Faca de Bolso escrita por march dammes


Capítulo 3
Trato é trato




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796015/chapter/3

Se Baljeet soubesse das consequências, nunca teria se descuidado.

Se soubesse que seu segredo escapando por entre seus dedos como areia da praia fosse lhe causar algo mais doloroso do que uma surra, ele nunca teria se descuidado.

Mas, bem, agora a merda já tá feita, né?

Baljeet suspirou, exasperado, e cruzou as pernas em xis, curvando-se sobre seu livro como se tentasse se esconder dentro dos próprios ombros. Outra bolinha de papel acertou-o em cheio na nuca. E mais uma. Ele respirou fundo e controladamente, contando até dez...e sentiu mais um projétil contra seu pescoço assim que chegou no sete.

Perdeu a paciência. Virou o corpo bruscamente, pegando o responsável de surpresa.

—Dá pra parar!?

Buford sorriu com malícia.

O implicante grandalhão e sardento estava sentado na grama assim como ele, recolhidos ambos aos fundos da escola, Baljeet com o nariz enfiado em seus livros didáticos e anotações das aulas e Buford esticado em uma posição despreocupada, eventualmente arrancando folhas de um caderno que não pertencia a ele, amassando-as em bolinhas e arremessando-as em Baljeet.

Diabos. Se soubesse que estaria preso em um trato com Buford Van Stomm, ele definitivamente não teria se descuidado.

—Você sabe que não, nerd—Buford retrucou, frisando a provocação.

Baljeet trincou os dentes e voltou suas atenções aos estudos. Mal virou a página, sentiu uma bolinha passar de raspão por sua orelha, agitando brevemente seus cachos rebeldes.

—Hah! -riu, olhando por cima do ombro- Você errou.

Buford deu de ombros em resposta.

—Faz parte.

O sorriso de Baljeet se desfez lentamente. Franzindo a testa, bufou e voltou a ler.

Buford não era como os outros palhaços naquela escola para delinquentes – não perdia a paciência tão facilmente quanto outros grandalhões sem cérebro como ele – e, de certa forma, sua natureza relaxada e de quase bem-aventurada ignorância deixava um sabor amargo na boca de Baljeet.

Era como se, caso engajassem em um combate físico, Buford fosse segurá-lo ao invés de atracar-se com ele. Como se, ainda que pudesse aleijá-lo, não escolheria fazê-lo em qualquer que fosse a situação. E essa possibilidade deixava Baljeet louco.

Veja bem, Baljeet não gosta de ser subestimado. Nem um pouco, na verdade. Sua estatura e massa corporal podem não ser grande coisa, mas ele traz um tremendo orgulho por ser tão ágil quanto é, por seu raciocínio e reflexos rápidos, que o ajudaram a sair – quase— ileso de todas as brigas.

Baljeet não arrumava tantas brigas só por desencargo de consciência. Era uma forma de estabelecer uma certa dominância sobre os demais alunos naquela escola, cada valentão que caía por suas mãos era um aviso, uma mensagem que dizia ei, esse cara é perigoso, apesar de tudo.

E o fato de Buford não pegar pilha como ele queria, não revidar suas ofensas como ele queria...Baljeet queria derrubá-lo na grama e desferir um soco para cada risadinha debochada que ele aguentava quieto.

Sabia que não era fácil assim, no entanto. Afinal, trato é trato.

—Já tá perto de acabar, nerd? -atrás de si, Baljeet o ouviu deitar-se na grama ruidosamente, amassando o capim sob todo o seu peso- Vou morrer de tédio aqui.

—Então morre. -Respondeu, seguido de um suspiro- Você não precisa me seguir até aqui. Porra, não precisa nem ficar aqui. Você fica porque é insuportável.

Buford ergueu o indicador como se tivesse um ponto importante a levantar.

—Correção: eu fico porque você é o meu nerd —sorriu com escárnio e uma ponta de orgulho, cruzando os braços atrás da cabeça como um ponto de apoio-, esqueceu? E eu não quero perder nem uma única chance de te encher o saco.

Baljeet revirou os olhos.

—Certo. -Estalou a língua, continuando em tom de sarcasmo- Tinha esquecido.

A risada alta e estrondosa de Buford era quase tão irritante quanto suas risadinhas contidas.

—Eu não vou te dar nem tempo de esquecer, nerd.

E chutou-o entre as costelas.

As semanas se arrastaram, excruciantes, e os curtos intervalos de paz durante os horários livres em que ele se recolhia para algum canto remoto do campus e abria seus cadernos de anotações, confortando-se no raciocínio sólido da álgebra e as teorias palpáveis da física eletromagnética, haviam se tornado a pior parte de seus dias. Em vez do silêncio quebrado apenas pelo ruído do grafite contra o papel, ele tinha agora de suportar os comentários ácidos de Buford, suas provocações, seus hábitos grotescos, suas risadas desonestas que faziam seu sangue borbulhar.

Um dia desses, sua ira ia subir à cabeça e ele lhe quebraria os dentes da frente.

Até lá, permitiria a si mesmo revidar o bullying com rosnados e insultos.

De fato, foi em uma terça-feira nublada particularmente estressante que Baljeet disse que o odiava, em voz alta, pela primeira vez.

Sua presença é desagradável como sempre, mastigando de boca aberta as jujubas de um pacote pela metade contrabandeado de algum lugar além dos muros do internato. Baljeet gostaria de dizer que não se importava com Buford sequer lhe oferecendo uma, mas seria mentira. Por sorte, Baljeet é um bom mentiroso.

—Aí.

Vira a cabeça em sua direção com um murmúrio distraído escapando seus lábios. Ao que seus olhos encontram os de Buford, verdes e faiscando de forma arteira, o valentão abre um sorriso de canto, erguendo a mão direita fechada.

—Pega.

—O qu—

Baljeet abre a boca para questionar a “ordem”, mas seus reflexos o obrigam a cerrar os olhos quando uma jujuba é lançada na direção de seu rosto, batendo em sua testa e quicando de seu livro para o solo.

Buford diverte-se com a cena, Baljeet usando a ponta da gravata para afagar a área onde foi acertado, incomodado pela sensação.

—Ooh, não! -Buford desdenha, em um tom de falso conforto- Concentrado demais pra pegar uma jujuba, nerd? Bom, tanto faz -ele dá de ombros-, sobra mais pra mim.

—Isso não foi exatamente justo -Baljeet retruca.

Buford parece ponderar por alguns segundos.

—Tem razão. -Ele busca dentro do pacote por mais um dos doces em miniatura, segurando-o entre o indicador e polegar- Que tal agora?

Baljeet espera que, desta vez, ele consiga lançar-se a tempo de pegar a jujuba no ar. E então imediatamente se repreende por ter tido esperança quando a jujuba faz uma elipse sobre sua cabeça, tendo sido lançada tão longe que era fácil deduzir que Buford não tinha nem tentado jogá-la para ele.

O bully explode em risadas retumbantes, encostando-se no pinheiro atrás de si e tirando do pacote um punhado de jujubas, deliciando-se com a expressão – provavelmente – frustrada estampada em seu rosto naquele momento.

Buford enche a boca de jujubas e mastiga de boca aberta propositalmente, fazendo Baljeet estremecer contra sua vontade, enojado com a visão tão profunda da garganta de Buford que ele pudera quase ver seu esôfago. De repente, ele não queria mais comer jujubas.

—Você come como um porco.

—Só perto de você. -Buford devolve na mesma moeda, ajoelhando-se na grama e se curvando para perto dele, apanhando de seu colo o caderno aberto de química- Não entendo nada desta merda. -Ele murmura, desnecessariamente, e, segurando uma das páginas com uma mão só, deixa que o peso do caderno a arranque das espirais e amassa a folha no punho cerrado, o caderno estatelando-se no solo.

Baljeet retesa a mandíbula, contendo a raiva dentro da própria garganta, tendo que ordenar mentalmente aos seus punhos que não voassem na direção daquele babaca e lhe entortassem o nariz. Ele estala a língua e recupera o que sobrou do caderno, puxando-o de volta para o colo.

—Eu te odeio.

—Estamos quites, então. -Buford dá de ombros e sorri, um daqueles sorrisos disfarçados de pura maldade- Volta a estudar aí. Aproveita e faz o meu dever de casa também -ele puxa a mochila de perto do pinheiro e joga-a contra seu peito-, tenta ser útil, nerd.

Baljeet trinca os dentes e resmunga um protesto. Mantém a mochila de Buford consigo, no entanto, porque a única coisa pior do que suportar suas provocações em seu único momento de paz seria ter seu segredinho na boca do povo antes que conseguisse se formar com honras e sair daquele buraco.

Odiava Buford. E, bom...pelo jeito ele o odiava também.

Havia sido uma resposta bem clara, não é?

De certa forma, essa não era a resposta que Baljeet queria.

Lambeu o gosto agridoce dos lábios e afastou de sua mente os pensamentos desnecessários.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

alo fantasmas



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Faca de Bolso" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.