edward Noire se aproximando, tomou toda a sua atenção. A enorme barba negra estava adornada por miçangas, que quando chegou mais perto, Denzel conseguiu identificar que eram feitas de ouro. Vestia-se como a grande maioria, botas, casaco pesado e a espada na cintura. Edward ajeitou o chapéu de cor vinho, com adornos dourados e fez uma reverencia, cumprimento Denzel e Darthurin.

― Senti saudades, meu amigo. ― Falou o capitão, antes de encarar o jovem ao lado, de forma curiosa.

Darthurin, compreendendo a necessidade de fingir um pouco de normalidade, tratou de tomar postura e apresentar.

― Este é Denzel. Assumiu a posição de Senhor dos Ladrões, após Durward Ferthman morrer. ― É claro que Darthurin não mencionaria o fato de que na verdade, Denzel matou acidentalmente o antigo chefe. Era um evento caótico. Embora tivesse suas vantagens. Embora quem poderia ter feito aquele trabalho, era outra pessoa.  ― Mas abdicou tal título, para unir-se a mim, nesta busca pelo Colossal. Denzel, este é Edward Noire, o Lorde Negro, capitão do Carcaça Negra.

Bom. Tirando o detalhe de que era como se Denzel estivesse diante de um tipo de herói, e que ele precisou conter a admiração absurda pelo pirata. A melhor resposta que poderia dar, era assentir. Edward era mais velho do que Darthurin, certamente, e a experiência transbordava em suas feições. Era um dos sete lordes mais temidos, provavelmente perdia apenas para a capitã do Maré Sangrenta. Além de possuir o Carcaça Negra, Edward Noire também era dono de mais quatro navios enormes, e já havia comandando em torno de trezentas pessoas, em seu auge. Era certamente um dos nomes que Denzel admirava.

― É um prazer conhecê-lo. Capitão Noire.

― Chame-me apenas de Ed, afinal, Darthurin é meu amigo e você, meu convidado. ― Denzel assentiu, tentando conter a empolgação.

Talvez ele estivesse parecendo uma criança, mas ele assentiu freneticamente novamente. Era estranho demais, imaginar que sua vida mudara completamente de um dia para o outro. Passara a noite anterior na companhia de Sora, uma guerreira de Temesia, e provavelmente a mulher que amara ao longo dos últimos anos. Mas haviam feito uma escolha, e cada um seguira o seu caminho. Ela poderia ter acompanhado, certamente, mas suas ambições eram diferentes. Então naquele momento, Denzel não tinha absolutamente nada mais a perder, a não ser, conquistar aquilo que sempre almejou.

Ser aceito na pirataria, ser reconhecido como um pirata, e talvez, um dia, ser um dos Sete Lordes de Ouro.