Poison escrita por Brê Milk


Capítulo 2
1730 — Part I




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Ainda que fosse verão, a temperatura era bastante rigorosa na Rússia Czarista. Diferente dos humanos que transitavam pela praça principal, o vento gélido e os vestígios de neve grudada nas solas de suas botas em nada afetava Alec Volturi, o vampiro italiano que deveria estar a caminho da Itália naquela altura com exito em sua missão, e não plantado em uma praça qualquer de São Petesburgo á espera de seu informante com sérios problemas de pontualidade. 

Era por aquele e diversos outros motivos que Alec preferia trabalhar sozinho, os resultados sempre eram mais favoráveis. Sem dúvidas, Paul estava o atrasando mais do que o ajudando e, se não fosse um espião excepcional, certamente já teria sido decapitado por inutilidade. 

Ele não seria o primeiro, ao menos. 

O Volturi olhou mais uma vez por cima do ombro, sentindo suas botas afundarem um pouco mais na camada branca que cobria o chão da praça. Maldições no idioma russo saíram de seus lábios, para em seguida sela-los numa linha fina e mal humorada. Então, tudo o que restou ao vampiro foi esperar, além de observar as vidas alheias como consequência. 

 Alec nunca teve nenhum tipo de interesse pelos humanos desde que se transformara. Não entendia o propósito da maiorias das ações deles, para falar a verdade, mas observa-los enquanto circulavam pela praça, vivendo suas vidas patéticas, era tudo o que lhe restava naquele momento.

Então, lá estavam alguns deles: um casal de trinta e poucos anos, caminhando de braços entrelaçados e sorrisos estúpidos nos rostos. Um velho se arrastando pela neve, envolto de peles de animais e parecendo mais rabugento do que deveria ser.

Também havia um pequeno grupo espalhado de crianças sem teto, mendigando comida e alguns trocados na neve. Durante seu tempo de espera ali, o Volturi não vira ninguém parar para dar atenção a nenhuma das crianças; ao contrário. Passavam direto ou desviavam o caminho deles.

A humanidade de alguns humanos era algo contestável, certamente. Alguns, poderiam com facilidade disputar o pódio da monstruosidade com ele. Era fácil localizar tal tipo de escória humana quando colocava os olhos sobre um, mas não tanto quanto localizar o contrário.

Quanto localizar o bem. Alguém bom. Alguém decente, se é que ainda existia tal pessoa no mundo.

Para Alec Volturi, aquilo era impossível. Durante todos os seus séculos, os humanos se mostraram piores do que as criaturas da noite e a bondade pareceu se desfazer como fumaça ao longo do tempo.

Até aquele momento.

O momento em que seus olhos a encontraram.

Quase afundando na neve enquanto atravessava a praça, trajando um grosso casaco vermelho com capuz por cima das saias do vestido branco e carregando uma cesta com uma divisão bem incomum: metade pão, metade flores.

Camomilas.

O vampiro não a viu surgir, mas observou enquanto a figura esguia e delicada caminhava até as crianças desamparadas e se agachava diante delas, estendendo alguns pães meio queimados. A felicidade e a fome brilharam nos olhos das crianças, que comemoraram o presente com genuína gratidão.

Intrigado, o Volturi acompanhou a figura se despedir do ciclo de crianças e se deslocar pela praça, dessa vez na direção do velho rabugento. O ofereceu uma flor e a cena dele aceitando, o pareceu estranha. O mesmo se seguiu com o casal. E, quando a figura voltou-se na direção do vampiro, ele a enxergou diretamente.

Era uma moça. Os olhos mais castanhos que já vira em sua existência, pele alva e lábios rosados e rachados pelo frio. Era bonita, definitivamente. Alec permaneceu imóvel no lugar, esperando que a jovem se aproximasse o suficiente para desvendar o que desejava. Havia neve em toda a barra do vestido dela, mas isso não parecia lhe importar nenhum pouco.

Quando ela finalmente parou diante dele, as bochechas estavam coradas e a respiração entrecortada pelo esforço. O cheiro de camomila, pão torrado e baunilha, o invadiu, assim como o olhar meigo e gentil da moça.

Ela o avaliou por alguns segundos e apanhou uma flor da cesta, o oferecendo junto com um sorriso espetacular, o julgando como se fosse um dos patéticos seres humanos como os outros. Ah, como ela estava enganada.

 

— Eu não quero sua flor, senhorita — disse Alec, o tom direto e pouco amigável combinando com  sua expressão.

 

Confusão tingiu os traços delicados e bonitos da jovem.

 

— É uma gentileza — respondeu, a voz melodiosa carregada do sotaque russo, a fazendo parecer mais atraente do que já era.

 

— Eu não preciso.

 

— Mas todos aceitaram — A jovem insistiu, a impaciência surgindo no tom. — É uma tradição.

 

Alec a olhou com hostilidade, também impaciente. O atraso de Paul começava a criar mais dores de cabeça que o necessário, assim como incitava a vontade de cravar os dentes no pescoço de alguém.

 

— Lamento senhorita, mas pouco me importa sua estranha tradição sobre distribuição de flores calmantes e pães que deveriam servir de lavagem para os porcos — Pontuou Alec, mantendo a irritabilidade próxima da voz. — Contudo, se estiver fazendo isso por alguns trocados, podemos acabar logo com isso. É só falar de quanto precisa e depois me deixar em paz.

 

Alec acompanhou o exato momento em que a descrença passou pelo rosto da jovem e logo em seguida deu lugar ao constrangimento. E depois à fúria. Ele a observou estreitar os olhos e separar os lábios, precisando levantar a cabeça para encara-lo nos olhos em uma clara afronta pessoal.

A neve despencou com mais intensidade, fazendo os flocos brancos dançarem ao redor dos dois e pousarem no solo russo com muita elegância.

 

— Lamento senhor, mas minha estranha tradição e eu não estamos a procura de seu dinheiro duvidoso — Rebateu ela, as orbes castanhas em fogo. Para uma mulher daquele lugar e com aquela aparência, até que era bem corajosa e falava demais. — Mas, devo admitir que em algo concordamos: os pães são mesmo para porcos.

 

Sendo o vampiro secular que era, Alec Volturi nunca esperou o que aconteceu a seguir.

Quando percebeu, já estava sendo alvo da cesta da jovem russa, e pão e camomila já estavam sendo atirados em seu peito. Indignado, ele rangeu os dentes e rosnou, visualizando o ataque na jugular da russa atrevida, mas, percebeu que ela já o havia dado as costas e se afastava pisando duro na neve, quase afundando nela enquanto praguejava insultos pelos quatro cantos da praça.

Aquilo o irritou ainda mais.

Alec calculou os segundos que precisaria até alcança-la sem que o velho ou o casal ou as crianças sem teto reparasse na cena, e durante isso, observou a jovem se afastar e contornar os limites da praça com tanta pressa que acabou colidindo contra a pessoa que o vampiro reconheceu ser Paul.

A força da colisão fez os dois caírem na neve. Paul perdeu o chapéu felpudo e o capuz da jovem atrevida escorregou de sua cabeça, libertando uma cascata de madeixas da cor do fogo mais vivo que existia, cobrindo o branco da neve.

Vermelho no branco. O contraste das duas cores combinava com a garota. Ela tinha traços delicados como a neve e a personalidade ferina como o fogo.  E, por algum motivo que não soube explicar, aquilo o prendeu por longos instantes que só terminou quando a russa se levantou e recompôs, correndo para longe até desaparecer atrás dos muros de pedra que marcavam a praça e davam início ao imponente castelo imperial.

Paul aproximou-se limpando a neve das roupas alguns segundos depois.

 

— A cada dia que se passa, essa garota fica mais amargurada. Diabos! — Exclamou consigo mesmo, balançando a cabeça. Quando por fim chegou até o vampiro, esboçou um sorriso amarelo:  — Ah, aí está você, chefe. Sinto muito pelo pequeno atraso.

 

Alec rosnou.

 

— Você sentirá quando tiver a jugular despedaçada pelas minhas presas, imbecil  — ralhou, fazendo o russo se encolher e arregalar os olhos.  — Mas, antes, responda-me algo. Você a conhece?

 

— Quem?

 

— A garota de antes. A ruiva de capuz. Você a conhece?

 

— Ah, sim. É Katerina, empregada do palácio Pavlova. É a dama menos improvável que já conheci, também  — respondeu Paul, ajeitando o chapéu na cabeça.  — É tão azeda quanto um limão com os homens e possui ideias revolucionárias demais para o próprio bem...

 


Alec apenas escutou, calado. Enquanto Paul continuava tagarelando sobre o que sabia da ruiva, o Volturi deixou os olhos vagarem até os muros de pedra do castelo que se erguia adiante.

Katerina era o nome dela.

De alguma maneira, combinava perfeitamente. E, também de alguma maneira muito estranha, ela levantou certa curiosidade no vampiro.

 

— Paul?  — Indagou Alec, interrompendo o monólogo que o russo estava tendo.

 

— Sim, chefe?

 

— Vamos antecipar o plano de se infiltrar no palácio e tirar nossas dúvidas sobre a realeza desse lugar.

 

Paul exibiu um sorriso grandioso.

 

— É o nosso dia de sorte, então. Haverá um baile amanhã à noite em comemoração ao aniversário do Czar — Informou. — Devo arranjar os convites?


— Imediatamente.

 

Paul anuiu rapidamente e se despediu, batendo em retirada. Alec inspirou e enfiou as mãos dentro do grosso casaco que vestia, deixando o olhar vagar até os tijolos do imponente muro do castelo, esperando, de alguma forma, que a imensidão vermelha surgisse de algum ponto.

 

 

 

 

 

 


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