Os Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 18
— Naomi




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— Naomi 

O sol raiou há poucas horas no Reino de Órion, um frio capaz de obrigar até os retalhadores a saírem agasalhados de casa se espalhou por lá. Os únicos barulhos escutáveis na nação eram os das obras que estavam sendo feitas e os das construções que vinham sendo reerigidas por causa da explosão de um ano atrás. 

— Me conte um pouco sobre a sua infância, Naomi. — A doutora cruzou elegantemente as pernas e pediu. 

Aceitou consultar um psicólogo por insistência e recomendação de Kin, a loira achava que, depois do que aconteceu entre eles e Kazu, Kikuchi e Isamu, todos precisavam. Tudo bem que essa ideia passou por sua cabeça um monte de vezes, mas não achou que logo na primeira ida fosse ter que lidar com uma questão daquelas. Tá, sendo sincera, suspeitou, sim, só não pensou que respondê-la fosse ser tão difícil. Há muitos anos não pensava sobre seus tempos de criança. Isso porque, é claro, não foi uma criança feliz. Só tinha uma lembrança alegre daquele tempo e ela envolvia seu pai.

 Acionou a memória e, sem sair da poltrona de couro marrom escura daquela salinha de paredes verdes, visitou seu passado. Se fosse para relatá-lo a alguém, queria começar pelo começo. Escavou a mente atrás de sua última vivência antes de deixar a Terra de Áries. 

— Eu fui mandada pra fora da Terra quando tinha cinco anos. — Iniciou, dobrando as mangas longas da camisa preta de cetim. — Meu pai fez isso pra me proteger. Foi no dia que o gigante Hoderi atacou o Reino de Órion. Yume estava fora, Azin tava demorando pra chegar e alguns retalhadores se uniram pra conter o monstro. Meu pai e todos os que lutaram ao lado dele se sacrificaram pra conseguir isso, a única família que eu tinha... morreu no hospital poucas horas depois por causa dos ferimentos. Eu me lembro dele como um homem gentil, feliz, sorridente o tempo todo, as pessoas me dizem que ele me mimava muito e que não podia me ouvir chorar, sempre me dava o que eu queria. Lembro dele me carregar nos ombros pra lá e pra cá. 

— E quanto à sua mãe? — A psicóloga ajeitou os óculos, pôs a caneta no bolso direito do jaleco branco e perguntou. Sentara-se num banquinho cinza de frente para a poltrona de sua paciente. 

— Morreu no dia do meu nascimento. Ela era humana, além disso estava doente, não suportou dar luz a um ser essência. Podia ter escolhido encerrar a gestação, mas escolheu morrer pra me trazer ao mundo. 

Os olhos cor de mel da francesa lotaram-se de lágrimas. Quando começaram a escorrer, Naomi as enxugou com o paninho rosado guardado no bolso da calça e encarou o teto. Procurava na mente algum acontecimento que a enraivecesse em vez de entristecê-la — era assim que fazia para voltar ao normal quando deter o pensamento em certos eventos a deprimia. A recordação de um monstro pior do que Hoderi fez seu rosto recuperar a feição corriqueira. Respirou fundo. 

— Me fala mais sobre sua infância. — Insistiu a ouvinte. 

— A nave que o meu pai usou pra me enviar pra fora daqui foi danificada no voo e eu fiquei perdida no espaço por várias semanas. Tive sorte porque lá tinha estoque de alimento e água pra meses. — Continuou. Lembrava-se perfeitamente dos dias aos quais se referia, os tinha na cabeça como se tivesse-os vivenciado ontem. A sensação que teve de estar completa e irremediavelmente sozinha ainda morava em seu peito. O desespero da solidão. Não importava a quem chamasse, o quanto chorasse, gritasse, ninguém vinha. Ali aprendeu a se virar, a sobreviver, entendeu o sofrimento em sua essência. Tornou-se adulta. — Depois que a água e os alimentos acabaram, quando eu estava quase morrendo de fome e sede, Santsuki apareceu e me deu abrigo. Eu cresci entre os seguidores dele. Nos primeiros anos eu o admirava, eu não sabia as coisas que ele tinha feito e nem as que ele fazia, ele... mentia pra mim e me manipulava, me convencia a cometer vários crimes... Daí, um dia eu percebi e comecei a planejar minha fuga. Estava determinada a voltar pra cá pra Terra, mas eu não queria vir sem matá-lo antes. 

Imersa nas próprias memórias e sentimentos, Naomi se calou. A especialista prosseguiu com as perguntas da análise:

— E como foi crescer entre os seguidores do Santsuki?

— Foi horrível. — Respondeu a morena, sem hesitar. — Eles eram violentos e, diferente de mim, gostavam do que faziam, sabe? Eram cruéis. A mais velha tinha inveja e ciúmes de mim porque era apaixonada pelo Santsuki, ela tentou me matar um monte de vezes... O próprio Santsuki passava mais tempo fora da nave na qual a gente viajava, ordenava os crimes e sumia por semanas ou se trancava sozinho no quarto e dormia. 

O ar condicionado que refrescava a sala aumentou de força. A luz do sol perpassou a janela a direita de Naomi e bateu na mesinha de madeira entre ela e a analista, que anotou uma série coisas no caderno.

— Quando você percebeu a manipulação do Santsuki? Como foi? — A mulher arrumou os curtos e lisos cabelos negros e a indagou.

— Aconteceu numa aterrissagem que fizemos num planeta chamado "Karkez", que fica bem longe desse sistema solar. — Replicou, pensativa, fitando a mesinha diante de seus pés. — Nesse dia ele estava junto com a gente, e isso era raro. Ele veio junto com a gente porque estava procurando Karkez há anos, diziam que lá morava alguém capaz de vencê-lo. Ele foi ansioso. Quando encontrou esse guerreiro que todo mundo falava que podia matá-lo, Santsuki ficou decepcionado... e muito irritado. O cara era muito mais fraco. Santsuki se sentiu enganado e não teve nenhuma piedade do retalhador. Matou ele na nossa frente e depois destruiu Karkez. Eu tive pesadelos com aquela cena por anos. Ali eu vi quem ele era de verdade. Primeiro eu senti muita culpa por tudo o que eu fiz a mando dele, me odiei... aí decidi matá-lo. 


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