Os Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 21
— Arashi II




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/795576/chapter/21

— Arashi II

Dez anos atrás...

Era a noite do Festival das Estrelas, o humilde e esquecido vilarejo Kimioy estava lotado de barracas coloridas e de pessoas. Como Arashi observara, uma criança como sua irmã poderia facilmente se perder ou ser raptada ali, mas ela adorava aquela comemoração e seus pais, tão incapazes de dizer não para a garota quanto ele, permitiram sua ida — desde que ele a acompanhasse e a vigiasse. Além disso, o número de seguranças dobrou desde o ano passado, então pensava-se que não haveria problema. Uma belíssima noite parecia espreitar os moradores.

O casal de irmãos aguardava na tenda que vendia pipoca, estava atrás do terceiro da fila. Pouco interessado, com as mãos dentro dos bolsos do casaco cinza claro de capuz, o pequeno Arashi fixou os olhos no velho comerciante. Rezava mentalmente para que o sujeito não fosse tão lento quanto aparentava. A única coisa que o emocionava era treinar kenjutsu com seu pai, qualquer outra atividade o entediava rapidamente. Shiori era o exato contrário: tudo a impressionava e ela detestava o que quer que envolvesse lutas ou retalhadores. Puxou a mãe. Obedecendo os pais, segurava-se no braço esquerdo do irmão mais velho.

Fitava abobalhada as estrelas azuis no céu escuro e os enfeites pendurados nos varais. Usava um lindo vestido amarelo escuro de saia rodada, um par de sapatilhas combinando e prendeu os cabelos lisos e negros para trás. Podia ficar ali, naquele mesmo lugar, até amanhecer. Felizmente para seu jovem responsável, os três na frente deles não demoraram nem dez minutos para pedir, ter o que queriam e ir embora. O vendedor de bigode grisalho atrás do balcão de madeira sorriu para os dois.

Porém, na vez deles, um estranho indivíduo encapuzado se meteu no meio, desvendou o rosto e sacou uma espada. Matou o dono da barraca na frente dos dois. Sangue espirrou na na face de Shiori e na grama natural que forrava o solo recém lavado da praça. O assassino empunhou a lâmina e se voltou para matá-los logo em seguida, Arashi, no desespero, envolveu a irmã menor em um abraço, como que num casulo, e fechou os olhos. Esperou a morte. Segundos se passaram mas nada aconteceu. Seu espanto foi imenso quando viu que estacas afiadas de gelo saíram de suas costas e mataram o espadachim. "Você despertará seus poderes quando for levado ao limite do desespero", recordou-se o que seu pai lhe disse sobre sua essência. Quando olhou em volta e se deu conta do caos que se alastrou pelo vilarejo, da quantidade de pedestres sendo fatiados por retalhadores, soube que precisavam voltar para casa imediatamente.

— Arashi...?! O que... aconteceu? — Sua irmãzinha, trêmula, pálida de medo, perguntou. A baixinha tinha apenas quatro anos.

Limpou a bochecha dela com a manga do casaco, a abraçou novamente para impedi-la de abrir os olhos e ver o que se passava e disse:

— Vamos voltar pra casa! Rápido! Não tenha medo!

Ele não sabia e nem tinha como saber, mas a chacina que viu começar na praça onde se desenrolava o festival estava ocorrendo em todo o vilarejo, inclusive em sua rua. Seu pai, hábil lutador, protegia a entrada da casa, derrotava alguns invasores e vasculhava os arredores com os olhos. Estava preocupado com os filhos que saíram e ainda não voltaram. Homem alto, robusto, branco e de cabelos negros, exibia, atrás de sua camiseta verde musgo manchada de sangue, muito mais força do que parecia ter a quem o olhava rápido. Em uma ligeira distração, um de seus atacantes tentou acertá-lo, entretanto, este teve o coração atravessado por uma katana de gelo. Seu filho mais velho a empunhava.

Seu coração tremeu dentro de seu peito quando seus olhos viram no que transformou seu primogênito. O seu garoto acabava de matar um homem, de tirar uma vida. Não devia tê-lo treinado. Sua esposa tinha razão. Assim que o corpo sem vida do invasor desabou com a punhalada da arma de Arashi, Shiori, de olhos fechados, correu em prantos para os braços do apreensivo pai. O pequeno guerreiro glacial foi de joelhos ao chão, exausto, respirando sofregamente. Seu corpo não estava acostumado com seus novos poderes. Abaixou a cabeça e encarou a palma das próprias mãos. "Esse é o poder de um ser de essência...?", se indagou, horrorizado.

Viu seu pai zelosamente abraçar sua irmã e beijá-la na testa. Enquanto seus sentidos testemunhavam curiosos uma cena tão humana e esperável, uma pergunta flutuou até a superfície de sua mente. "O que eu sou...?", ele, com toda a sinceridade, esforçou-se para saber o mais rápido possível. Sentiu que mais retalhadores estavam vindo, nem precisou dizer algo explicitamente a seu pai para ele saber que era hora de mandar Shiori para casa. Se entendiam só trocando olhares.

— Vai pra dentro de casa, princesa! — Pediu. — Sua mãe está lá dentro, ela está te esperando! Vai ficar tudo bem!

A menina assentiu e obedeceu. Assim que a viu bater a porta de madeira da humilde casa azul, correu até Arashi e cedeu-lhe o braço, ajudou-o a levantar. Desorientado, o menino reclamou:

— Disse que eu usaria minha essência quando fosse levado ao limite do desespero... Parece mais que é ela que tá me usando, não tenho controle de mim mesmo quando faço essas coisas...

Guiando o filho com o braço, explicou:

— Você tem seis anos, eu nunca ouvi falar de alguém que despertou a essência tão novo... ela é muito mais forte do que você, é normal que aja impulsivamente.

Ia obrigá-lo a entrar e se esconder com a mãe e os irmãos, mas três retalhadores encapuzados os cercaram e atacaram-nos com suas espadas. De novo por reflexo, Arashi guardou a si mesmo e seu pai debaixo de uma estreita fortaleza de gelo e assassinou os três guerreiros disparando neles agulhas do mesmo material da proteção atrás da qual se ocultou. Instantaneamente após a morte deles, os muros se desfizeram em um opaco nevoeiro. O responsável por eles caiu, no entanto, antes que ele desse de cara com o chão, seu pai o segurou e o levou para dentro de casa.

A mulher do lar os esperava na sala, perto do armário cinza de frente para a entrada. Agarrada à filha e ao bebê que tinha nos braços. O tom oliva de seu rosto mudou para um branco quase cadavérico, sinal de que a moça nunca temera tanto pela própria vida e pela da família. Sabia quem estava por trás daquilo. Pelo mesmo motivo, sabia também que alguém ali iria morrer. Ele prometeu que a caçaria independentemente de para aonde ela fosse e que, quando a achasse, pelo menos uma morte haveria. O bebê, de apenas um mês de idade, chorava desvairadamente. Parecia que sentia o perigo.

Alguém educadamente bateu na porta. Aquela energia... Mel a conhecia muito bem. "É ele", ela teve certeza. Só observando a feição da esposa o homem da casa percebeu quem batia, isso porque, durante a conversa que tiveram mais cedo, a mãe de seus filhos contou quem suspeitava que estava coordenando aquele massacre.

— Vão pra dentro do armário! — Disse o homem da casa, sem nem olhar para trás. Sob a expressão aterrorizada e angustiada da esposa, explicou-se: — Ele não me conhece, não sabe que você está aqui, pode ser que passe direto e mande um dos soldados normais pra cá... Vai, Mel.

— Sabe que está subestimando ele, Takashi! — Redarguiu a moça de cabelos negros encaracolados e vivos olhos azuis claros como os de Arashi. Ninguém se atreveria a negar que ela era mãe dele. — Esse miserável é obcecado com Yume e prometeu que mataria todos os que ela chamou de amigos, ele me segue há anos... Por isso mantive segredo sobre ter tido filhos com você e pedi para morarmos tão longe de Órion...!! Por isso não quis que Arashi se tornasse retalhador! Além disso, não vou caber ali...

Bateram na porta outra vez. Takashi respirou fundo e olhou para baixo, a calma tentava escapar dele. "Foco", dizia-se. Não conseguia crer no que estava para falar.

— Arashi, se esconde lá dentro com seus irmãos! — Ordenou. Encarando-o nos olhos, instruiu-o como se falasse com um adulto: — E aconteça o que acontecer não saia de lá! Nem faça barulho!

O rosto do garoto mudou, tornou-se frio. Sabia o que aqueles dizeres significavam. Tomou o bebê dos braços da mãe, pegou Shiori pela mão e mecanicamente marchou até o armário. Antes de conseguir chegar lá, entretanto, ganhou um forte e emocionado abraço de Mel, sentiu as lágrimas dela molharem seus cabelos. Por um segundo quis retribuir, dizer que a amava, pedir-lhes que não fizessem o que estavam na iminência de fazer, mas sabia que era a melhor opção e que precisava agir rápido se quisesse salvar seus irmãos. Sobrepujou as emoções. Quando o abraço findou, seguiu caminho para o esconderijo.

Sentindo que seus filhos estavam seguros, o casal deu as mãos e bravamente encarou a porta. Santsuki, com muita classe, não tardou pô-la a baixo.

— É falta de educação não atender a porta, sabiam? Eu devo ter batido umas trezentas vezes! Tá, trezentas é exagero, talvez trinta... — Se corrigiu. Ajustou o terno preto, a gravata carmesim e sorriu para ambos.

O silêncio se estendeu pela sala, as paredes azuis claras da casa racharam.

— Tudo isso porque está entediado?! — Vociferou Mel. O marido punha o braço na frente dela.

Santsuki desdenhou dela e replicou:

— Basicamente, sim. Culpe sua amiga Yume por não ter me matado quando pôde.

— Te matar e sujar as mãos com você? Por que você não faz isso? O lixo não pode ficar mais sujo do que já é! — Takashi se meteu. — Sua existência é patética!

O vilão fingiu refletir. Por fim, demorou os olhos na maçaneta prateada que tinha em mãos.

— Nah, vou me divertir na minha existência patética. A propósito, isso aqui é de vocês, né? — Perguntou, alçando o utensílio. Antes dos ouvintes conseguirem entender aonde ele queria chegar com aquilo, Santsuki arremessou a maçaneta contra Mel, a força que ele aplicou no lançamento foi tamanha que o objeto atravessou o peito dela e afundou no coração da moça. O falecimento foi instantâneo, o cadáver caiu nos braços do marido.

Eles não tinham ideia, mas, de olho na fenda da fechadura do armário, o filho mais velho da família assistia tudo com atenção. Achava essencial saber para qual direção o inimigo iria depois de sair dali. Shiori, colada nele, tremia compulsivamente, chorava baixinho e sussurrava repetidamente que estava com medo. O bebê dormia pacificamente. Uma tempestade de sentimentos brigava dentro do guerreiro glacial para vir a tona, ele, todavia, mantinha-os trancafiados.

O próximo a morrer foi seu pai. Santsuki o derrubou com um pontapé, bloqueou-o contra a parede e deu uma série de socos na cara dele, um mais forte e bruto que o anterior. Foi assim até que o rosto da vítima ficou irreconhecível, até que o punho dele se alojou dentro da cabeça dela. Em seguida, como quem acabava de lavar pratos, o assassino limpou as mãos com uma toalhinha branca de bolso e saiu andando.

Arashi cobriu a boca de Shiori com a mão e se deteve por cinco minutos. Decorrido este tempo, puxou-a pela mão, abriu o armário e abandonou a casa. Esquecera-se até de dizer a irmã mais nova para permanecer de olhos fechados, pois se visse o estado dos pais, ela entraria em choque. Precisavam correr, se esconder, escolher o melhor caminho para passarem despercebidos. Passeavam apressados e agachados à margem de um extenso matagal, de uma estrada de barro, quando a menininha soltou a mão dele e surtou.

— Tô com medo! Tô com medo! Eu... tô com medo! — Ela bradava, espavorida.

O primogênito perdeu a cabeça e foi grosseiro com ela:

— Cala a boca, você vai nos matar!

A pequena se aquietou. Reconhecendo que se excedeu, Arashi respirou fundo, a beijou na testa e, durante um abraço, pediu perdão:

— Me desculpa por falar desse jeito. Eu juro que você não precisa mais ter medo.

E, com Arashi sempre na dianteira, eles seguiram em frente.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Os Retalhadores de Áries" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.