Sobre tempestades e calmaria escrita por GabiN HD


Capítulo 1
Capítulo 1




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Sobre tempestades e calmaria

Após trono destruído, Mare e Cal enfrentam novos desafios na construção da República de Norta, assim como no caminho de volta ao relacionamento que possuíam.

 

 

Mare

 

            Suavemente, os raios de sol entram pela janela do quarto e vão beijando minha pele, aquecendo-a aos poucos. Sinto-me preguiçosa, não quero abrir os olhos, não quero acordar desse sonho. Sim, passar dez dias com Cal em uma cabana no meio da natureza, embora tenha sido realidade, não posso deixar de chamar de sonho. Menos do que eu queria, mas certamente muito mais do que merecia.

            Movo-me lentamente, quero observá-lo enquanto ainda está dormindo, enquanto ainda não tem o peso do mundo nas costas. Solto-me devagar de seu abraço de aço e me viro levantando seu braço com cuidado para não o acordar e o encaro, suspirando.

            Quem o olha assim, não pode dizer que tem problemas dormir, sendo assombrado por pesadelos da morte de seus pais, de seu irmão e da guerra. É apenas o Rei Tiberias repousando. Sua pele prateada lisa, seus cabelos pretos bem cortados e todos seus músculos bem definidos denunciam o prateado criado em berço de ouro para servir o Reino de Norta.

            No entanto, olhos atentos percebem as olheiras sob seus olhos, alguns fios de cabelo branco destacando-se em sua cabeleira negra e cicatrizes sobre sua tez bem esculpida. Aí está o Soldado Calore, aquele que conduziu os rebeldes vermelhos e sanguenovos durante diversas batalhas, aquele que ainda sente os efeitos da abdição. São detalhes singelos, que somente quem o conhece tão bem pode enxergar.

            Somos muito jovens, mas já passamos por muita coisa, ora juntos, ora separados. Certamente, nossa idade física não condiz com nossa aparência e com a maturidade que adquirimos. Não sei dizer qual é a idade da Mare que está observando tudo isso e pensando nos próximos passos a seguir. 

            Antes de cair numa espiral de culpa, repassando enlouquecidamente os eventos passados, mais raios de sol invadem o quarto em que dormirmos, tornando incômodo ficar com os olhos fechados.

Raios de sol que representam o lembrete de um novo dia, do último dia meu e dele.

Esse é o nosso décimo dia aqui, numa pequena e aconchegante cabana em Montfort, longe da civilização. O primeiro-ministro nos fez essa gentileza, emprestando sua cabana pessoal para que eu e Cal pudéssemos descansar e conversar longe de todos olhos curiosos.

Os boatos são inevitáveis, mas não me incomodam mais. Temos tantos outros problemas. Não vale a pena gastar energia com preocupações sobre o que a Guarda, os prateados e até mesmo os sanguenovos pensam sobre nós enquanto casal.

Se pudessem palpitar, se aceitássemos ser marionetes, diriam que seria melhor não aparecermos juntos por ora, enquanto os ânimos não se acalmam. Isso poderia afastar diversos nobres prateados das discussões sobre a formação da República. Para eles, qualquer coisa, menos se aliar aos vermelhos.

Como disse, não poderia me importar menos. Tenho meus próprios fantasmas no armário. Não posso me dar ao luxo de carregar os dos outros, é o que venho aprendendo nesse meu período de isolamento.

Todavia, esses dias têm sido muito importantes. Nossa ligação é muito forte, disso não há dúvidas. Foi forjada durante a guerra, em um ambiente insalubre, mas que também permite ver quem está lutando ao nosso lado na trincheira e quem apenas nos usa por nossas habilidades e posições políticas.

Somos diferentes, é óbvio. Uma sanguenova, nascida vermelha em Palafitas, jamais se nivelará ao herdeiro legítimo de Norta. No entanto, apesar de ter tudo contra nós, algo nos uniu e o nosso amor floresceu. Como uma flor nascida no asfalto.

Não sabemos dizer onde nem porque começou, mas o fato é que estamos aqui, juntos, e buscando formas de encarar e viver esse sentimento insano, que por vezes me faz sentir que estou em uma montanha-russa.

Já havia dito ao Cal, mas nesses dias tive a oportunidade de reforçar. Sem expectativas. Ainda me sinto tão quebrada e por vezes tão indigna de seu amor que tenho vontade de afastá-lo.

Cal sabe disso e, felizmente, não me permite. Lutamos muito para chegar aqui, ele me disse, agora é hora de colher os frutos. Pois é, essa colocação é linda, mas também é amarga. Não é tão fácil quanto parece, é como colher os frutos de uma árvore à beira de um penhasco.

Como superar de todos esses cadáveres no nosso caminho? Como ignorar que eu matei seu irmão? O homem que eu também amei...

Inesperadamente, esse período de descanso permitiu não só nossa aproximação física, mas também emocional. Ao que parece estamos nos dando conta que somente vai funcionar se formos honestos um com o outro.

Cal me disse que os ressentimentos vão se tornando menores conforme vamos os encarando. Fugir nunca foi uma opção para ele, nem mesmo de sentimentos dolorosos. Imagino a força que ele teve que ter para conseguir ler o diário da mãe. Queria ter essa coragem.

Subitamente uma onda de calor familiar invade o ambiente e um sorriso brota no face do prateado.

— Está velando meu sono, Mare Barrow? – seu tom é brincalhão e ele faz uma careta, fingindo surpresa – Fico lisonjeado!

— Não se empolgue, Tiberias – uso o nome para provocá-lo, pois sei que não gosta que o chame assim, de forma impessoal.

Ele ri alto.

— Mare, Mare, sabe dar uma resposta afiada como ninguém! – gargalhamos juntos.

— Vou sentir falta de seu humor ácido em Norta – ele diz, passando as mãos em meus cabelos – e dessas mechas roxas também. Combinam muito bem com você, garota elétrica.

            Meu sorriso morre. Não estou pronta para a despedida, para me separar dele novamente, tampouco para retornar à Ascendant. Não quero enfrentar as opções que tenho diante de mim.

            Ele passa os dedos sob meu cenho franzido, olhando-me de uma forma tão doce que até dói.

            - Você não precisa decidir tudo agora, Mare. Nós já falamos sobre isso: sem planos, sem expectativa, sem pressa.

            - Eu sei, Cal. Na verdade, não é isso. Estou pensando no que farei em Montfort depois que você se for. Não me sinto pronta para regressar ao front de batalha, mas acredito que você tinha razão quando me disse que não aguentaria ficar parada por muito tempo.

— Mare... Vejo que você segue se torturando – Cal me repreende gentilmente.

— Sinto-me inquieta, mas não sei qual direção tomar. Tenho a sensação de ter abandonado a Guarda Escarlate.

            Disse-lhe de uma vez com a voz entrecortada, sem fôlego. Exalei o ar, só então percebendo que o estava retendo. Noto que estou um pouco arqueada, músculos rijos.

            É, Mare, lá vamos nós de novo... Mergulhando em tensão, voltando à realidade...

            É fácil esquecer do mundo com Cal ao meu lado, imersos na natureza e presos na cabana por conta de uma nevasca.

Desde nosso reencontro, desde nossa conversa franca sobre nossos medos e sentimentos, vejo que o sorriso dele ao meu lado tem sido mais solto, mais leve.

Eu, por outro lado, me sinto reconfortada com seu calor. Traz-me aquela sensação de estar enrolada em um edredom num dia frio. Traz-me aquela sensação de casa.

Estando em casa fica fácil esquecer de todos e de que existe uma guerra lá fora. Aconchegada, fica fácil falar dos meus sentimentos com naturalidade. É como se nada fosse capaz de me alcançar.

Evidente que não foi nada fácil sair da Mare Mártir, a garota elétrica que tinha que levar toda a responsabilidade nas costas: encontrar os sanguenovos antes de Maven, treiná-los e, por fim, vencer a guerra. No entanto, reencontrar a Mare Barrow durante a jornada, aquela nascida em Palafitas com uma família grande e desajeitada, mas que tem muito amor para dar, realmente é algo sem preço.

Sempre levarei a responsabilidade da guerra comigo, mas fica menos difícil quando é compartilhada com outras pessoas, como Farley, Kilorn... Cal! Na verdade, não sei em que momento me perdi, porém é indescritível a sensação de voltar, de ter me permitido voltar e ter percebido como as pessoas que me amam nunca de fato saíram do lado meu lado. Eu as afastei e agora estamos nos aproximando, a passos lentos, porém certeiros.

Rio comigo mesma. Me pego pensando se é a circunstância ou se é uma nova habilidade de Cal: fazer-me falar sobre coisas que guardava apenas para mim. Faço anotação mental de observar isso com mais atenção ao longo dos próximos dias.

            Ele, por seu turno, fica confuso, esperando meu tempo, mas também sem entender como fui de frustração a riso sufocado em segundos.

            Não tem por que não ser sincera, não compartilhar como me sinto. Não aqui e agora, no meio do nada, somente nós dois. Deixo o depois para depois.

            - São muitos pensamentos, Cal – estendo minha mão para alcançar a bochecha dele, acariciando-a – Sinto-me em dívida com a Guarda, como se tivesse os abandonado, quando continuam a travar uma guerra em Lakeland. Mas, ao mesmo tempo, não quero regressar. Não sei se quero lutar mais, se quero mais usar minha eletricidade para matar – quando percebo já cruzei meus braços no peito.

            - Então, não volte. Todo mundo sabe que você fez tudo que podia para acabar com a monarquia em Norta. Diríamos que você já fez sua parte, até mais. Você não está desistindo, apenas já fez o que podia. São coisas diferentes. Mare Barrow não se resume à garota elétrica.

            - A Guarda precisa dos meus poderes para vencer Lakeland – afirmo sem aceitar questionamentos.

            - A Guarda tem outros eletricons à sua disposição, Mare. Claro que toda ajuda é bem-vinda, mas não somos tão indispensáveis como imaginamos – diz ele, em tom mais sério – A Guarda tem que ganhar seu próprio espaço em Lakeland, conquistando vermelhos e sanguenovos para a causa.

            Inspiro e abaixo a cabeça, pensativa. Afasto meu corpo do dele. Preciso de espaço.

            - Você acredita que existe lugar para mim nesse novo mundo, Cal? – Por que ainda sinto que morri junto com o reino de Norta?

            Cal não me deixa me esconder no meu casulo, pressionando meu queixo e me obrigando a mirá-lo.

            - Mare, esse novo mundo é a cara dos sanguenovos, eles têm tudo a ver. A essência deles se entrelaçam. Não imagino outro lugar para você que não o mundo novo, com prateados, sanguenovos e vermelhos ocupando o mesmo espaço, um espaço de igualdade. Você ajudou a quebrar os elos das correntes e abriu caminho para um mundo novo! Essa vitória é sua.

            Não só minha, Cal. Mare teria acabado morta como Mareena Tiranos se não fosse a Guarda Escarlate.

            - Então por que me sinto tão presa ao passado? Como se tivesse morrido com a batalha em Norta?

            Silêncio.

            É óbvio demais. Nós dois sabemos a resposta.

            Maven.

            — Porque morremos, Mare. Incontáveis vezes durante o último ano. Durante a guerra, partes nossas morreram com pessoas que amávamos, com colegas e mesmo com desconhecidos que acabaram por ser pegos no fogo cruzado. Morremos como nossas cidades morreram.

            Seu tom está afetado e o ambiente se torna cada vez mais quente. Sempre muito bom em discursos, Cal continua.

            - Não temos como reverter essa situação. Estamos aqui, agora, e todas nossas vitórias e perdas nos trouxeram até aqui. Não adianta negar o que somos ou o que fizemos. Nunca mais retornaremos ao que éramos. Aceitação é o único caminho possível.

            Quando o observo mais atentamente, vejo seu peito inflado, ombros abertos. Rei Tiberias apresentou seu discurso.

            - Vejo que você está se saindo bem em seguir em frente – meu tom é ácido. De repente, sinto-me muito irritada. Como se fosse possível esquecer tudo em um passe de mágica, deixar Shade, Maven e tantos outras pessoas no passado, ignorando que eles habitam cada parte do meu ser.

            - Julian tem me ajudado. Temos falado bastante. Ele diz que não podemos seguir em frente se deixarmos uma âncora nos prender ao passado – Cal acrescenta olhando para baixo, resignado.

            - Imagino que Julian dê bons conselhos... É bom ter alguém para falar, mas não me sinto pronta para me abrir – Não só isso. Ainda não consigo confiar em ninguém depois de tantas traições.

            - Entendo. Difícil se abrir com alguém possa tirar vantagem da sua situação também.

            Bingo, alteza.

            O rosto de Cal se ilumina com uma nova ideia. Seu sorriso se abre genuinamente.

            - Você poderia fazer como minha mãe e escrever seus pensamentos em um diário – diz Cal com uma mão no queixo, pensativo – Certamente, ela estava em uma situação semelhante com muito para dizer e poucos para confiar. Pode ajudar a organizar seus pensamentos.

            Permito-me olhá-lo com intensidade, mergulhando em seus olhos de cor bronze. Cal cresceu demais nesses últimos tempos. Aplacar a ira dos prateados de Norta não tem sido uma tarefa fácil.

            Assim como não é fácil lidar com a morte de Maven.

Seu irmão foi morto pela mulher que ama. Mulher essa que também o amava. Não sei se algum dia poderemos superara isso. Contudo, não deixo me levar por tais pensamentos, voltando o foco à nossa conversa. Fecho-me para que não perceba minha dor.   

            - Me sinto uma adolescente escrevendo em um diário, Cal – debocho.

            - Mare, isso não é brincadeira – seu tom expressa sua chateação - Não posso partir e deixar você aqui desse jeito: sozinha! Você precisa se permitir recomeçar.

            Minha ficha cai. Cal irá embora daqui a alguns dias. Nós deixaremos a cabana amanhã bem cedo. Nosso último dia juntos, aproveitando de toda essa privacidade e intimidade. Dessa paz!

            Meu peito se aperta, meu coração dispara. Passou tão rápido!

            Novamente, o tempo decidiu por mim. O sol começou a derreter o gelo acumulado da última nevasca, abrindo-se novos caminhos no meu, no nosso horizonte. É hora de partir.

 

xxx

 

Cal

           

Estive sempre tão indeciso sobre meus deveres como futuro rei de Norta e meus sentimentos por Mare. Quando finalmente me decidi, estive à beira de perdê-la. Isso não poderia ser mais irônico.

            Não é bem ironia, Cal. Você sabe que Maven sempre habitará os pensamentos dela.

            Mavey.          

            Suspiro profundamente. Não sei como superar tudo isso. Na verdade, estou deixando a corrente me levar. Tenho escutado Julian e, pela primeira vez na vida, não fazendo o que esperam de mim e tentando descobrir o que eu realmente quero fazer.

            Não tenho dúvidas sobre uma baixinha eletricon. Aquela que quando fica irritada tem vontade de eletrocutar tudo. Esse tempo de incerteza de sentimentos já se foi.

            As pessoas somente dão valor àquilo que perdem.

            Entendi por que clichês são clichês. Porque muitas pessoas passaram por situação semelhante e chegaram à conclusão idêntica, passando seu aprendizado para frente, para que outras pessoas não sofram do mesmo mal.

            Olha, devo admitir que virei estatística. Somente acreditei quando paguei com meu próprio sofrimento. Quando Mare tornou-se refém de Maven queria arrancar a dor do meu peito e queimá-la com meu fogo. Arrependi-me de cada momento de hesitação.

            Acredito que se Maven tivesse a consciência de que meu sentimento por Mare se consolidaria dessa maneira, talvez nunca a tivesse feito refém ou a exibido para os cidadãos do Reino de Norta, obrigando-me a vê-la presa, acuada e torturada.

            Assim como ela lutou por nós dois antes, agora eu o faço. Quero que ela me escolha livremente, mas não vou deixar de tentar reconquistar seu afeto e, principalmente, sua confiança.

            Mare precisa se reencontrar, voltar a confiar nela mesma e em seu poder. Já fez tanto a vontade alheia, que está na hora de focar na própria. Por isso que espero o tempo dela, por amor, mas também por ver que ela não está bem, que está hesitante, como se cada toque seu pudesse provocar o caos.

            Cicatrizes de guerra não são fáceis. Não sei se com o tempo fica mais fácil, tio Julian diz que sim, desde que não fique parado e botando o dedo na ferida. Quem sou eu para discutir com a pessoa mais inteligente que conheço?

            Quando falei para Mare, na cabana, sobre o diário, ela não levou a sério. Realmente, se não tivesse lido o diário de minha mãe, talvez também duvidasse de seu potencial. As palavras dela, nas letras de meu tio Julian, foi a luz que me tirou da escuridão, que me fez compreender meu papel no mundo e me possibilitou seguir o que meu coração dizia.

            Ainda tenho o sentimento de traição em meu peito. Traição a meu pai, a minha avó e aos prateados do Reino de Norta. Mais uma coisa que Tio Julian afirma que irá amenizar. Ele diz que, conforme a República de Norta for se formando, o peso nos meus ombros vai ceder. Espero que ele esteja certo.

            Além disso, Tio Julian me diz que, naquele momento, eu não tinha muitas opções. Se não tivesse aceitado a condição da Guarda Escarlate de renúncia ao trono para a formação da aliança, a batalha contra Lakeland estaria perdida e todos nós, mortos.

            Na ocasião, havia perdido muitos aliados, dentre eles Lorde Samos. Estava encurralado em minha própria cidade. Não poderia exigir muito e a Guarda soube tirar vantagem disso.

            Foi uma decisão que demorou muito para ser tomada e, certamente, demorarei ainda mais tempo para compreendê-la em sua totalidade. Foi muito difícil me ver como marionete da minha avó, a Rainha Anabel, assim como os antigos “hábitos” dos nobres prateados retornando ao salão do reino, juntando forças para me derrubar, para ridicularizar minha palavra de honra quanto à mudança do tratamento para com os vermelhos, bem como pelo espaço que passariam a ocupar na sociedade.

            Só agora começo a perceber o quanto foi dolorido ver todos os ideais pelos quais lutei, especialmente para defender o nome da minha família, esvaindo-se em um estalar de dedos por causa da velha política dos prateados. Acredito que, inconscientemente, fui notando que não havia espaço para as mudanças que eu queria fazer – pelo menos não de forma pacífica.

            Ademais, apesar de o ego prateado falar mais alto algumas vezes, não havia mais condições morais de sustentar a escravidão vermelha. Não era justo tratar pessoas daquela forma, independente de sua origem. Sempre tive isso em mim, mas acreditava que poderia fazer isso me valendo das engrenagens de uma máquina já existente. Não poderia ser mais tolo.

            Ainda me machuca quando olho e vejo o príncipe, e depois o rei, que fui. Sempre arrogante. Sempre achando que aquele lugar era meu “por direito”, sem nunca questionar nada. Senti-me muito deslocado em meio aos vermelhos por causa disso, mas felizmente o tempo – e Mare – têm amenizado essa enxurrada de novas sensações. 

            Claro que meu amor por Mare influenciou. Tê-la do outro lado, longe, mas principalmente desaprovando meus atos como rei me doía muito. No fundo, sabia que ela jamais abandonaria os vermelhos e sanguenovos, mas preferi me enganar, alimentando a esperança de que nosso amor falaria mais alto e ela me seguiria.

            Realmente, fui muito ingênuo, para não dizer mau caráter, esperando que ela abdicasse de seu papel de heroína da revolução para se sentar ao meu lado como consorte – sequer o posto de rainha poderia oferecê-la, vez que seria dado à Evangeline, de modo assegurar a aliança com a Casa Samos.

            Acho que, no fundo, esperava que ela ocuparia seu “papel natural” na sociedade, ao lado de seu marido. Mas é óbvio que isso nunca aconteceria. Em primeiro lugar, porque Mare é uma guerreira e não tem tato com política. Jamais aceitaria passar suas tardes em um salão discutindo com nobres prateados, insatisfeitos com os novos lugares ocupados pelos vermelhos.

            E, em segundo lugar, porque Mare já havia sido prisioneira naquele mesmo palácio. Ela já foi, nas palavras dela, “a cachorrinha” de Maven, jamais aceitaria nada que remetesse a tal situação.

            Sabia que não conseguiria esquecê-la, mas jamais pensei que a distância doeria tanto, chegando a ser sufocante às vezes. Não ter seu afeto, seus carinhos e suas ideias sempre muito precisas foi tornando o ato de governar muito mais complicado que o esperado.

            Não sei se meu pai não tinha tantos problemas assim ou simplesmente os escondia. Claro que ele não enfrentou uma situação de guerra civil e guerra externa ao mesmo tempo, porém, ao contrário do que muitos pensam, um trono nunca está inteiramente garantido. Meu pai é o exemplo vivo de que o inimigo mora ao lado, inclusive dormindo na mesma cama.

            Tio Julian insiste que entrei para a história como o rei nortenho que abriu as portas para a democracia quando dei ouvidos à minha mãe, aquela que não queria seu filho fosse mais um rei guerreiro, um rei general. Saber que ela se sentia da mesma forma que eu, que via as coisas da mesma maneira que eu, foi como receber seu abraço. Não tenho memórias dela, mas sei dizer que nesse momento o amor dela superou o tempo, até mesmo a morte. Senti-me em seu colo.

            E tudo isso nos trouxe até aqui.

Tem sido um longo caminho, para todos nós. Mesmo para Julian e Sara, que hoje finalmente vão se casar. Nunca duvidaram de seu amor, tampouco precisaram prová-lo durante uma guerra. No entanto, terem vivido separados, mesmo estando tão perto, já é castigo suficiente.

            Não quero o mesmo destino para Mare, por isso, com a ajuda de Camerdon, consegui um livro em branco, com as capas de couro marrom, que pode ser usado como diário. Pedi que colocasse um cadeado na lateral, garantindo a privacidade dela. É meu presente de despedida para Mare. Quero que ela tenha companhia na minha ausência.

            Óbvio que iremos nos falar por rádio, mas é diferente, quero um espaço que ela tenha confiança que não será invadido.

            Espero que funcione!

            Assim escrevi o bilhete de despedida:

            “Mare, estou partindo hoje com a certeza que nos veremos em breve. Meu coração está com você. Dê uma chance a este diário, dê uma chance a você. Te amo. Sempre seu, Cal.”

            Quando me retornei romântico é um mistério. Gargalho sozinho na escrivaninha dos meus aposentos ao finalizar o bilhete. Dobro o papel e guardo no interior do livro, trancando as laterais.

Esperei que Mare fosse aos aposentos em que seus pais estavam hospedados, entrei em seu quarto sorrateiramente e coloquei o presente no fundo da mala dela. Quando o encontrar já estarei bem longe de Montfort.

            Retornei ao meu quarto e terminei de me vestir. Estou trajando uma túnica preta, formal, própria para essa ocasião. Já faz algum tempo que abandonei as vestimentas caras e glamurosas do outrora Príncipe Tiberias. Claro que minha nova tarefa demandava estar bem vestido para ser aceito pelos prateados que ainda estavam reticentes em aceitar a revolução vermelha, no entanto sem o excesso do velho regime. Essa era findou-se.

            Depois de alguns minutos, no horário marcado, bato na porta do quarto de Mare.

            - Quem é? – ouço-a gritando do fundo do aposento e não consigo evitar que meu coração dispare.

            - Sou eu, Cal – limpo a garganta e respondo.

            - Pode entrar, alteza! Estou terminando de me arrumar.

            Adentro na antessala e, com mais alguns passos, meu olhar a encontra nos fundos do cômodo. Mare está com um vestido de festa laranja, feito de tecido leve e marcado na cintura, que garante a fluidez de seus movimentos. Ela está linda e simplesmente não consigo evitar de corar.

Na verdade, tenho sorte por não incendiar nada, denunciando meu nervosismo. É a primeira vez que nos apresentaremos em um evento como casal. Acho que ambos estamos um pouco agitados.

— Você está maravilhosa, Mare!

— Você também não está nada mal, Cal – ela diz com sorriso brincalhão nos lábios, tentando disfarçar seu constrangimento.

Depois de ajustes finais, ela vem até mim e nos beijamos suavemente. Está na hora!

— Está com medo do que os outros dirão? – pergunto cauteloso.

— Claro que dá um friozinho na barriga, Cal. No entanto, estamos entre amigos e, mais do que isso, o passado ficou para trás, as pessoas têm que se acostumar a nos verem juntas como casal – ela me responde.

— Está pronta? – digo-lhe oferecendo meu braço para que se apoie.

— Para tudo! – ela me responde, enlaça meu braço e nós dois sorrimos de forma cúmplice, com a consciência de que é para tudo mesmo!

A cerimônia foi muito singela e bela, que são as características mais marcantes do relacionamento de Julian e Sara. Meu tio assumiu um ar de jovialidade, como se tivesse voltado a ter vinte anos diante de tanta felicidade. Não é para menos, considerando o quanto tiveram de passaram para finalmente estarem juntos e sem medo de ninguém. Sara, sempre muito discreta, enxugava as lágrimas com um pequeno lenço branco escondido em suas mãos.

Apesar de ter tentado disfarçar, vi umas lágrimas teimosas escorrendo pela face de Mare. Sei o quanto ambos significam para ela e como o relacionamento deles a inspira. Beijei o topo de sua cabeça e apertei sua mão com um pouco mais de força e Mare me respondeu se aninhando em meu braço.

Naquele momento tudo estava perfeitamente no lugar. Não havia dúvidas, Lakeland, a Guarda ou mesmo Maven. Éramos apenas Mare e eu. Como na cabana e como sempre deveria ser.

Nossa despedida seria no dia seguinte, mas confesso que não estava pronto para me afastar dela novamente, não depois desse reencontro tão intenso. Mare estava destroçada e eu não queria deixá-la assim, porém, como sempre, ela não me deixava escolha e eu, obviamente, seguiria seus desejos.

Após a cerimônia seguiu-se uma pequena festa no mesmo salão, na residência do primeiro-ministro. Foi algo muito íntimo e aconchegante. Na verdade, foi a primeira vez que realmente aproveite uma festa. Não sabia como era participar de um evento sem falar de política – e principalmente sem querer ir embora depois de meia hora.

            Carmedon não poupou esforços. O jantar estava muito bem servido, com várias opções de comida, dentre elas, é claro, bisão. Havia muita música para que todos pudessem dançar, porém a maioria de nós contentou-se em mirar Julian e Sara bailando durante um bom tempo. Acredito que naquele momento, para eles, não havia ninguém mais no salão.

            Depois de alguns minutos, uma melodia familiar invadiu o ambiente e Mare olhou profundamente para mim. Estava tocando mesma música de quando dançamos juntos pela primeira vez, de quando nos beijamos pela primeira vez, ainda no palácio, ainda em outra vida.

            Sem desviarmos o olhar, aproximamo-nos e estendi minha mão para ela como um convite. Sem hesitar, Mare aceitou e nos dirigimos para a pista de dança e, assim como Julian e Sara, em nossa própria bolha começamos a dançar.

            Não sei quanto tempo passamos assim, porém fui despertado pela voz rouca de Mare.

            - Vamos para o meu quarto?

            Como eu poderia resistir?


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem!

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