Faca de Bolso escrita por march dammes


Capítulo 4
Um ano no Inferno


Notas iniciais do capítulo

chegamos no quarto capítulo! agora faltam dois.
essa história também foi postada no spirit, sob o user pixieprince.
bora ler.



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As férias de inverno nunca parecem longas o bastante.

Pelo menos, esse foi o comentário mais apropriado que Baljeet conseguiu formular em resposta à observação sagaz de Buford Van Stomm em relação ao feriado.

O implicante, que por sua vez se empoleirava na grade do coreto, parecendo ter o dobro de seu próprio peso ao levar em conta o casaco acolchoado sobre os ombros, levou alguns segundos de abençoado silêncio para ponderar o assunto.

—Hum... -murmurou- Verdade. Mas são férias -pontuou, tal qual um gênio faria-, e poucas férias são melhores que nenhumas férias.

—Quanta perspicácia.

Buford amassou um punhado de neve e lançou-o em sua direção, ao que o punhado se desfez em pleno ar e choveu sobre suas botas de couro, deixando o chão de pedra úmido em seu entorno.

—Sem respostinha, nerd.

Baljeet se limitou a revirar o olhar. Voltou suas atenções para o livro sobre o colo, a caneta esferográfica cuja tampa ele já havia mastigado por completo, tentando fazer sentido das nomenclaturas em latim que preenchiam as páginas de seu caderno de biologia. Uma tarefa que demandava mais de sua força de vontade do que os doze trabalhos de Héracles, considerando a presença do bully e seus comentários imbecis, além dos sons irritantes de sua mastigação enquanto ele destruía um dos cachorros-quentes molhados da cantina, e isso ainda sem levar em conta de que eles estavam nos fundos da escola e fazia mais ou menos setenta graus negativos do lado de fora.

Bom, -1.8 °C, para ser exato.

A temperatura ideal para seus nervos irem à flor da pele.

Buford agora o perguntava o que ele planejava fazer durante o feriado. Sabe, puxando assunto, como uma pessoa normal faria. Como se o relacionamento deles não fosse qualquer coisa exceto normal.

Baljeet respondeu honestamente. Ele iria para casa como sempre, passaria suas férias como sempre. Não comemora o Natal – pois sua família não comemorava o Natal desde que ele tinha dez anos –, mente sobre a escola, exibe suas notas perfeitas e aguenta o resto calado.

—Eu sempre sou repreendido de alguma forma. Meus pais têm formas muito criativas de me dar um esporro.

Por um segundo, pelo canto do olho, Baljeet pensou ter visto algo passar pelos olhos verdes, algo que nublou a expressão de Buford só por uns instantes. Ressentimento? Raiva? Preocupação? Simpatia? Não soube dizer. Mas reagiu de acordo.

—Pare de fazer essa cara. -Grunhiu- É nojento.

Honestamente...talvez fosse uma coisa boa que as férias de inverno pareçam ser tão curtas.

O feriado acaba tão rápido quanto havia começado – as últimas semanas de inverno, contudo, parecem tomar seu precioso tempo. A neve derrete no gramado, as folhas das árvores começam a brotar, o coreto aos poucos deixa de estar enlameado o tempo todo. O sol tímido da primavera os forçou afinal a trocar seus uniformes para as camisas de manga curta, e Buford devia ser calorento como só, porque ultimamente havia abandonado as calças jeans e usava a bermuda azul-marinho com o emblema do colégio.

Baljeet havia notado isso sem querer, é claro. Não é como se ele estivesse olhando para as coxas expostas do bully quando ele se sentava de pernas abertas no gramado ou algo assim.

E talvez Buford tivesse ficado com saudade ou algo tão repulsivo quanto, pois suas implicâncias haviam se intensificado. Mastigava de boca aberta, tirava sua concentração com piadas estúpidas, roubava seus cadernos e os jogava longe, afrouxava sua gravata quando ele estava distraído...e Baljeet confirma que o odeia.

Com certeza o odeia.

O odeia muito, só isso, e nada mais.

Quando se odeia alguém tanto quanto ele odeia Buford, é normal pensar nessa pessoa o tempo todo.

Certo?

Certo.

Os exames do final do período não são tão difíceis de gabaritar quanto ele esperava, pondo em retrospecto que suas sessões de estudo vinham sendo consistentemente comprometidas pela presença de um porco gordo e inconveniente. Na verdade, e talvez fosse coisa de sua cabeça, Baljeet podia jurar que Buford estava lhe dando um pouco de espaço conforme a semana de provas se aproximava.

Não...provavelmente era coisa de sua cabeça.

Os resultados das provas trouxeram com elas toda a doçura embriagante de seu trabalho tendo sido recompensado, e como se parabenizasse a si mesmo, Baljeet se deu ao luxo de ignorar o bullying pelas semanas que antecederam as férias de verão. Não esperava que Buford aprovasse sua falta de interesse em suas provocações, e muito menos que a rotina dos dois fosse interrompida por Baljeet simplesmente não aparecendo no coreto, mas já não se importava mais com isso. O fim do ano escolar geralmente significava dois árduos meses confrontando a desaprovação crônica e constante nos rostos de seus pais antes que ele fosse mandado de volta para o campus quatro semanas mais cedo – mas, considerando o que o esperava na escola, Baljeet quase se permitia sentir falta de casa.

Quase?

Baljeet odeia estar em casa, mas odeia Buford mais ainda.

E Buford o odeia também.

Ótimo.

O cenário ideal:

Ódio mútuo.

...

Mas – que inferno!—, por que isso o incomoda tanto?

Baljeet mal apercebeu-se dos 104 dias de férias que passaram por ele como um trem. Mais surpreso ficou, ainda, ao se dar conta de que passara todos eles na companhia dos pais.

Talvez estivesse quente demais. Talvez estivesse quente demais para ele se manter alerta para com seus arredores.

O início do ano letivo significa seu retorno aos cantos mais remotos do campus, onde mastigava o filtro do cigarro aceso distraidamente, a fumaça fina despistando qualquer outro estudante que sabia bem que ele era o único cara naquela escola que tinha acesso a cigarros. Em seu isolamento, podia estudar em paz, embora ainda arisco, e não precisava se preocupar com algum gigante sem cérebro o pegando no flagra.

Esse era seu cotidiano antes de Van Stomm se meter em sua vida, pelo menos.

Considerados os pequenos ajustes em suas sessões de estudo, o único conforto de Baljeet era saber que enquanto estivesse aguentando o bullying inescapável do sardento, seu segredo estava seguro com ele.

É apenas um instinto de sobrevivência, pensou ele. Buford é grande demais para mexerem com ele, de qualquer forma.

E não era como seu tudo fosse miséria e sofrimento. Afinal, esse era seu terceiro ano que começava – apenas mais um ano, mais doze meses e ele se veria livre de Buford, livre daquela escola particular, das regras, dos monitores, dos colegas estúpidos...livre de Buford.

Ele se formaria com honras. Seria o primeiro de sua classe. Agarraria seu diploma como um colete salva-vidas, se inscreveria na faculdade de sua escolha e... nunca mais veria Buford de novo.

Ele não...queria isso.

Não é como se ele gostasse das implicâncias. Não é como se todas as vezes que Buford bagunça seu cabelo, desfaz seus cadarços ou o puxa pelo cós das calças ele sentisse que quer mais. Na verdade, todos os xingamentos e deboches e respostas atravessadas o deixavam positivamente louco. Buford era barulhento, inconveniente, irritante, tudo o que Baljeet odiava sobre os valentões que habitavam aquele lado do muro e mais, ele ainda tinha aquela aura relaxada de quem sequer pensava no futuro, de alguém que não planejava como Baljeet o fazia, que não tinha ambições e sonhos como Baljeet os tinha, alguém que não merecia estar ali.

E ainda Baljeet o entretinha.

Ainda o divertia como um arlequim.

Ainda gastava seu tempo com ele.

Porque Buford tinha um segredo seu nas mãos, certo? E sua mãe o havia ensinado a não brincar com fogo, e Baljeet acatava, respondia às provocações e rebatia os comentários sarcásticos, entretendo o gênio implicante de Buford, fazendo-o sorrir com escárnio, lhe arrancando risadas baixas ou gargalhadas estrondosas, mas nunca honestas.

Buford o odiava. Baljeet o odiava de volta, na mesma medida.

Mas, por vezes, se pegava desejando que Buford fosse um pouco mais direto sobre isso.


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