Sobre tempestades e calmaria escrita por GabiN HD


Capítulo 2
Capítulo 2




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Capítulo II

Mare

            Já faz dois dias desde que Cal partiu para Norta e que deixei a residência do primeiro-ministro, retornando à cabana com minha família. Faz dois dias que estou absorta em meus pensamentos, deixando os minutos virarem horas e as horas se tornarem dias diante de mim, sem que eu possa fazer nada a não ser mirar o jardim lá fora. Sem que eu queira fazer nada.

            Faz dois dias que aquele maldito diário está me encarando.

            Com raiva, chuto uma cadeira da cozinha e saio bufando de casa, pisando duro. Do lado de fora, começo a correr para tirar esse sentimento angustiante que pesa no meu peito, para silenciar essa voz que fica gritando dentro da minha cabeça. Conforme vou avançando em meu caminho, lembro-me de quando treinava com Cal.

            Cal. Uma fúria me envolve e raios roxos começam faiscar em minhas mãos. Seu desgraçado!!

            Com muito esforço, coloque esse sentimento de lado e volto a correr, dessa vez num ritmo mais intenso.

            Como a guerra prosseguia, Montfort ainda era uma base militar. Apesar de haver outras bases em Norta, próximas à fronteira com Lakeland, a de Montfort ainda era a principal, onde o Comando costumava se reunir em segurança. Por causa disso, apesar do isolamento da minha nova casa, não demorei a avistar soldados e carros militares.

            Eles acenavam levemente com a cabeça para mim, como sinal de respeito. Mesmo contra minha vontade, tornei-me bem popular após a batalha de Norta, especialmente entre os novos recrutas.

            Tal lembrança disparou minha respiração. Dessa vez meus pensamentos viajaram para os jovens que passaram a lutar pela Guarda, buscando contribuir com a Revolução Vermelha. Passei a ver alguns rostos em minha mente, de pessoas que nem sabia o nome, mas que morreram durante as batalhas.

            Fui forçada a parar e me apoiei sobre os joelhos. Minha vista começou a turvar. Tantas mortes que eu carregava em minhas costas, especialmente dos sanguenovos que ajudei a recrutar. A causa era justa – ainda é -, o que não significa dizer que seja fácil carregar os destroços da guerra.

            Um grupo de jovens percebeu que estava passando mal e começou a caminhar a direção. Muito embora estivesse arfando, não lhes dei a chance de me ajudar, virei a costas e tornei a correr, agora fazendo o caminho de volta. Não precisava de mais ninguém falando de mim mais do que já deveriam estar falando, afinal de contas eu abandonei a Guarda.

           Ainda me recuso a voltar a lutar. Às vezes sinto que meus poderes estão fora de controle, que poderiam matar aqueles que mais amo. As pessoas ainda não sabem disso, mas represento um risco para todos.  

          O nó no meu peito apertou mais um pouco e, sabendo que entraria em colapso em alguns instantes, comecei a correr mais rápido. Precisava afugentar esses pensamentos e sentimentos antes de ficar maluca.

          Depois de quase um quilômetro em ritmo acelerado, minha mente começou a se acalmar de novo, permitindo que Cal ressurgisse.

          Mare, você precisa se abrir, colocar essa torrente de sentimentos para fora.

          - Maldito seja você, Tiberias Calore! Você tinha que ir embora justo agora e me deixar sozinha? Como vou fazer isso? – digo para mim mesma, desesperançosa.

          Uma onda de raiva novamente me invade, mas desta vez não seguro. Miro aos céus e solto raios roxos em direção às nuvens, gritando com toda minha fúria guardada.

          Depois de soltar uma dezena de raios, caio ao solo, exausta. Minhas costas tocam o solo que estava começando a ficar úmido em razão da chuva que se iniciara com minha tormenta pessoal.

           Coloco as mãos no peito para tentar acalmar as batidas do meu coração. Mais uma vez não consigo e, somente restando a frustração em meu peito, choro.

           Não qualquer choro, mas aquele choro, o dos desesperados, em posição fetal, largada no chão. Choro até me dar por vencida, até colocar para fora a última lágrima. As lágrimas se misturam às gotas de chuva e me vejo totalmente ensopada.

           Não sei quanto tempo fico ali, passando o filme da Revolução Vermelha diante de meus olhos, lamentando as pessoas perdidas. Penso no meu irmão, que sacrificou sua vida para salvar a minha. Se fosse mais cuidadosa, agora ele estaria vivo para criar sua filha.

           No meu íntimo, agradeço por ninguém vir me procurar. Não suportaria a vergonha de me verem quebrada.

           Depois de uma eternidade, levanto minhas costas do chão e me sento. O céu já estava limpo de novo, assim como meu peito. Meu corpo estava em frangalhos, mas pelo menos minha mente silenciou. Não tinha condições emocionais de pensar em mais nada naquele momento.

           Retornei para casa caminhando, no meu ritmo natural. Sem pressa Cal costumava dizer. Cal. Meu peito se apertou de novo, mas dessa vez foi de saudades. Queria que ele estivesse aqui.

          Mas a verdade é que ele não estava e demoraria muito para estar ao meu lado novamente. Tinha que reunir minhas forças e fazer o que eu sabia de melhor: lutar. Por mim, por minha família, pelo meu amor, pelo futuro que eu queria ver construído, pelos vermelhos e sanguenovos.

           Quando entrei em casa, minha mãe estava na cozinha. Estava cautelosa, aguardando-me, mas fingindo que não, que estava apenas realizando tarefas domésticas. Sabia que estava preocupada, mas não tinha tempo para dar explicações agora. Tinha uma coisa muito importante a fazer.

           Entrei no meu quarto como um furacão e tranquei a porta. Abri o guarda-roupas e comecei a jogar as coisas sobre a cama para abrir espaço, procurando aquele caderno que Cal havia me dado, aquele que ele insistia em chamar de “diário”. Encontrei-o no fundo de uma gaveta. Respirei fundo e encarei o caderno com capas de couro marrom.

           - Está bem, Mare Barrow. Sem pensar. Só faça.

           Alcancei um lápis de Gisa, sentei-me na cama e me rendi ao fluxo de pensamentos.

           De novo, encarei a primeira página do diário, ainda em branco, e comecei a escrever:

            Maven,

           Desculpe-me por não ter conseguido te salvar. Sinto-me péssima por não ter conseguido salvar o menino que habitava em você. Sei que você não era aquele monstro que todos diziam. Aquilo era só uma casca e eu sabia disso. Os outros não sabiam, mas eu sim.

           Nunca vou conseguir me perdoar por ter te matado. Eu tinha que ter te detido, mas não pude evitar.

           Você foi um dos amores da minha vida. Amo o Cal, mas é de um jeito diferente. Amamo-nos de um jeito que só nós sabíamos como. Sua percepção das minhas necessidades era única. Sei que não encontrarei ninguém que o faça em nenhum outro lugar.

           Sempre o admirei pela sua capacidade em tomar decisões, ainda que eu não concordasse com o que elas implicavam. A princípio quando fiquei sem você, me senti desemparada. Era um misto de alívio e de saudades. E é óbvio que eu me sentia culpada por amar alguém que havia me aprisionado e mandado matar pessoas que eu amava.

           Nunca vou te esquecer e espero que um dia me perdoe.

Mare.

 

          Como se estivesse segurando algo sujo, joguei o diário ao chão com desprezo. Abracei meu travesseiro e chorei, como um bebê, de novo.

           Nos dias seguintes, evitei meu “diário”. Guardei-o no fundo da última gaveta para ninguém o encontrar, inclusive eu mesma. Não sabia se estava sendo mais em ridícula em escrever nele ou fugir dele.

           E assim passaram os dias: acordava cedo, calçava os tênis e corria. Não importa o tanto que corresse, meus pensamos sempre alcançavam. Desespero, choro, raios e, depois, uma tempestade.

          Voltava para casa e passava tempo com a família, lidava com os afazeres da casa e, quando a exaustão me alcançava, dormia.

          Minha sobrinha estava crescendo tão depressa e não conseguia estar ali por ela. Confesso que tinha vergonha quando ela me olhava, parecia que a pequena sabia que sua mãe estava lutando na guerra, enquanto eu, muito mais nova e com poderes especiais, não estava fazendo nada, apenas “existindo”.

           No sétimo dia, assim que iniciei meus exercícios matinais, Julian apareceu em meu campo de visão. Apareceu ao lado direito da estrada, saindo detrás de uma árvore, como se estivesse me esperando.

          - Espero que hoje não chova! O dia nasceu tão belo, não é mesmo? Acho que todos merecíamos um dia de sol! – ele me disse com uma falsa cordialidade, sem que seu sorriso alcançasse os olhos. Fui obrigada a interromper minha corrida.

          - Você está me vigiando? – Já sem paciência lhe respondi.

         - Oh! Vigiando? Não! – disse-me se aproximando. No entanto, de forma abrupta, interrompi-o, não permitindo que sequer terminasse sua fala. Não tenho mais idade para Julian e sua conversa mole. Ele não deveria estar em lua-de-mel ao invés de ficar me perseguindo?

         - Cal mandou você me vigiar? – Noto que meu tom de voz se elevou.

        - Na verdade, a questão é: você precisa ser vigiada, Mare? – Ele me pergunta sério, não havia mais sorriso em seu rosto.

         O clima fica tenso e imediatamente coro. Minhas bochechas estão pegando fogo, assim como meus dedos começam a faiscar.

        Rapidamente, Julian assume as rédeas da situação e em tom ameno me diz:

        – Na verdade vim lhe indagar se aceitaria a companhia deste velho para uma caminhada. Importa-se em diminuir seu ritmo?

        - Não me venha dizer que está preocupado comigo, assim como todo mundo, e que preciso parar de me martirizar e decidir o que fazer da minha vida. Não sou mais a garota para quem você deu aulas, Julian – digo-lhe com raiva. Julian é inteligente, mas a vantagem é que já o conheço. Não vai me encurralar.

            - Claro que não é! Muito se passou desde que ensinei Mareena Titanos! Pode ficar despreocupada, Mare, não sou tolo em tomá-la por uma garota. Sim, estou preocupado com você, assim como todas as pessoas que lhe querem bem...

            Começo a bufar e ele nota minha impaciência crescente.

            - ... Porém, não vim aqui para lhe dizer o que precisa fazer. Acredito que isso já tem feito muito bem e, também, sei que este tipo de abordagem não funciona com você. Inclusive, se realmente quisesse jogar baixo teria enviado Sarah – disse-me dando de ombros.

            Touché.

            Quando me observei, estava olhando para meus pés. Ele conseguira me deixar sem jeito.

            - O que você realmente quer, Julian? – Minha vontade era sair correndo e deixá-lo com seus enigmas para trás. Como ele se atreve a colocar Sarah nisso tudo?

            De repente, ele parou e virou-se de frente para mim, encarando-me nos olhos de forma profunda. Eis que ele veio me dizer algo, no fim das contas.

            - Pare de sentir pena de si mesma, Mare. Não combina com você.

            Aquilo me pegou desprevenida. Parecia que havia me dado um soco no peito. Comecei a gaguejar, tentando encontrar palavras afiadas para lhe responder da forma que merecia.

            Mas ele não me deu trégua.

            - Como eu me atrevo, você está pensando? Sim, ponderei que minha atitude era arriscada – continuou me encarando, mas agora começou a coçar o queixo, como quem está refletindo – Mas depois de quase uma semana de tempestades já era hora de tomar alguma providência.

            Julian estava completamente fora de si. Eu poderia eletrocutá-lo neste minuto e sua existência acabaria simplesmente porque ele me irritou. Seus poderes não eram fortes o suficiente para me impedir. E ele sabia disso.

            - Parece que as tempestades afloraram seu instinto suicida, então? – digo, forçando a barra, quero que ele saiba o quão furiosa estou e o quanto ele está brincando com o perigo.

            - Talvez – ele me responde indiferente – Mare, Cal já deve ter te dito isso, mas vou tentar pontuar de um ângulo diferente. A Guarda precisa de você, é um fato. Cabe a você atender ao chamado ou não.

            - Minha sobrinha, que ainda não sabe falar, poderia ter-me dito isto, Julian – afasto-me dele, preciso respirar. Mas ele não desiste e me segue.

            - Se você decidir ir, vá por inteiro, meia Mare não serve de nada no campo de batalha. Se você decidir não ir, honre aqueles que estão lutando pela causa construindo uma vida digna, não vivendo cada dia como se fosse um fardo. Uma heroína da revolução merece mais do que ficar causando tempestades às escondidas.

            - Você acha que é fácil? – quando me vejo já estou na defensiva. Julian me encurralou. Droga.

            - Claro que não é. Assim como não é para muitos que estão aqui.

            - Então é isso? Vai me dizer que não mereço sofrer porque outros perderam mais? Eu perdi Shade, perdi Maven...

            A fúria toma conta de mim e permito que os raios saiam de minhas mãos em direção aos céus. Antes sobre as nuvens do que no meio da testa de Julian.

            - Não disse isso em nenhum momento, Mare. Você é uma das pessoas que tem mais razão para sofrer, até mesmo porque sua vida pessoal lhe fora subtraída ao tornar-se o símbolo da revolução – Julian me olha nos olhos e limpa a garganta – Já é hora de parar de fugir de si mesma, Mare Barrow. Apenas escolha uma estrada e a percorra. Talvez, com o tempo, seu autojulgamento diminua...

            - Eu não consigo... – minha voz começa a falhar e minha respiração torna-se ofegante mesmo estando parada – Não sou digna de ser a heroína de nada, Julian. E se eu voltar ao campo de batalha, quem morrerá por mim desta vez?

            - Minha querida – ele diz com a voz mansa enquanto tenta se aproximar, mas automaticamente dou um passo para trás. É muita coisa para processar – As pessoas estão lutando porque querem, estão lutando pelo que acreditam. A situação atual é totalmente diferente da época em que os vermelhos eram escravizados e lutavam por obrigação. Não existem mais crianças lutando, são guerreiros ferozes e você não é a mãe deles ou de qualquer forma responsável por eles. Além disso, não conheço ninguém mais ética para esta causa do que você, disposta a sacrificar sua vida para que seus pares conquistem a liberdade.

            Não consigo falar, pois todo meu esforço está concentrado em impedir que desabe, que caia no choro.

            - Talvez seja hora de viver como Mare Barrow quer e não como a “garota elétrica” que quer atender as expectativas alheias. Eles podem vencer a guerra sem a segunda, mas definitivamente não sem a primeira.

             Suavemente, ele toca minhas mãos e me traz de volta à realidade. É uma despedida.

            Sem me olhar novamente, Julian me dá as costas e desaparece por entre o bosque situado ao lado da pista.

            Abalada, adentro o bosque situado ao lado da pista e localizo uma árvore grande. Dou a volta nela de modo a ficar escondida dos que passam pelo asfalto. Encosto-me em seu tronco, sentindo o frio causado pela sombra relaxar minhas costas tensas. Conforme o tempo vai passando, vou cedendo e começo a escorregar pelo tronco até me sentar no chão.

            Ali, pego um graveto e fico a riscar o chão de terra de forma aleatória, imaginando a vida que poderia ter tido se não tivesse caído na arena no dia da prova real para escolha da noiva de Cal, quando meus poderes foram revelados a mim mesma e aos prateados.

            Minha coragem de voltar para casa só aparece perto do almoço. Na verdade, não pode nem se dizer que tenha sido coragem, mas a opção mais fácil de evitar problemas com minha mãe. Seria mais difícil explicar minha ausência no horário da refeição do que estar de corpo presente, assentindo ao que me falavam e rindo sem vontade.

            Depois do almoço, meu pai dirigiu-se à varanda da casa e descansou um pouco em um banco de madeira antes de retornar à função que estava exercendo. Depois que voltou a andar não parou de torrar a paciência dos soldados, dizendo que “queria participar”. Vencidos pelo cansaço, colocaram meu pai em uma sala com diversos rádios que transmitiam mensagens grampeadas dos prateados. A função dele era ouvi-las e fazer os respectivos relatórios. Ele estava leve, sentindo-se útil. Porém, também tenho o palpite que ele gostava de ouvir conversas alheias.

            Aproximei-me dele, pois precisava de conselhos. E ninguém melhor para dá-los do que alguém que serviu os prateados lutando contra Lakeland, pagando o preço com sua mobilidade. Sarah quem mudou sua vida, curando-o com seus dons, permitindo que voltasse a andar.

            De imediato ele adotou um tom casual, comentando sobre um casal de pássaros que havia feito um ninho numa árvore que ficava do lado direito da varanda. Quando acabou o assunto, aguardou-me em silêncio. Meu pai e seu tato recém-adquirido com situações constrangedoras era deveras cômico. Ser avô estava lhe fazendo muito bem.

            - O que você faria em meu lugar? – Perguntei-lhe ainda mirando o horizonte. Não tinha coragem de encará-lo.

            - Você quer me ouvir como pai ou como amigo? – Ele se desencostou do banco e apoiou os cotovelos no joelho.

            - Como ambos.

            - Como seu pai diria para não ir. Já perdi um filho e não suporto perder outro. Além disso, a Guarda e os vermelhos têm a vantagem, já que estão em maior número e contam com o apoio de Montfort. Os vermelhos de Lakeland logo desertarão e restará pouco a ser defendido no território inimigo. Se a situação realmente fosse preocupante, Cal estaria na linha de frente da batalha, considerando sua experiência em combate, ao invés de pajear os prateados que ainda acham que existe volta da Revolução.

            - Mas Cal atrapalharia a batalha, pois a rainha e a princesa Íris são ninfóides. Elas quase o mataram na Batalha de Norta. Ele seria uma preocupação para Farley.

            - Vou contar para ele – meu pai zombou e ambos rimos. Na sequência, ele adotou um tom sério novamente e disse que, apesar disso, nada impediria Cal de lutar, em especial se eu retornasse à batalha. Assenti, concordando com suas ponderações.

            - E como meu amigo, o que diria?

            - Conheço os esqueletos que soldados trazem em seus armários, Mare Barrow. Às vezes a melhor coisa que pode fazer por eles e por você mesma é se por em movimento, fazer o que melhor sabe.

            Lutar.

            Matar.

            - Não sei se aguento o peso de mais mortes sobre meus ombros – Quando dei por mim estava me abraçando, como se estivesse me consolando.

            - Nem nós, Mare. Essas mortes estão sobre os ombros de todos nós, não só sobre os seus. Todos nós que planejamos os movimentos, incitamos a guerra. Por mais poderosa e carismática que minha filha seja, ela não é capaz de iniciar uma guerra sozinha – disse-me, assumindo um tom zombeteiro ao final.

            Miro-o profundamente e o admiro. Meu pai tem uma das histórias de vida mais sofridas que conheço. Não sei se conseguiria manter sua lucidez, integridade e seu recém-descoberto bom humor se tivesse passado pelo que ele passou, sendo escravo, servindo em uma guerra que não era sua até se tornar paraplégico e, por fim, perdendo seu primogênito.

            Gisa repentinamente, aos berros, invade a varanda e interrompe nossa conversa.

            - Clara falou “mama”!

            Meu pai dá um salto do banco e abre um amplo sorriso, como se minha irmã tivesse dito que ele ganhou um prêmio. O melhor de todos, pelo jeito. E, às pressas, correu para a cozinha para ver sua neta dizer “mama”.

Realmente, ser avô estava lhe fazendo muito bem.

xx

Cal

            - Parece que melhorou – digo a mim mesmo enquanto inflo o peito e me olho no espelho, esticando o tecido da túnica para ajeitá-la. O novo modelo, da República de Norta, era um pouco mais justo do que aquele que usava durante o reinado dos prateados. Sentia-me um pouco desajustado - com a roupa e com a nova situação.

            Nesta noite se daria a cerimônia para celebrar o fim da Revolução Vermelha após cinco árduos anos de luta. Solto o ar que nem percebi que estava prendendo.

            Cinco anos. Tão longos e intensos que parecia uma vida toda.

            Como previsto, apesar da resistência da realeza prateada, a guerra contra Lakeland acabou sendo mais fácil e, portanto, vencida mais rapidamente. Os vermelhos de Norta, além de contar com o apoio de Monrtfort, tinham o apoio valioso dos sanguenovos, fazendo com que estivessem em superioridade numérica e de forças.

            Em verdade, após a derrocada de Norta, muitos prateados acabaram se unindo à guerra contra Lakeland. Alguns pela recém descoberta simpatia pelos vermelhos, outros pelo velho ódio contra Lakeland. Ainda havia aqueles que simplesmente queriam se exibir, deixando seu nome como um guerreiro que se destacou nas batalhas que se seguiram. Independente do motivo certo é que o exército reunido foi grande e feroz o suficiente para arrasar a rainha ninfoide sem muitas baixas.

            Como era de se esperar, Iris Cygnet e sua mãe não se renderam, lutando até o fim de suas forças junto à sua corte de prateados mais leais. Não sei se o que as moveu foi o ódio contra os vermelhos ou contra Norta, país com que viveram em guerra por décadas.

            Na verdade, Iris Cygnet não suportaria uma execução pública ou a vida numa prisão. Não era de sua natureza selvagem e aventureira. Certamente preferiu honrar seu falecido pai.

            Mare costuma zombar de mim, dizendo que fiquei com a parte fácil, pois permaneci em Archeon apenas “conversando”, enquanto ela fazia o trabalho duro. Como era de se esperar, Mare acabou se juntando à Guarda e aos vermelhos e lutando na Batalha Final contra Lakeland. Apesar da reticência, acho que ela percebeu que não havia tantas dúvidas quando atirava raios, o que a ajudava a seguir em frente. Novamente, a vida e seu correr acabaram por decidir por ela.

            Farley deve ter respirado aliviada com o retorno de Mare, porque influenciou o ânimo dos demais soldados. Ter a “garota elétrica” lutando ombro a ombro consigo fez os guerreiros ainda mais ferozes.

            Eu, apesar das provocações de Mare, fiquei em Archeon, assim como viajei a algumas províncias mais distantes, negociando com os prateados acastelados que ainda se recusavam a aceitar a vitória da Guarda Escarlate.

            Houve apenas duas oportunidades em que participei ativamente da batalha. Na primeira delas, a Guarda estava presa na província de Fishbay, no meio do caminho à capital de Lakeland. Os nobres prateados concentraram seus esforços ali, reunindo os vermelhos que ainda não haviam desertado e, com ataques surpresas, estavam dificultando o avanço dos revoltosos.

            Apesar da dificuldade da batalha, até mesmo porque o terreno era íngreme, facilitando emboscadas, a verdade é que eu não era realmente necessário. Poderiam muito bem vencer sem mim.

            A verdade é que estava exausto de prateados me dizendo absurdos e se negando a aceitar a legitimidade da Revolução Vermelha. Apesar de ter aprendido diplomacia, a verdade é que preferia lutar. Era no campo de batalha que me sentia à vontade.

            Evidente que estava com saudades de uma certa garota que tinha por habilidade atirar raios. Não nos víamos há seis meses nessa ocasião. Só passamos tanto tempo longe assim quando ela fora aprisionada por Maven.

            Maven. Meu peito doeu. Nem mais tocavam em seu nome. Era como se não tivesse existido. Acho que somente eu e Mare ainda sofríamos pelo que fez em vida e com sua ausência, em morte.

            Como estaríamos hoje se ele não tivesse morrido? Será que teria se aliado à Lakeland tentando parar os vermelhos? Será que ele teria sido poupado quando o castelo das rainhas ninfoides fora tomado? Essas são perguntas que seguirão sem resposta.

            Na outra oportunidade Farley me chamou para participar da tomada do castelo. Acho que ela queria impedir que a rainha e princesa de Lakeland fossem linchadas pelos vermelhos furiosos e cansados da luta, mas principalmente de uma vida toda de amarras. Avisei a Farley que elas não se renderiam. E assim foi. Quando cheguei, o conflito já havia se encerrado.

            - Acho que certos prateados não enxergariam a verdade que está diante deles nem se ela os eletrocutasse – Mare me disse enquanto estávamos acampados em Fishbay.

            Acredito que ela tenha razão. Existem pessoas tão apegada à sua realidade e aos seus privilégios que são incapazes de reconhecer a dor do outro. O caminho mais fácil, portanto, é a negação. Como se negar o que estivesse acontecendo apagasse a Revolução Vermelha do mundo dos fatos.

            Não via Mare desde esta noite. Já se vão longos três meses. Quando o castelo foi tomado, antes que eu pudesse chegar, ela retornara à casa dos pais. Não sei se ela não sabia que eu viria ou se voltou mais cedo para não me encontrar. Esse é um dos motivos da minha ansiedade para nosso reencontro.

            Houve muita dúvida sobre a anexação do território de Lakeland à Norta, principalmente por parte dos prateados “convertidos” à causa vermelha, com destaque à rainha Lerolan e seus apoiadores. No entanto, o Comando interveio, impedindo que as discussões seguissem nesse rumo.

            O primeiro-ministro Davidson participou ativamente dessas discussões, inclusive com discursos inflamados, o que não era característico de sua personalidade mais apaziguadora. Numa das oportunidades, sustentou que se a vitória significasse automaticamente a anexação do território, Norta deveria ser anexada à Montfort, vez que seu apoio e orientação foram fundamentais para a continuidade da revolução.

            Caio na gargalhada. Davidson, você é um gênio, não é à toa que chegou à posição de primeiro-ministro. Consigo imaginar Farley o aplaudindo em pé, com um riso no canto da boca de deboche, assim como imagino o desespero de tio Julian tentando restabelecer a calma no ambiente para retomada das negociações.

            No fim das contas, o Comando sugeriu que fosse feito um plebiscito com a população de Lakeland, indagando-a se queria ou não que seu território se tornasse um só com o de Norta, emergindo um novo país. Farley sustentou que já era hora de aprenderem a usar instrumentos mais democráticos, adequados à nova realidade, do que se valer da velha política de “quem pode mais chora menos”.

            Evidente que a população optou por conservar seu território e sua soberania. Para tanto, fora estabelecida uma comissão, com integrantes prateados, vermelhos e sanguenovos, responsável por organizar a eleição do próximo primeiro-ministro.

            Claro que os vermelhos e sanguenovos dessa comissão foram membros ativos da Revolução, alguns com relação estreita com o Comando, para evitar que os prateados tentassem um golpe para restabelecer seu poder e a monarquia. Além disso, cinco integrantes do Congresso de Montfort seriam responsáveis por fiscalizar o processo, mediante os relatórios enviados pela Comissão, assim como por visitas in loco.

            Sobre Norta, de forma muito semelhante, com auxílio da Guarda e de Montfort as eleições estavam sendo organizadas, porém já estavam em estado mais avançado, recolhendo as assinaturas dos interessados para concorrer aos cargos.

            Democracia. República. Primeiro-ministro. Eleição. Tantas palavras novas e significados que apenas começamos a compreender. Porém, como frisou Julian, é um período de luta, mas também de esperança.

            Esperança. Algo que nunca tivemos antes.

            Esperança para mim e para Mare. Assim espero.

            Respiro fundo de novo e me encaro pela última vez no espelho. Observo alguns fios de cabelo branco teimosos no topo da minha cabeça. A guerra cobra de todos preços altos demais. Não me deixo ser detido pelos meus pensamentos e de imediato saio de meus aposentos em direção ao salão de festas da residência do primeiro-ministro. Que o melhor aconteça.


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