Sobre tempestades e calmaria escrita por GabiN HD


Capítulo 3
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Olás! Perdoem pela demora! Contratempos da vida pessoal me impediram de focar na história, infelizmente. Ela já está mais adiantada e está nos meus planos finalizá-la! Agradeço os comentários, me animaram bastante!! Beijos!



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Mare

 

— Você não pode passar uma vida fugindo, Mare.

As palavras de Farley ainda ecoavam dentro de mim. Quando soube que não compareceria à cerimônia de posse do Primeiro-ministro de Norta, ela entrou em contato através do rádio do veículo que me transportava. Eu estava a caminho da residência de meus pais.

Não via Farley e os demais soldados desde o fim da batalha em Lakeland. Cal, há mais tempo, já que não chegou a tempo da tomada do palácio. Nossas rotinas e prioridades foram muito diferentes nos últimos tempos. Arrumei uma desculpa qualquer, embarquei no jato e retornei à casa de meus pais.

Essa é uma das poucas vantagens em ser uma heroína reconhecida: as pessoas não conseguem me negar pedidos ou favores. Ficam constrangidas. Normalmente não abuso, porém dessa vez não banquei a difícil. Queria o aconchego da casa dos meus pais e usei minha influência.

— Já fiz minha parte, Farley. Agora vou descansar com minha família – respondi-lhe.

— Minha filha está na cabana, Mare. Se eu estou aqui, você também pode estar. Você lutou e venceu, só falta colher os louros.

— Você sabe que não gosto de festas e discursos baba-ovos! – falei debochando.

— Ah, não gosta de festas? Acho que tive uma impressão errada sobre minha cunhada, então – ela me respondeu de forma irônica – Por que você não quer encontrar Cal?

— Eu quero me encontrar com ele, apenas não sob os holofotes e olhares de todos – disse, na defensiva.

— Não sou muito de defender o reizinho, como você sabe, porém ele está te esperando. Na verdade, todos estão. Não é uma simples comemoração, é o final da Guerra, Mare – Farley, sem meias-palavras, respondeu-me.

— As coisas estão confusas, Farley – disse a verdade, finalmente cedendo.

— Na verdade, não estão confusas, são confusas – escutei sua gargalhada ruidosa do outro lado – Dê a vocês um pouco de crédito, Mare. Todos estão meio perdidos. É um recomeço, afinal. E assim não seria se não tivesse um pouco de caos.

Fiquei em silêncio. Não tinha resposta para isso. Não tinha resposta, porque, no final das contas, ela estava certa. E meu peito se apertou. Foi o primeiro momento, desde que embarquei no carro, que me permiti sentir saudades do Cal.

Vendo que eu não reagia, Farley concluiu:

— Faça uma parada e volte. Seu vestido a aguardará na mansão, basta avisar o mordomo de sua chegada e ele a conduzirá até seus aposentos. Estamos te esperando, ainda dá tempo de aproveitar o baile. Vou te fazer o favor de acalmar a Vossa Alteza.

Assim o fiz. Pedi para que conduzissem de volta à residência do primeiro-ministro. Não queria mergulhar nesse sentimento agora, no entanto era evidente que estava fugindo, não da festa e de seus convidados, mas de Cal.

A questão era: por quê?

Nós vencemos e, pela primeira vez, havia esperança de que tudo poderia ficar bem. Havia esperança de um futuro, juntos, como iguais. Eu deveria estar feliz!

Então, por que estou morta de medo? Por que quero evitá-lo? Por que nunca mais quero vê-lo?

Meu coração falha uma batida com a ideia de nunca mais botar meus olhos em Cal e sentir seu fogo se espalhando por todos os poros do meu corpo.

É, de fato, eu precisava voltar. Estava muito assustada em tê-lo, porém não se comparava ao medo de perdê-lo.

— Soldado, por favor, podemos ir mais rápido? Não quero perder muito da festa.

Cheguei na mansão do ministro pelos fundos e saltei do veículo. Não tinha tempo para esperar que estacionasse. Deixei meus sentimentos me alcançarem. Precisava vê-lo, com urgência. E se algo tivesse mudado?

Afff, Mare, como você está sendo patética! Não basta os dramas existentes, você quer encontrar mais um! Mais um obstáculo que te afasta de Cal.

Ri sozinha e agradeci à minha consciência por ter aprendido tanto com Farley sobre puxões de orelha. Consegui vê-la rolando os olhos até!

O mordomo me encontrou na entrada dos fundos e me conduziu ao meu quarto. Era possível ouvir o barulho dos convidados chegando, conversas altas, risadas e copos tilintando. A festa começara, afinal.

Banhei-me de forma rápida e, assim que peguei o vestido nas mãos, ouvi um barulho de microfone. A cerimônia solene tinha começado. Dei de ombros, não me importei muito em perdê-la na verdade. Estava dispensando mais uma obrigação, não queria receber uma medalha na frente de todos ou fazer um discurso. Ser vista e aplaudida.

Meu desejo mais profundo era entrar e sair da festa sem ser percebida. Encontrar o Cal e, depois, ir para a cabana. Porém, é óbvio que isso jamais daria certo. Era um desejo infantil, não havia qualquer chance de concretizá-lo.

Sabe-se lá onde Farley conseguiu esse vestido. Nunca tinha visto ninguém usando e não era dela, porque possuo estatura bem mais baixa. Mais um milagre para a conta da Farley.

Era de um tecido pesado, que grudava no corpo. No entanto o corte era reto, pelo que meu corpo não ficava tão à mostra. Era sexy e chique. Era vermelho e brilhante. Brilhante? Com certeza não era da Farley! Era um brilho discreto, num tom mais escuro, como um vermelho queimado, não tão chamativo assim.

Olhei-me no espelho, virei para um lado e para o outro e mirei-me de costas. Gostei. Elegante nos detalhes. Não tinha muita escolha, porque não havia outro vestido, mas me sentir bem com esse traje realmente faria a diferença nesse momento. Talvez não me sentisse tão desconfortável ao ingressar naquele salão abarrotado de gente tentando ver, ainda que de relance, a garota elétrica.

Para finalizar coloquei umas luvas brancas, que faziam par com o vestido. Desenrolei-as até alcançarem os cotovelos, ficando um pouco acima deles. Calcei um sapato branco, de salto baixo e quadrado. Gostei muito da imagem que vi refletida no espelho. 

Improvisei um coque. Meu cabelo estava um pouco bagunçado, assumindo um ar de despojado. Minhas mechas roxas estavam quase sumindo. Pela primeira vez em um bom tempo não sabia se as retocaria. Não sabia se fazia mais sentido.

Ao chegar no salão de festas, ingressei por uma entrada lateral e esgueirei-me por entre a multidão. Senti os olhares colados em mim, mas não olhei para o lado para não dar a chance de puxarem assunto ou fazerem qualquer alusão a discurso.

Pelo que pude notar já havia ocorrido os informes e a entrega de medalhas. Representantes da Guarda discursaram e Davidson estava terminando sua fala. Para fugir dos olhares alheios fiquei praticamente imobilizada encarando a frente do salão, onde estavam as autoridades que comandaram e organizaram a Revolução.

Só me dei conta do meu erro quando senti os olhos de Davidson em mim, fitando-me intensamente. Não sei o que queria me dizer, porém fiquei feliz quando ele se limitou a acenar levemente com a cabeça, sem me expor.

Na sequência, após o gesto de Davidson, que passou desapercebido para os espectadores mais desatentos, senti uma onda de calor invadindo o ambiente. Me invadindo. Cal havia notado o aceno e me localizado na plateia, aos fundos do salão.

Quando senti o calor que emanava dele, de certa forma senti como se estivesse me abraçando. Soube, por instinto, que tudo ficaria bem. Não demorou muito para que nossos olhares se cruzassem e senti seu ardor, sua saudade. Não havia mais dúvidas, portanto.

Apesar de estar ruborizada, sustentei seu olhar, queria que soubesse que estava ali por ele e que ainda o queria ao meu lado. Queria que sentisse meu amor. De soslaio, consegui notar Farley revirando os olhos como imaginei em meu diálogo interno, certamente achando toda essa cena patética. Minha amiga, essa responsabilidade é toda sua, agora você que nos aguente.

Cal não discursou, apesar de sua habilidade natural para falar em público. Estava em um local de destaque no palco, mas em nível de igualdade aos demais. Acredito que queriam passar a imagem de que o tempo da hierarquia e dos privilégios havia acabado e que, portanto, prateados, vermelhos e sanguenovos deveriam se sentar num mesmo plano.

Ao final, Davidson anunciou que a eleição de Norta ocorreria na semana seguinte, com a supervisão de uma comissão de integrantes da Guarda e representantes designados da República de Montfort. Em breve, então, Norta teria seu primeiro-ministro eleito, tanto por votos de prateados, como de vermelhos e sanguenovos.

Claro que já sabia disso, mas ouvi-lo dizer a todos, proclamando aos quatro ventos que vermelhos e sanguenovos teriam sua vontade levada em consideração me tocou. Mais do que isso, na verdade, os vermelhos e sanguenovos teriam a oportunidade de se nivelar à nobreza prateada, decidindo o futuro do país. Ao notar o poder desse discurso – o poder da verdadeira revolução –, não pude me conter e meus olhos se encheram de lágrimas. Senti esperança e confiança no futuro.

Com o final de seu discurso, houve uma salva de palmas e a festa teve início. Pode-se dizer que o clima não estivesse dos mais agráveis, havia alegria e comemoração pela vitória e pelo fim da guerra, porém havia o luto. A celebração, para o bem de todos, foi comedida.

Saí do local em que estava antes que as pessoas começassem a se dirigir para as mesas, porque ainda não queria ser vista. Tinha medo de que perdesse a coragem de falar com Cal se fosse soterrada por toda aquela burocracia e floreios de ser a garota elétrica. Não, eu queria ser Mare: uma garota normal nervosa pelo reencontro com seu namorado.

Eu disse mesmo “namorado”? Ah, que se dane!

Esgueirei-me pela borda do salão até me posicionar próximo ao palco. Cal ainda conversava com um membro do Alto Escalão da Guarda. Senti-me mais quente assim que ele me notou, mas honestamente não sabia se o calor vinha dele ou do meu nervosismo.

Não demorou muito e ele desceu, vindo ao meu encontro. Não sabia o que lhe dizer, se deveria pedir desculpas por ter duvidado ou dizer que o amava. Notei que ele também estava meio sem jeito, queria se aproximar, mas não sabia como, vacilando um pouco, na dúvida de como poderia diminuir a distância entre nós.

Por isso, optei por uma versão mais simples para nós dois: fui na direção dele e o abracei. Sem rodeios, sem palavras, só sentimentos. Um abraço longo e intenso, próprio de pessoas que se queriam bem e estavam longe há muito tempo.

— Cal...

— Não precisa dizer nada, Mare. Eu sei. Tudo o que precisamos está aqui, sempre – respondeu-me. Fiquei feliz por ter compreendido minha mensagem.

Na sequência, Cal, com toda sua força, ergueu-me do solo pela cintura como quem levanta uma pluma. Beijou-me de forma intensa e longa, cheio de saudade. O barulho dos convidados no salão foi ficando mais e mais distante cada vez que ele apertava seu corpo contra o meu e envolvia sua língua na minha.

Quando me colocou no chão, depois de alguns minutos, confesso que não tive muito tempo para ficar tímida por causa dos olhares ao nosso redor, porque Cal me puxou direto para o jardim.

No entanto, enquanto Cal me guiava consegui virar para trás a ponto de ver Farley com os olhos brilhantes, como se estivesse chorando. Ri sozinha, pois sabia que, caso a questionasse, me responderia que algo havia caído em seus olhos ou que eu estava vendo coisas.

O jardim da mansão era divino, tinha a cara de Camerdon, companheiro de Davidson. Era repleto de flores e a grama era bem cortada. Havia, também, umas trepadeiras numa armação de metal separando o jardim do restante do quintal. Próximo a eles havia alguns bancos com uma certa privacidade, por isso acreditei que estivéssemos indo para lá.

Porém, Cal me puxou em direção ao parapeito que ficava na frente do jardim, compondo a fronte majestosa da residência do Primeiro-Ministro. De lá, era possível ter uma vista bem ampla da região montanhosa e observar o céu estrelado. Era uma noite de lua cheia.

Dessa vez a iniciativa foi dele, que sequer me deixou iniciar uma conversa e me tomou em seus braços de novo. Agora, de forma mais calma e gentil, com um beijo mais lento. Só segui o fluxo dele, estava contente em estar presente.

Tem uma coisa muito interessante, curiosa até, sobre o medo: nunca vai embora. Apesar do que todos dizem sobre “vencer o medo”, a verdade é que não pode ser derrotado, extirpado, banido da sua vida. A cada respiração sentimos medo – até mesmo porque pode ser a última.

Não importa quão habilidoso seja em combate ou se tem poderes especiais, se é rico ou tem contatos, no final todos sentimos muito medo. O tempo todo. Podemos nos enganar achando que somos bons demais, valentes demais para que nos sintamos assim. Mas não se engane, o medo está ali, presente, inclusive manipulando a situação para que não seja visto.

Nada disso importa, porque mesmo que não seja visto, é sentido. Inspiramos e exalamos medo a cada respiração, transpiramos medo em cada gota de suor. É assim na guerra. É assim na paz.

Apesar de isso, e chega a ser até cômico, em algum momento cansa sentir medo, cansa de deixar de viver por causa disso – afinal, ele nunca se vai. É nesse ponto que me encontro. Estou exausta: de lutar, da batalha, de carregar o peso de meu irmão morto, de Maven morto, de ser a heroína da revolução, a garota elétrica – de tudo. De todos.

Menos de Cal.

Cal é minha esperança. Estar na presença dele me lembra o alívio de sentir a chuva gelada caindo sobre minhas costas num dia quente de verão ou de tomar um ar na superfície depois de ficar muito tempo submersa.

A minha vida toda, vivi submersa, alternando entre a invisibilidade de ser uma vermelha e visibilidade extrema, desde que me descobri sanguenova e entrei para a Guarda. Sempre vivi sob as expectativas e as merdas dos outros. Muitas merdas, a propósito.

E quando se vive assim, encontrar alguém tão quente quanto Cal pode ser sufocante. Sufocante e viciante, são os extremos entre os quais ele oscila. E eu oscilo junto, num eterno fugir e ansiar por estar perto, colada ao corpo dele, respirando sua atmosfera.

E, agora, estando nos braços dele percebo que estou farta de sentir medo e de fugir. Não quero estar distante, quero estar aqui, bem ao lado dele. Apesar de todas as adversidades, quero sentir o calor dele.

Para não perder o impulso do momento, simplesmente paro de beijá-lo e o olho nos olhos, pegando suas mãos. Digo que, desde que estejamos juntos, estará tudo bem. Cal retribui meu gesto enlaçando seus dedos nos meus, em sinal de concordância.

Não quero perder momentos assim com ele. Na verdade, não quero perder mais nenhum momento perto das pessoas que amo.

Peço para que tenha paciência comigo, porque em alguns momentos, hesitarei e irei querer fugir. No entanto, sempre vou acabar voltando para ele, porque é com ele que me sinto em casa.  

Cal me abraça de forma terna e me consola dizendo que sempre foram colocadas muitas expectativas em nós, pelos outros e por nós mesmos. As coisas ficaram um pouco confusas sobre o casal modelo que queriam que fôssemos, simbolizando o final da guerra, mas também o par que nós queríamos ser. Por fim, acrescentou que que achava normal ficar tudo bagunçado, mas que eventualmente, com a convivência tudo se ajeitaria.

E, assim, abraçando-me forte mais uma vez, retornarmos ao salão principal. Agora, de mãos dadas, juntos.

...

Após uma semana, como informou Davdison em seu discurso, o primeiro-ministro fora anunciado. Felizmente, fora eleito um vermelho: Jackson Davis. Ele fora operário no distrito das indústrias durante toda a vida e teve um papel importante na articulação da Revolução Vermelha naquele setor. Tornou-se um líder respeitado, tornando-se relativamente fácil fazer alianças entre os vermelhos das demais cidades.

Farley estava muito satisfeita, dizendo que era bom em negociações. Sabia lutar, mas deixava o conflito como última opção. Disse que era o que o país estava precisando, se quisesse mesmo ser uma República. Se Farley estava satisfeita, quem ousaria discordar?

Fui conhecê-lo somente após a eleição, em sua cerimônia de posse. Foi demais! Nunca tinha visto tantas pessoas na rua celebrando. Foi uma grande festa, com direito a pessoas segurando bandeiras “Norta livre” e “viva la revolución”, crianças correndo para um lado e para outro, e rojões. Foi, inclusive, transmitido pela televisão para que todo o país acompanhasse. Ouvi dizer que vários vermelhos haviam vindo de outras cidades para acompanhar a posse. A alegria na atmosfera era contagiante!

Jackson era um homem de meia-idade, com cabelos lisos e curtos. Tinha estatura mediana e era magro. Sua aparência física não chamava muita atenção, poderia passar desapercebido se não soubesse de seu cargo. No entanto, quando se apoderou do microfone para discursar, percebi que sabia empostar a voz de forma contundente, pelo que não me admirou que tivesse vencido a eleição. Há muito tempo o povo estava carente de alguém que dialogasse com eles, falando sua língua, sem toda pompa e circunstância prateada.

Ao final do dia, algumas pessoas “importantes” foram convidadas para um jantar na residência oficial. O palácio de Archeon, que simbolizava toda a opressão da monarquia prateada e que fora praticamente destruído durante a batalha, teria algumas partes revitalizadas e se transformaria em um museu, para que sempre fosse relembrada a história desses tempos tão difíceis de escravidão vermelha. Como um lembrete constante do que acontece quando não se respeita a vida humana.

O primeiro-ministro passaria a residir em um imóvel bem localizado em Archeon, perto do centro, na antiga sede do Alto Comando do Exército Prateado. Nesse local é que foram tomadas as principais decisões que repercutiram no Exército Vermelho, desde o alistamento até os movimentos contra Lakeland. Achei bem simbólico montar a residência no local, como sinal do fim desta era.

Antes de ser servido o jantar, Jackson pediu a atenção de todos e comunicou a formação de seu gabinete. Conforme esperado, seria composto em sua maioria por vermelhos que se destacaram na Revolução e alguns sanguenovos. Causou-me estranheza o nome de vários prateados para fazer parte de seu governo, porém imaginei que devia ter sofrido pressão para formar uma frente igualitária.

Não fazia sentido prometer construir uma nação se não estivesse disposto a tratar todos como iguais, assim me explicou Cal. Porém, honestamente, preferia que os prateados fossem deixados longe do poder. Era o mínimo de justiça que se poderia esperar depois de tantos anos de escravidão vermelha, além de estar receosa sobre o que fariam com o poder em mãos. Quando se passa a vida toda aprendendo que é superior apenas por causa da cor de seu sangue fica difícil viver com menos e conviver com pessoas que se acostumou a ver como inferiores. No entanto, minha opinião foi isolada. Até Farley concordou com Jackson e – pasme! – com Cal.

Estavam convidados vários rostos conhecidos, mas o que chamou a atenção foi o pedido do Primeiro-Ministro para conversar comigo em particular, em seu escritório.

Percebi que era um homem sem rodeios quando, logo que me sentei, disse-me que queria me fazer um convite muito especial e que não aceitaria não como resposta. Convidou-me para fazer parte de seu governo, tendo por função identificar sanguenovos e contribuir em seu treinamento. Acrescentou que sabia que não conseguiria me prender em um escritório e por ser algo que já fazia anteriormente, a chance de sucesso era grande.

Fiquei boquiaberta, tanto pelo convite como pelo fato de ter pensado em todas as variáveis, em todas as possíveis questões que poderia levantar. Realmente, era um homem preparado para o posto que iria ocupar.

De início, respondi-lhe que não sabia ao certo o que faria, mas que antes de aceitar uma responsabilidade tão grande precisava de um tempo para refletir. Ele assentiu, dizendo casualmente que era uma época difícil para se recolocar no mercado de trabalho, porque havia um excedente de mão-de-obra que somente tinha conhecimento de um ofício e que o fizera como escravo, sem contraprestação. Seria um grande desafio as pessoas se reinventarem, frisou ele, que eu tinha sorte em receber uma oferta tão boa para algo que eu fazia com prazer.

Jackson não estava para brincadeiras, notei. Saí de lá com minha decisão praticamente tomada. Afinal, não sabia fazer nada diferente de roubar e lutar. Qual emprego poderia ter? Como iria me sustentar? De fato, Jackson pagaria bem para ter a garota elétrica em seu exército, era algo que não poderia ser desconsiderado.

Retornei ao salão principal em choque e, quando contei a Cal, gargalhou.

— Ai, Mare, o que faço com você? Achou mesmo que um governo liderado por um vermelho iria deixar de fora a heroína da guerra?

Fiquei sem palavras, não tinha me preparado para nada do gênero. Na verdade, política não era muito o meu lance.

— Você deveria aceitar, Jackson tem razão. Você será paga para fazer algo que já sabe, além de manter contato com os sanguenovos, que é algo que gosta.

— Mas como? Não sei se sou capaz de fazer isso “oficialmente” e, outra, achei que dessa vez ficaríamos juntos.

— Nós iremos ficar, em qualquer circunstância. Mare, sobre o trabalho em si, não existia até você criá-lo. Ninguém sabe fazer senão você, ele existe pelas suas mãos. Vai ter que se acostumar aos autógrafos, garota elétrica – zombou de mim, passando com delicadeza a mão em seus cabelos.

— Você já sabe o que fará da vida? – indaguei-o meio confusa. Difícil pensar em alguém que foi educado para ser rei começar a procurar emprego. No entanto, respondeu-me que já tinha recebido uma oferta para ser um dos diplomatas de Norta, justamente por causa da educação que recebeu no palácio.

— Estava esperando você receber sua oferta e se decidir para depois me manifestar sobre a minha. Não queria influenciar sua decisão.

— Mas como diabos você sabia que receberia uma oferta? Quem te contou? – perguntei-lhe de novo, indignada.

— Ai, Mare, você é impossível – e se limitou a rir da minha cara. Sem pudor.

Dias depois, Cal agendou uma reunião com o Primeiro-Ministro e lhe comunicou que aceitaria sua oferta e, com grande honra, seria diplomata de Norta. Fiz a mesma coisa, aceitando a proposta que me fora feita.

Nossas sedes seriam em locais diferentes: a minha em Archeon, por causa do centro de treinamento, e a dele em Ocean Hill. Na verdade, Cal não precisava morar lá. Porém, tendo em vista que passaria mais tempo no exterior do país, o palácio de sua mãe era o mais próximo que conseguia entender como casa, como uma referência para onde voltar. Acho que a capital de Norta não trazia muitas lembranças boas, embora não tocasse muito no assunto.

De início, as coisas seriam mais complicadas, porque Cal passaria um tempo em Montfort, auxiliando na reconstrução de Lakeland por vias diplomáticas. Embora também me deslocasse bastante por Norta, minhas viagens eram mais curtas. No entanto, tinha muito trabalho a ser feito no centro de treinamento, especialmente com os novos recrutas.

Estava esperançosa. Acreditava que dias bons – ou ao menos mais calmos – finalmente estavam nascendo no horizonte.

 

xx

 Cal

 

E, assim, as coisas foram tomando seu curso natural. Mare e eu finalmente conseguimos ficar juntos sem grandes interrupções. O trabalho às vezes nos afastava, no entanto não era nada comparado à uma guerra ou ao amor de meu irmão.

A falta de Maven ainda nos dói. O tempo, com seu bálsamo, foi cicatrizando nossas feridas, diminuindo a raiva, acolhendo o sentimento de impotência, deixando mais em evidências as boas lembranças – sua inteligência aguçada, as brincadeiras, sua polidez e, por fim, seu incontestável amor por mim e Mare.

Às vezes é estranho pensar sobre isso, porque difícil de racionalizar. Como pode ser possível continuar amando uma pessoa, ou amá-la ainda mais, por causa do amor de outra. É assim comigo e Mare, amamo-nos mais porque amamos Maven e nos amamos através de Maven. Não consigo colocar em palavras, mas esse tipo de vínculo, profundo, uniu-nos ainda mais.

Compreender que meu amor e o de Maven não se opunham a Mare, mas se complementavam, foi o que salvou nosso relacionamento, eu acredito. Quando as pessoas nos olham e nos imaginam com um casal feliz ou até mesmo “ideal”, os “heróis de Norta” – que Farley não os ouça! – não imagina o que tivemos que passar para chegar até aqui. Vai além da compreensão do bem-querer, de querer estar junto, de amar e de se permitir ser amado.

Eu amo a mulher que amou meu irmão, mas também o assinou. Eu amo meu irmão, tentei salvá-lo, mas a mulher que eu amo o matou. Eu amo meu irmão, mas também desejei que morresse, especialmente quando tentou, através de seu capanga que controlava minha mente, fazer com que matasse a mulher que amo.

Esse é o tipo de coisa que não se varre para baixo do tapete. São sentimentos que só podem ser curados com o tempo, amor e um pouco de rotina. Estar em casa, na casa que foi de minha mãe, construir algo que se assemelhava a uma vida juntos permitiu-nos enxergar uma luz no fim do túnel e baixar as guardas do coração.

Seguimos sem expectativas, um dia de cada vez. Sabemos que a mesa pode virar a qualquer momento, desequilibrando-se com o mínimo movimento. Fomos forjados no campo de batalho, no fim das contas. Nada obstante, a paz tão duramente alcançada e o convívio quase que diário nos tirou a ansiedade de viver em torno do próximo conflito. Isso foi bom. Muito bom.

Até tive que aprender algo comum nas relações amorosas vermelhas: D.R. – discussão de relacionamento. Quando estou chateado ou incomodado com algo converso e expresso minha opinião. A outra pessoa também diz a opinião dela e chegamos a uma conclusão que é boa para os dois, na medida do possível.

— Cal, você não pode virar as costas, sair andando e se trancar no quarto toda vez que estiver chateado com algo! – Mare me disse uma vez.

— O que posso fazer? Você está fazendo o quer, não posso te impedir – Respondi, dando de ombros.

— Vocês, prateados, são muito esquisitos. Acham que tudo funciona na base da imposição: o que eu quero é a regra, então tem que ser seguida... – Ela está debochando de mim?

— Como assim? – Indaguei-a confuso.

Alteza, sim, estou fazendo o que quero, o que não quer dizer que seja bom para você. Podemos falar sobre isso e adotar um meio-termo, algo que te deixe feliz e me deixe feliz – Sim, ela estava debochando, tinha certeza.

— Mas, aí, você estará contrariada.

— Depende. Em alguns assuntos, sim; em outros, não. Por isso, você não pode sair marchando até o quarto e lá se trancar. Não tem como saber o que está se passando – Respondeu-me em um tom casual, mas com um sorriso brincalhão no canto dos lábios.

— Vocês, vermelhos, fazem sempre isso? – Não poderia deixar o deboche barato.

— Tecnicamente sou uma sanguenova. Porém, sim, fazemos. É o que acontece quando as pessoas estão em pé de igualdade. Quando não há um rei na conversa...

Ela gargalhou. E, como sempre, eu a segui.

— Tudo bem. O que eu faço, então? – Senti-me uma criança de novo, sendo instruído por Julian.

— Por que está chateado comigo? – Ela me perguntou, fitando-me nos olhos.

— Gostaria que você viesse morar comigo aqui, em Ocean Hill. Podemos casar se você quiser, para sua família ficar confortável também – Disse-lhe com sinceridade. Senti-me desnudado. Estranho tudo isso. Muito estranho e confuso.

— Cal, não quero me casar porque é conveniente...

— Não, não foi isso que quis dizer. Eu quero você, do jeito que for – Interrompi-a para esclarecer.

— Eu sei, Cal – respondeu-me ruborizando – e eu também quero ficar com você. A verdade, no entanto, é que começamos a ter um relacionamento normal agora. Acho muito cedo. Sem contar que você viaja muito e minha sede fica em Archeon. Não sei seria viável morar aqui. E, por fim, eu gostaria de ter minha casa também.

— Em Palafitas?

— Não, não suportaria o lembrete diário de que Shade não vai mais voltar. Acho que é por isso que meus pais não retornaram, preferindo permanecer em Montofort.

— Com Farley trabalhando no comando do Exército de Norta tudo pode mudar – Alertei-a, mas também tentei convencê-la.

— Sim, mas eles ainda acham que a cabana é o lugar mais seguro para criar Clara. Ela pode ter uma infância muito bonita em Ascendant, em meio à natureza.

Seguiu-se alguns minutos de silêncio.

— Não quero deixar de ser filha para ser esposa, Cal. Essa é a primeira vez que tenho um trabalho e quero aprender como exercê-lo.

— Entendo. Como ficamos, então?

— Posso ficar aqui, enquanto minha presença for necessária na região ou quando tivermos uma folga juntos. Fora isso, quero encontrar um lugar meu. Você será sempre bem-vindo, mas será a minha casa. Você pode viver assim?

— Posso, sim. Ocean Hill pode ser nosso ponto de encontro, então?

— Sim, nosso refúgio – Ela me olhava intensamente, acho que ficou feliz com o resultado da “D.R.”

Segurei seu queixo com o polegar direito e passei a mão esquerda na lateral de sua face. Olhei-a nos olhos e nos beijamos com delicadeza. Faria isso dar certo, custe o que custar.

— Foi tão difícil assim, Alteza? – Ela tornou a debochar de mim depois que nossos lábios se separaram.

— Foi meio estranho. Ficamos muito expostos. Mas acho que posso me acostumar.

Rimos juntos mais uma vez antes de puxá-la para mais um beijo, dessa vez intenso e ardente.

...

Era um dia comum, por isso não sei precisar a data. Estávamos em Ocean Hill. Mare havia decidido estender sua estadia na “minha” casa para que pudéssemos ficar mais uns dias juntos, antes de retornarmos a Archeon.

Na função de diplomata de Norta, viajava com frequência às Repúblicas de Montfort e Lakeland, tratando de assuntos de Estado. No entanto, quando não havia demandas externas meu trabalho era burocrático e era exercido em Archeon.

O cargo que Mare ocupava também tinha sede em Archeon. No entanto, ela viajava entre as várias cidades, sempre rastreando sanguenovos e cuidando do treinamento dos antigos e novos recrutas.

Evidente que, com o fim da guerra, não se fazia mais necessário treinar com a mesma intensidade ou mesmo viver nos acampamentos. No entanto, os sanguenovos acabaram por se unir em uma espécie de família. Não é difícil de entender, afinal de contas não se encaixavam entre os vermelhos, tampouco entres os prateados. Além disso, eles tinham habilidades a serem refinadas e precisavam aprender a controlar seus poderes.

Porém, no meu sentir, não era só. O primeiro-ministro vermelho tinha muito medo de uma revanche prateada. Não era algo que fosse dito, tampouco admitido por ele, mas pairava no ar. Ele não fora capaz de desmembrar as frentes do Grande Exército de Norta, apesar de ter dispensado os mais velhos. Caso agisse de forma diversa, sustentou ele, acabaria com a fonte de renda dos soldados e haveria desemprego generalizado.

No fundo, contudo, não era apenas isso. Ele estava sendo cauteloso, não queria ser pego desprevenido. Afinal, que prateado ousaria atentar contra a República sabendo que seu Exército ainda estava praticamente intacto e era composto apenas por vermelhos e sanguenovos?

Estávamos em paz, mas havia um clima no tenso no ar. Qualquer fósforo poderia explodir o barril de pólvora. Era uma paz mantida às custas de armas. Mare dizia que eu estava paranoico, que estava tudo bem e que o Primeiro-Ministro estava sendo sensato em defender a Revolução Vermelha, assim como o território de Norta de eventuais invasões.

Ela se esquece, porém, que fui treinado para a Guerra e sei quando nuvens negras se avizinham no horizonte.

Não demorou muito para que minha teoria se confirmasse.

Tínhamos acabado de jantar e estávamos na sacada olhando para a cidade abaixo de nós. Eram raros esses momentos de paz com Mare, sem trabalho, sem preocupações da família e dos sanguenovos, então gostava de aproveitar cada segundo. Abraçava-a pela cintura, seu corpo na frente do meu, meu queixo apoiado no topo de sua cabeça. Estando em contato com sua pele, o tom de voz de Mare soava diferente e eu, é claro, achava o máximo.

De repente, observo certo movimento dos guardas no muro. Eles conversam entre si e, ao que parecia, com um interlocutor do lado externo dos muros. Eles sabiam quais eram as ordens e mandariam o mensageiro embora sem alarde. Tentei disfarçar para não acabar com o momento romântico com Mare, mas não teve jeito. Se não tivesse preocupado, provavelmente teria rido. Até parece que conseguiria enganar a heroína da revolução e seus sentidos para lá de aguçados.

— O que está acontecendo? – Mare disse e seu corpo ficou tenso imediatamente.

— Acredito que seja algum bêbado inconveniente vindo pedir favores na residência do diplomata e da garota elétrica – respondi-lhe beijando o lóbulo de sua orelha.

— Então ele veio no local errado, já que essa é a sua casa – ela retrucou brincalhona.

— Quando você fica aqui é nossa casa. Portanto, neste momento, é nossa.

Antes que pudéssemos continuar a discussão acerca da propriedade da residência de Ocean Hill, fui chamado por um guarda na porta da sala. Tratava-se de uma mensagem.

— Boa noite, senhor! Perdão pela intromissão, mas tenho uma mensagem urgente do Falcão – Jonas me disse, de forma solene e até mesmo constrangida, passando-me um pedaço de papel selado.

— Obrigada, Jonas. Ele está me aguardando no escritório? – Sabia que era algo urgente. Falcão não me procuraria em casa, durante a noite, se não fosse algo importante. Talvez até mesmo sigiloso, que o Primeiro-Ministro e os integrantes de seu governo não pudessem ter conhecimento.

— Não, senhor. Ele apenas entregou a mensagem e disse que irá procurá-lo em breve – Assentindo, Jonas se retirou.

Li a mensagem na porta da sala, antes que Mare se aproximasse. Não sabia de seu teor ao certo e tinha ciência do apreço dela pelo Primeiro-Ministro, então preferi ser cauteloso.

Não podia ser real! Não queria crer no absurdo que meus olhos estavam lendo! Como?

Dirigi-me à lareira, que estava acesa, e atirei a mensagem, observando-a desaparecer deste mundo. Respirei fundo e percebi meus ombros tensos. Não acredito que vamos passar por isso, de novo.

Só então me permiti olhar para uma Mare inquieta e de testas franzidas, acompanhando meus movimentos com seu olhar de lince. Poderia mentir para ela, poderia dizer que era um problema de diplomacia e que não deveria se preocupar. A questão é: eu não queria mais mentir para Mare. Desta vez não queria que passássemos a guerra separados. E, sim, haveria guerra.

— Você está me assustando, Cal – a entonação de sua voz expressava a confusão de seus pensamentos.

Caminhei até ela, que surpreendentemente ainda me aguardava na sacada. Só consegui encará-la quando estávamos a alguns centímetros de distância. Não sabia como lhe contaria o conteúdo da mensagem, pois partiria seu coração.

— Mare, o que irei te contar não pode sair desta sala. Só eu e você sabemos dessa mensagem até o presente momento e, nesse caso, o sigilo é fundamental. É o elemento surpresa.

— Sim, claro – Mare assentiu.

— Falcão é, por assim dizer, um dos meus espiões. Claro que esse é seu nome de guerra. Desde que assumi o posto como diplomata, por causa das relações ainda não muito claras com as outras Repúblicas, mantive informantes espalhados. Para não ser pego de surpresa caso algo surgisse – justifiquei.

— Cal, você acha que Davidson faria algo contra nós? Contra Norta? – Perguntou-me surpresa, quase ofendida com tal suposição de minha parte.

— Não sei, minha querida. Esse momento é de muita incerteza, então estou fazendo meu papel e me mantendo informado. Estamos em paz, Mare, mas é uma paz delicada. Temos que vigiar para conservá-la. E não se engane, tenho certeza de que Davidson também está fazendo seu dever de casa e se mantendo muito bem informado do que se passa aqui.

Mesmo que aparentasse estar contrariada, ela não disse mais nada, o que me motivou a continuar.

— Há cerca de três meses, recebemos denúncias do norte de Norta, dando conta que alguns vermelhos haviam desaparecido de suas residências, na calada da noite. Como as notícias persistiram, enviei Falcão e sua equipe para investigar e tentar descobrir o que estava acontecendo. A mensagem fala que durante a última quinzena desapareceram também mulheres e crianças vermelhas e que encontraram o local que os vermelhos estão: um galpão numa propriedade rural, afastada da cidade.

— CAL, ELES FORAM SEQUESTRADOS! ESTÃO PRESOS! PRECISAMOS LIBERTÁ-LOS AGORA! – Era possível sentir a eletricidade emanando dela. Não só. A dor de seu coração, que ela segurava para não escorrer pelos olhos e sair pela garganta.

— Não podemos...

— COMO VOCÊ SE ATREVE A DIZER ISSO, TIBERIAS? ATÉ QUANDO VOCÊ VAI FAZER POUCO CASO DOS VERMELHOS? – Mare saiu da sacada e adentrou a sala correndo. Para impedir que deixasse o cômodo, lancei labaredas em direção à porta, trancando-a.

— Mare, ninguém pode saber! Por favor, acalme-se!

— NÃO ME PEÇA PARA ME ACALMAR! É O MEU POVO, CAL! O MEU, NÃO O SEU, VOCÊ NUNCA VAI ENTENDER! – Frustrada e, de costas para mim, encarava a porta cujas dobradiças haviam sido derretidas pelo fogo para serem seladas.

Com cautela aproximei-me dela. Não seria fácil lidar com sua raiva. Queria abraçá-la e confortar sua dor. Todavia não era o momento, Mare jamais aceitaria.

— Você acredita realmente, do fundo do seu coração, que eu não queria já ter ido ao local quando a primeira denúncia surgiu? Faz meses que meus espiões estão averiguando e até agora não descobrimos quem está por trás disso tudo nem o que pretende! Se nos precipitarmos agora todos os vermelhos podem ser mortos antes que consigamos pousar na fazenda.

Ela soltou o ar que estava prendendo. Aparentemente consegui alcançá-la. Bom, pelo menos não estava mais gritando.

De repente Mare virou-se e me encarou. Algo havia se quebrado em seu olhar. Ela estava segurando cada pedacinho, para que os estilhaços não se espatifassem sobre o chão, ali, na frente dela. Não desmoronaria, não antes de encontrar uma solução, se bem a conhecia.

— Amanhã falaremos com o Primeiro-Ministro, Cal. Ele terá que reunir o Exército e eu liderarei os sanguenovos. Esses vermelhos serão resgatados imediatamente.

— Não podemos, Mare – Ela se exasperou, mas prossegui antes que tornasse a gritar – Não podemos arriscar um movimento até saber qual o papel dele nisso tudo. Se é que ele tem algum papel, é claro.

Respirei fundo e passei a mão sobre minha fronte. Não é possível que o Primeiro-Ministro ignorasse o que se passava lá, se até eu sabia. A questão era: por que o silêncio? Por que não havia nenhuma movimentação?

 - O que faremos, então? – Ela me perguntou. O choro estava mais perto, já podíamos sentir.

— Amanhã, Falcão entrará em contato para contar tudo o que descobriu. A mensagem não dava tantos detalhes, para que a informação não caísse em mãos erradas em caso de interceptação. Então, e só então, poderemos pensar em alguma estratégia.

Ela assentiu e tornou a se virar para a porta. Estava se concentrando para invocar sua eletricidade, abrir a porta e deixar a sala. Não poderia permitir, não sem antes falar com ela. Seria impossível alcançá-la se atravessasse o corredor.

Aproximei-me por suas costas e coloquei as mãos em seus ombros. Ela se assustou com meu toque, já que estava concentrada olhando para a porta, e ficou na defensiva.

— Eu sinto muito, Mare. Lamento pelo que está acontecendo e por não podermos agir de imediato.

Mare parou, mas ainda se recusava a olhar para mim, encarando a porta. Não era exatamente um incentivo, mas pelo menos não me interrompeu. Por isso, resolvi continuar.

— Nós devemos nos preparar para uma possível guerra. Quem teve a coragem de fazer tal crueldade com os vermelhos provavelmente tem poder, dinheiro e conexões. Não sabemos até onde se estende suas redes de comunicação. Temos que estar atentos e prontos para tudo.

Mare virou-se e olhou para mim. Seus olhos marejavam lágrimas.

— Não acredito que vamos passar por isso de novo, Cal! – De forma inesperada, ela se virou, rompeu com o espaço entre nossos corpos e abraçou minha cintura, escondendo o rosto em meu peito. Os soluços não demoraram a aparecer depois que afaguei seus cabelos.

— Nem eu, Mare. Se pudesse não te envolveria....

— Não se atreva! – Sua voz abafada pelo meu peito.

— Claro que não, só queria ter certeza de que algo estava acontecendo antes de contar. Não queria que você sofresse, que os vermelhos sofressem, porém, se é para lutar, dessa vez estaremos juntos, sem brigas, sem distanciamento.

Ela não me respondeu, mas apertou minha cintura com mais força.

Com muito cuidado e sem soltá-la do meu abraço, conduzi-a ao nosso quarto. Aproveitemos a calmaria que antecede a tempestade, pois.


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