Faca de Bolso escrita por march dammes


Capítulo 2
Na quarta-feira, chove


Notas iniciais do capítulo

segundo capítulo, agora só faltam mais quatro :^)



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—Você não fuma de verdade, né?

Os olhos cansados de Baljeet se viram preguiçosamente em sua direção. Ele ergue uma sobrancelha, o incitando a continuar, mas sua expressão não é de interesse.

—Você não traga de verdade -ele repete- Não respira a fumaça. Você só finge.

Baljeet desvia o olhar para os muros de arame farpado da escola. Buford abre a boca para repetir, imaginando que ele não havia o escutado, mas é cortado pelo movimento delicado de Baljeet aproximar a mão do rosto e segurar o cigarro com as pontas dos dedos. Ele respira fundo. Nem um centímetro de fumaça escapa de seus lábios.

—Hah -ele ri, mas é de escárnio- Parece que você tem neurônios, afinal de contas.

Desta vez, ele não apaga o cigarro na parede. O joga no chão e pisa em cima, esfregando-o na grama molhada de orvalho. Se abaixa e pega a mochila. Joga-a por cima do ombro.

Ele lhe dá as costas, e Buford faz menção de se afastar da parede, mas Baljeet vira nos calcanhares e o encara com olhos semicerrados.

—Não me segue, babaca.

Ele levanta o dedo do meio. Estala a língua e vai embora.

É um padrão, Buford pondera.

Por algum tempo, é como um jogo de gato e rato – como um dos episódios mais antigos de Tom e Jerry, mas sem toda a violência gráfica – apesar de que Buford adoraria ter a chance de devorar aquele ratinho em uma só mordida.

Todos os dias, em diferentes horários, Baljeet escolhia um canto do campus para remoer sua angústia interpessoal.

Todos os dias, ele acendia um cigarro, colocava na boca, e não dava nem um único trago.

Todos os dias, ele escondia um livro grosso na mochila antes que Buford se aproximasse o bastante para ler a capa.

Todos os dias, Buford fingia não ver.

Mas sua curiosidade era incontrolável, é claro. Esticava o pescoço, apurava o olhar, virava a cabeça para tentar decifrar o título embaçado nos rápidos segundos que Baljeet levava para fechá-lo e enfiar o livro de volta na mochila.

A curiosidade iria matar aquele gato eventualmente.

E Baljeet era uma presa arisca. Além de um otário antissocial, ele era incrivelmente escorregadio – e Buford percebeu essa sua tendência rapidamente. Nunca conseguia trocar mais de meia dúzia de palavras com sua monossilábica caça, que sempre dava um jeito de escapulir do interrogatório e deixava claro que não gostava de ser perseguido.

Buford poderia, é claro, simplesmente ignorar suas vontades e engajar em conflito físico se Baljeet assim o quisesse. Mas ele preferia liderar seu joguinho de outra forma, e ser paciente. Coisas boas acontecem com quem é paciente, pensava.

Coisas boas, de fato.

Veja, todos os dias, todas as vezes em que se recolhia para os fundos da escola e fingia que fumava, Baljeet sempre o escutou chegar. Era como um relógio: parecia pressentir seus passos pesados sobre o gramado, parecia estar sempre o esperando quando ele despontava na esquina.

Sim, Baljeet sempre o ouviu chegar.

Bom.

Até hoje.

Talvez fosse o barulho da chuva. Talvez fossem seus passos abafados pelos trovões preguiçosos e distantes. Ou talvez fosse a concentração imaculada de Baljeet em seu livro.

Livros. Dois deles. E um caderno de notas.

Não havia um cigarro aceso desta vez – em seu lugar, o garoto mastigava distraidamente a tampa de uma caneta esferográfica, olhos cansados porém focados correndo pelas páginas, dedos ágeis se revezando entre passar as páginas do livro aberto sobre seu colo e usar a caneta para rabiscar anotações em seu bloquinho.

As botas de chuva de Buford fizeram plosh, plosh quando ele subiu o degrau do coreto. Baljeet fechou o livro tão rápido que sua caneta ficou presa entre as páginas.

Buford baixou os olhos devagar e finalmente conseguiu ler o título, ainda que de cabeça para baixo.

Álgebra I.

O sorriso foi involuntário. Baljeet se apressou para socar os livros didáticos, o caderno de notas e mais algumas folhas soltas dentro da mochila. É tarde, ele sabe. Tarde demais.

Buford soltou um riso baixo. Profundo. Um riso de satisfação maldosa.

Estudando. O cara mais irritante e problemático de sua série, o cara que é renomado por ter a pior atitude dentre seus colegas implicantes está estudando.

Buford acaba de encontrar algo muito divertido.

Quando termina de esconder na mochila as armas do crime, Baljeet se levanta do banco de pedra em um pulo e lhe aponta um dedo trêmulo, ensaiando uma ameaça.

—Você não viu nada -ele cospe, ríspido.

Ergue a mão até os cabelos cacheados e desvia o olhar, suspirando exasperado. Seus cachos estão pingando. Ah, ele não trouxe o guarda-chuva.

—Hmm, não sei -Buford sorri com escárnio, metendo as mãos nos bolsos e encolhendo os ombros- O que foi que eu não vi?

Baljeet parece relaxar. Ainda assim, seus olhos são ariscos. Ele encara Buford pela primeira vez – de cima a baixo, como se avaliasse rapidamente suas chances em uma disputa corpo-a-corpo. Mas ele desiste.

Estala a língua e faz menção de sair, propositalmente esbarrando seu ombro no braço de Buford ao fazê-lo.

—Qual o problema, baixinho? -o implicante chama, observando-o entrar debaixo de chuva- Com medo do Primeiro Ano B inteiro ficar sabendo que o herói deles é um nerd?

Baljeet paralisa como se suas pernas tivessem parado de o obedecer. Buford quase não teve tempo de processar seus movimentos, ou o punho fechado que agarrou-se à sua gravata, o forçando a se curvar apenas o bastante para os olhos castanhos travarem-se aos seus.

—Eu não tenho medo—entredentes, cada palavra mais pesada que a última- Principalmente não de um covarde como você.

—Covarde? -Buford baixou o tom de sua voz até arrancar de Baljeet um arrepio- Me testa.

Um relâmpago ilumina o céu, as nuvens baixas e pesadas sobre o pátio. Um trovão murmura a uma certa distância, vibrando o chão do coreto. Os dois garotos se encaram e era possível sentir a estática no ar.

Baljeet foi o primeiro a ceder. Soltando seu uniforme e se afastando alguns passos, jogou a mochila sobre o ombro e resmungou em frustração.

—Que seja. -Grunhiu, voltando a encarar olhos verdes e rosto sardento- Estabelece teus termos.

Buford sentia que acabara de ganhar na loteria.

—Bom -começou, cruzando os braços em frente ao peito, sequer escondendo seu orgulho-, então. Você está, com certeza, familiarizado com a relação entre um nerd e um bully, imagino?

A expressão de Baljeet é impagável.

—Não -murmurou, mas não era uma resposta à pergunta de Buford- Isso, não.

—Vamos supor -Buford prosseguiu, erguendo uma sobrancelha- que um nerd, muito astutamente, esconde sua nerdice a fim de não atrair nenhum bully. Esperto da parte dele, né? Ah, mas você sabe o que dizem por aí, bullies farejam nerds como um tubarão fareja sangue.

Ele sabia que seus olhos deviam estar brilhando, porque Baljeet reagia a eles de acordo. Claro, sua pose de bad boy de drama adolescente de última categoria não havia mudado, mas seu rosto entregava o jogo – os olhos atentos às suas condições, o lábio inferior trêmulo, a respiração levemente descompassada, quase impercetível.

Aquele era seu pior pesadelo. E Buford era o bicho-papão.

—Você pode ficar à vontade com a tua pose de machão rei da pedra perto dos outros babacas -livrou uma das mãos para gesticular, desdenhando dos colegas de turma que achavam Baljeet tão ameaçador- Mas, quando a gente estiver sozinho... -ele sorriu de canto, semicerrando os olhos, a mente borbulhando com tantas possíveis formas de humilhação- ...você vai ser o meu nerd.

—Sem chance. -As palavras saíram carregadas de veneno. Baljeet virou as costas, as botas ruidosas contra as poças de chuva.

—Beleza -Buford riu em sua direção- A galera do fundão vai adorar a novidade. -E deixou o coreto puxando o capuz sobre a cabeça, saindo pelo lado contrário de Baljeet.

Um. Dois. Três. Ouviu os passos pesados e sentiu a mão agarrá-lo pelo ombro.

—Não, espera -Baljeet ofegou, e Buford virou-se lentamente para encará-lo, os cachos murchos sobre a testa, chuva pingando em seu rosto- Eu mudei de ideia.

Buford sorriu.

—Eu topo. -Baljeet disse em um sopro.

—Eu não quero ouvir reclamações -Buford tinha um sorriso vitorioso nos lábios enquanto falava-, e nem pirracinha. Capisce?

Baljeet bufou, impaciente, agarrando a alça da mochila e desviando o olhar.

—Já disse que aceito -frisou.

Buford estava mais feliz do que um moleque de família pobre ganhando uma pista de autorama no Natal.

—Bom garoto. -Esticou a mão livre, deixando em seu rosto um tapinha amigável, e Baljeet rosnou para ele. Como um cão.

Certo.

Buford teria que trabalhar nisso.


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Notas finais do capítulo

e vamos de chantagem



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