Os Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 6
— Vista solitária




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— Vista solitária

Kin entrou em casa por volta das sete horas da noite, quando o céu lá fora estava quase que completamente escurecido. Ela bateu a porta, jogou a bolsa preta no braço do sofá, tirou e dobrou a jaqueta rosa fina que usou o dia todo, os sapatos, e só então percebeu que Naomi dormia sentada no tapete cinza escuro de sua sala de estar, com as costas apoiadas na mesinha de madeira amarelada do centro. A morena parecia desfrutar de um sono tão bom que a deixou em dúvida: a acordava ou não? Deixá-la dormir sentada soava cruel. Respirou fundo. Pegou do bolso direito da calça uma prendedora e a pôs nos cabelos, os prendeu para trás.

Não precisou fazer ou dizer coisa alguma, a francesa acordou sozinha. Ela olhou ao redor, pôs atrás da orelha direita uma das mechas dos lisos cabelos negros e ficou de pé, Kin, no meio disso, procurava algum papel que esqueceu dentro da bolsa que relaxadamente pôs no braço do estofado vermelho.

— Por que não deitou no sofá?

— Eu deitei. — Naomi, meio confusa, respondeu. Pensou melhor o que disse e falou: — Eu acho. Não, tenho certeza que deitei. Ah, devo ter andado dormindo de novo...

Kin riu da cara dela.

— Tem que ter cuidado com isso, às vezes eu desço pra beber água de madrugada, venho com os cabelos na frente dos olhos e não enxergo nada, posso me assustar com você e te matar... — Avisou, ajeitou a bolsa e se largou no sofá. — Faz igual ao Haru e não desce por nada, tranca a porta do seu quarto.

Naomi se sentou ao lado dela e lembrou-se de ter sido advertida disso:

— Ele me falou disso, hoje cedo. Contou que ano passado você quase o explodiu na cozinha! Eu ri tanto!

— A sorte dele foi que as luzes já estavam acesas. — Confirmou o ocorrido. — Falando no Haru, onde ele foi parar?

— Saiu pra rua com a Yue um pouco depois de você ir trabalhar.

Pelo menos é com a Yue que ele tá, pensou Kin. A tranquilizava saber que ele não estava com Sora, ou que se estava, Yue estaria por perto para impor limites aos dois. Eram tão sortudos por tê-la e por ela ter feito amizade com seu irmão. Os problemas de saúde de Arashi e os de administração do Reino de Órion estavam tomando todo o seu tempo, não estava com cabeça para agir como irmã mais velha agora, nem com paciência para aguentá-lo reclamando por tratá-lo como uma criança. Vivia se perguntando em que idade ele a entenderia e virariam amigos também.

Altiva e orgulhosa desde criança, Kin tinha dificuldades para demonstrar gratidão ou pedir desculpas, mas de uns meses para cá sentia que devia um mega "obrigado" à Yue. A solução que encontrou foi "ensaiar" com Naomi — a quem também devia agradecimentos. Um pouco desajeitada, começou pelo motivo mais fácil:

— Obrigada por ficar aqui tomando conta da casa hoje... Quem sabe o que podia acontecer, né?

Naomi a encarou, analítica. Na hora sacou o que ela estava tentando.

— Imagina. — Disse, somente. — Tudo pela primeira ministra do poderoso Reino de Órion. — Completou, arrancando risadas da loira. — E quanto ao Arashi? Ele já decidiu o que vai fazer?

— Já, escolheu a cirurgia. Mas... não sei, ele não pareceu muito certo.

— Como "não pareceu muito certo"? É claro que nessa situação qualquer retalhador sério pensaria duas vezes, afinal, depois disso ele vai ficar sem os poderes, mas você acha mesmo que ele preferiria a morte? Ele tem você. E te ama. — Naomi conseguiu confortá-la.

As duas continuaram conversando e, sem se fazer perceber, sem nenhum esforço da parte de uma ou de outra, a amizade nasceu e cresceu entre elas. Com a maior naturalidade falaram uma para a outra de seus sonhos, de seus micos, falhas, perdas. Kin se deu conta de que mesmo sendo a mais velha daquele grupo e a primeira ministra do Reino de Órion, todos eles tinham muito a lhe ensinar. Se achou uma boba quando lembrou da época em que pensava que sabia de tudo. Gastou anos e mais anos treinando e se dedicando para ter os poderes e os cargos que a fizeram a jovem prepotente que costumava ser, a vida só precisou de um acontecimento para lhe mostrar o valor da humildade.

Num espaço a céu aberto não muito distante dali, próximos de uma praça, Yue e Haru também conversavam. Um piso de concreto puro era o sofá dos dois, a forte luz da lua cheia era sua lâmpada. Ele, encostado numa barra de ferro branca, jogou uma bola de tênis para ela que, apoiada na grade, pegou sem muito esforço e devolveu. Estavam assim há horas, conversando, trocando confidências, conselhos. Desde que deixou a irmã e o pai, Yue nunca se sentiu tão próxima de alguém — e ela estava prestes a dizer isso quando sua tiara branca caiu do topo de sua cabeça e Haru riu de sua cara.

— Tô começando a detestar essas coisas...! — Desabafou, com a tiara na mão. Colocou-a de volta no lugar, afofou os cabelos e pediu a opinião de Haru: — Qual você acha mais legal? A tiara ou os clips?

Ele a olhou por alguns segundos, jogou a bola de volta para ela e disse:

— Eu não faço a mínima ideia. Mas o Sora me disse uma vez que você fica mais bonita com os clips.

— Dá um trabalho danado pra colocar e, se ficar por tempo demais, agride meus cabelos. —Disse. Lembrou de uma informação que queria dele e pediu: — Vem cá, qual é o segredo da sua irmã? O que ela faz pra deixar os cabelos enrolados daquele jeito? Os cachos dela são muito lindos!

— Não sei. Acho que ela já nasceu com eles assim. — Ele, despreocupado, retrucou.

Yue revirou os olhos e o repreendeu:

— Você não sabe de nada, é?!

— Sobre cabelos, eu não sei nada mesmo. — Assumiu. — Eu sei que agora você vai perder o jogo. — Se referiu à brincadeira deles de não deixar a bola cair. Atirou-a, deixou-a invisível com seu poder e acertou Yue no nariz com ela, depois comemorou. Ela o olhou de cara feia.

Fizeram silêncio por alguns instantes. Puderam ouvir o cricrilar dos grilos, a grama se mexendo ao ritmo dos ventos e sentir o sopro deles sacudir suas roupas. Uma pequena esperança pousou no ombro da camiseta rosa choque de Yue, imediatamente lembrando-a de sua infância. Sua irmã adorava aqueles insetos. Sentia tanto a falta dela. Segurou o bichinho com gentileza, ergueu a mão e a agitou para que ele voasse, então o olhou voar para longe. Haru parecia disperso, como sempre.

— Sinto falta de como as coisas eram. Sabe, do tempo que a minha mãe era viva. Com ela aqui, meu pai nunca teria feito as coisas que fez. — Comentou com o ruivo.

— Pensa em voltar pra lá? — A indagou.

Ela rapidamente rejeitou a ideia com um gesto de cabeça.

— Tenho essa casa aqui no Reino de Órion que a minha mãe deixou. E eu não quero ver a cara do meu pai nem tão cedo. — Se justificou. — Além disso, tenho responsabilidades aqui. Sem mim, você já estaria morto.

E você ama a gente. — Haru acrescentou por ela, que não confirmou e muito menos negou, expressou concordância com um sorriso amável. O que ela disse sobre a saudade de como as coisas eram o fez refletir. — Eu não conheci meus pais, então não sei exatamente como você se sente sobre os seus, mas... sinto falta da Mari. Se eu amei alguém como se fosse minha mãe, foi ela.

Yue fitou fundo o castanho claro dos olhos dele, olhou para baixo, ficou de pé e afagou-lhe os cabelos com a mão. Encarando a lua, pôs as mãos no bolso do short branco e falou:

— Que bom que temos tanta gente incrível na nossa vida pra preencher esse vazio, né? Enfim, tá na hora de voltar pra casa. São quase meia-noite, a sua irmã vai trancar a porta com você do lado de fora se chegar lá meia-noite e um.

Deu a mão ao garoto, o ajudou a ficar de pé e o acompanhou até a casa dele, no caminho conversaram sobre dezenas de temas, um completamente diferente do outro. Nunca pensou que ficaria tão amiga de alguém em tão poucos meses e, na primeira vez que viu Haru, nem suspeitou que formaria um laço tão sólido com ele. Havia algo no ruivinho que despertava nela um instinto protetor como o que ela não sentiu nem pela própria irmã, um carinho fraterno, idêntico ao que existiria se os dois tivessem sido criados juntos. No fundo, acreditava que ele deixaria sua marca no mundo e queria garantir que seria para o bem. Queria fazer parte da incrível história dele. 

 Em casa, Arashi recebia Kenichi e Mahina. Sentou-se com os dois no sofá marrom de sua sala de estar após tomar seus remédios e extinguir as dores de cabeça que o infernizaram aquela tarde inteira, conversava com eles em voz baixa sobre um caso que lhes pediu para investigar. Desejava saber sobre Isamu, uma criança desaparecida há mais de doze anos, e não queria que sua irmã ouvisse uma palavra sobre o caso, então, além de pedir a ela para deixá-los a sós, fazia suas perguntas o mais calmamente que conseguia. 

Mahina não era boba, sabia que aquele caso tinha uma importância pessoal para ele. Seu obsessivo interesse no ocorrido primeiro chamou-lhe a atenção, sua insistência em manter tudo oculto de Kin e de Shiori, então, foi o que pôs uma pulga atrás da orelha dela. Estava curiosa. Kenichi, talvez porque fosse antissocial demais, porque não se importava, não se tocou. Apenas fez o que Arashi lhe pediu para fazer, afinal, ele agora era o primeiro ministro do Reino de Órion. Mesmo sendo seu grande rival, o retalhador contra o qual mais almejava lutar.

 Como um sinal de que vieram de um longo dia de trabalho, a dupla usava o uniforme da equipe de elite: camiseta branca com o logo de Áries nas mangas, saia preta e botas com salto para as meninas, calça preta e botas rasteiras para os rapazes. Arashi não se parecia nem um pouco com o líder da maior potência da Terra. Pálido, ligeiramente emagrecido, vestia-se com um casaco azul escuro de capuz, uma calça cinza clara de moletom e andava com os pés descalços. 

— O menino está vivo. — Kenichi revelou, sem cerimônias. Mahina, a direita do ruivo no sofá, examinava a feição de Arashi. — Essa é a nossa certeza, no momento. 

— Por que pôs nós dois no caso, ao invés de investigadores de verdade? — A retalhadora, até então quieta, se pronunciou.

— Não tem importância. — Arashi desconversou. — Mantenham sigilo sobre isso e continuem investigando, depois da minha cirurgia eu cuidarei de tudo.

Kenichi deu uma risada e, em tom de sermão, o confrontou:

— Depois da... cirurgia? Então você vai desistir assim dos seus poderes?

— Kenichi! — Mahina exclamou.

— Não me vem com essa! — O ruivo replicou, olhando-os um tanto incrédulo. De pé, continuou sua bronca: — Não pensou que pode existir um outro jeito? Vai abrir mão de tudo o que conquistou?!

 Cansado, estressado, Arashi o olhou nos olhos e foi curto e grosso na resposta:

— Não que seja da sua conta, mas não há outro jeito. Farei a cirurgia em dois dias e continuarei trabalhando com a Kin como primeiro ministro do Reino de Órion, ajudando na parte administrativa, na burocrática e na diplomática. 

Kenichi deu-lhe as costas, pegou seu montante, dirigiu-se até a saída e disse:

— Retalhador nenhum vai respeitar um líder fraco que desiste de si mesmo. 

— Kenichi! — Mahina se levantou e gritou com ele, que saiu e bateu a porta. Voltando-se para Arashi, lamentou pelo que seu parceiro disse: — Me desculpe por ele, acho que... — Parou e pensou no que dizer em sua defesa. Sem nenhuma ideia, repetiu: — Só me desculpe por ele!

— Tudo bem. — Arashi tentou convencê-la de que não se importou com o que ouviu. — Eu acho que sei o motivo dessa reação. Ele não esqueceu a derrota que sofreu pelas minhas mãos quando nos conhecemos e desde esse dia vem treinando exaustivamente pra me superar e voltar a me enfrentar. Agora que sabe que vou perder meus poderes, ele percebe que nunca mais vamos lutar de novo e sente que seus esforços foram vãos. Me desculpe pela forma que eu respondi, eu devia ter sido mais razoável...

— Que isso, você estava no seu direito, o grosseiro foi ele! — Mahina ficou do seu lado. — Vou lá garantir que ele não vai caçar briga por aí. 

Antes de ela sair, Arashi pediu novamente:

— Por favor mantenha sigilo sobre o que conversamos aqui. 

Sem esconder quão curiosa ficou com aquela vigésima vez que ele pedia sigilo só naquela noite, Mahina concordou pela vigésima vez e se foi. Se conhecia bem seu parceiro de equipe, ele estava em apuros agora, porque toda vez que saía de cabeça quente, ele arrumava uma briga e quase ia preso. Precisava encontrá-lo antes que ele batesse até nos guardas. 


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