A Jaula escrita por Maria Chinikoski


Capítulo 4
"Cachorro"


Notas iniciais do capítulo

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— Tio! Tio!

Uma criança Vulcan corria até Alef, com um sorriso de orelha a orelha.

— Que bom que voltou! Eu já busquei o Nilf!

— Nilf? - Alef parou e pensou por alguns segundos, antes de entender o que se passava - Você agora chama o meu cachorro de Nilf?

Ele observou o garoto, de uns 14 anos, chegar em sua frente, segurando a corrente onde um Husky Siberiano puxava-o com força, pulando contra Alef. O Husky lambia seu dono, todo feliz, choramingando de saudades.

— É melhor do que chamar ele só de "cachorro"! - O menino fez uma careta, erguendo as sobrancelhas.

— Mas por quê? Ele parece tão feliz! - Alef desceu o cachorro para o chão e se agachou, afagando-o com a mão humana - Quem é o cachorrão do papai?

O Husky arregalou os olhou e começou a pular alto, para a esquerda e para a direita, com a língua pingando de baba para fora de sua boca. Ele estava extremamente feliz e Alef o afagou novamente, entregando a coleira ao garoto.

— Ah! Ele adorou ser chamado de Nilf! E eu vou... Sentir saudades dele! Quando quiser, eu cuido dele para o senhor!

Alef riu e jogou umas moedas para o garoto.

— Tio! Isso é muito mais do que combinamos! 

— É porque quero te pedir um grande favor, garoto!

Os olhos do pequeno Vulcan se arregalaram, brilhando.

— Eu vou ter que partir para a área externa por um tempo.

— Mas tio! - O menino ficou triste - Lá não é perigoso? Meu irmão nunca voltou de lá!

— Eu vou justamente para isso... Para proteger que os outros possam voltar no final do trabalho - Mentiu ele, afagando a cabeça da criança - Mas quero que tome conta do... Nalf?

— Nilf! - Corrigiu o garoto.

— Quero que tome conta do Nilf para mim! 

— Mas com tantas moedas... É para o ano inteiro esse pagamento?

— Só até eu voltar... Pode levar seis ou oito meses. Depende do serviço. Mas prometa que vai cuidar bem dele!

— Eu prometo!

Alef sorriu e estendeu uma bolsa com um grande pedaço de carne macia de veado - Algo raro por ali. O garoto pegou, observando a suculência e já salivou com o gosto daquilo.

— Leve para sua mãe! Ela saberá preparar! Mas vê se toma cuidado! Os ladrões mais astutos roubam isso! Veja se não vai perder! E JAMAIS conte para alguém o que está carregando! 

— Obrigado... De verdade...

— Alguns matariam por isso ai! Então veja se vai direto para casa! E tome! Leve esta nota de caça! Se algum policial te parar, mostre isso que eles vão te deixar em paz! Mas não corra o risco de um deles te parar, entendeu?

O garoto se despediu e saiu puxando o cachorro, que fazia força para ficar com Alef a qualquer custo. Quando ele finalmente disse "Vai brincar, cachorro" - foi que o Husky babão balançou o rabo e finalmente seguiu o garoto.

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[MAIS TARDE - PELO ANOITECER]

 

Dentro de sua minúscula casa feita em um contêiner, Alef observava sua mão alienígena, limpando as escamas duras com um pano laranja. Era necessário um período mensal de reparação, pois era diferente de uma mão humana comum. Apesar de ter se conectado ao seu corpo, o novo braço não funcionava no mesmo nível: Sua regeneração era extremamente rápida, mas lhe causava grande dor. Toda semana ele tinha que retirar o líquido extra de veneno de seu braço, para que não ficasse infiltrando em seu corpo.

Com cuidado, observou as marcas de suas próprias unhas enfiadas na palma da mão, resultantes do momento que viu a pequena Stella ser reprogramada no bar. 

...

Alef pegou sua seringa e iniciou a retirada do veneno extra, inserindo-a cautelosamente embaixo das unhas da mão recebida. Era um processo doloroso, mas não podia se dar ao luxo de envenenar alguém por engano.

— Ah, que merda! - Disse ele, vendo o sangue misto brotar. Ele havia errado a glândula de veneno novamente.

Então, retirou a agulha e a enfiou novamente, no local certo.

Seu corpo resistia ao próprio veneno, porém em quantidades limitadas. A falta de manutenção colocava ele mesmo em risco e qualquer um que ele tocasse em alguma ferida exposta.

...

Para passar o tempo, colocou-se a dormir. 

...

 

*TOC *TOC *TOC

...

*TOC *TOC *TOC

...

 

— Abra logo, seu desgraçado! - Sibilou um humano, chutando a porta e a abrindo à força.

— Podia ter batido - Disse Alef, sem se levantar, usando o braço alienígena para tampar as frestas de luz que entravam.

— Quanto tempo acha que eu iria te esperar? Onde ligo a luz desse maldito contêiner?

Logo o ambiente todo ficou claro como o dia e o homem que havia entrado jogou uma mala gigantesca sobre a mesa, voltando para fechar a porta. 

— Fiz o que me pediu! Sua encomenda está pronta!

— Eu já ia embora daqui a pouco. Achei que tinha desistido!

— Eu? Eu jamais desisto das minhas invenções! Olhe só esta belezinha!

Ele tirou da mala uma manopla em aço, mas não era um aço qualquer. Era alienígena. Melhor que qualquer outro aço terrestre. Na ponta da manopla, agulhas afiadas com tubos se estendiam, alcançando uma garra metálica.

— Você conecta essas agulhas nas glândulas de veneno embaixo das suas unhas - O homem ajudava Alef a colocar a manopla - Vai doer mais do que o habitual!

Alef deu um gemido baixo de dor ao sentir a laceração embaixo de suas unhas.

— E só avisa agora?

Mas o homem continuou:

— Essas agulhas são adaptáveis. Elas vão vedar as glândulas de veneno e dissipar ele entre as lâminas. Aqui - Ele incentivou um movimento com a mão na manopla. Da frente saíram garras afiadas, já contaminadas pelo veneno - As lâminas irão se contaminar e envenenar o oponente se, e APENAS SE, você apertar esse controle que transfere seu veneno. 

Alef observou cautelosamente o equipamento, procurando entender como funcionava.

— Se você acumular muito veneno, ele vai armazenar nessa pequena bolsa embutida ao lado, permitindo que você use para outros fins, como criar bombas, matar alguém, etc. Ela tem um esquema de zerar o DNA no veneno. Depois que armazenar, ele será apagado, permitindo que você o use sem se comprometer.

— Realmente você fez um ótimo serviço, Gajëll. Muito obrigado.

— Eu te devia essa!

Alef percebeu a inquietação do homem e lhe atirou algumas moedas.

— Vamos, sei que quer me vender mais algumas de suas invenções. Me mostre o que tem ai de legal!

— Ótimo! - Cantarolou o outro, começando a revirar a bolsa.

 

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[ MAIS TARDE AINDA - POR VOLTA DAS 4H DA MANHÃ]

 

 

 

O pequeno Vulcan e sua mãe cantarolavam felizes, com as portas trancadas, enquanto a carne atingia seu nível certo de cozimento. Era madrugada e logo a mãe do garoto iria trabalhar nas minas de carvão. Aquela carne garantiria um fôlego extra para eles.

— Tem que se lembrar de agradecer o Alef, meu filho! Ele tem sido tão  bom para nós!

O garoto colocava alimento fresco para o cachorro, mas Nilf queria experimentar a carne.

— Esta carne mesmo, eu não consigo imaginar quantos meses de serviço pagariam um pedaço dela! Talvez valha mais que nossa casa!

— Ele sempre arranja isso. Ainda mais agora que vai voltar para fora da fortaleza.

— Que os poderes dos criadores o protejam! - Disse ela, fazendo um ritual religioso de gestos.

— E ele me pagou novamente para cuidar do cão dele! - Sacudiu a bolsa cheia de moedas, atirando-a para sua mãe.

— Nossa! Mas isso é muito dinheiro, meu filho! Não podemos deixar aqui em casa! Temos que guardar no banco um pouco!

Ela colocou um pouco da água do caldo da carne na tigela de comida do cachorro, enganando-o pelo olfato para comer sua comida diária, pensando estar participando da refeição com todos.

— Eu vou levar uma boa quantia para lá antes de ir para a mina de carvão. Você esconde o resto embaixo da viga do meu quarto e depois leva um pedaço da carne para o Jäelr na quitanda. Troque por grãos e verduras frescas para a semana toda, entendeu?

— Entendi, mãe!

...

Tudo preparado, o pequeno Vulcan saiu com Nilf e a sacola de carne rumo ao pequeno mercado ali perto. Tudo ia super bem, até aparecer um reptiliano, fiscal.

— Olá garoto... Sinto um cheiro bom vindo de você!

Os reptilianos tinham olfatos sobrenaturais, advindos de diversas mutações ao longo das décadas. Percebiam o cheiro de contrabando à dez metros de distância.

O garoto escondeu o pacote atrás de sua capa, entrando na defensiva.

— Sabe, alguém pobre como o filho de uma mineradora, jamais deveria estar com um pedaço tão suculento de carne!

— Aqui está a nota de caça!

O guarda olhou a nota. Nilf já rosnava alto, com todos os pelos arrepiados. O reptiliano cerrou os lábios, cuspindo na nota em seguida. 

— Realmente, você está legalizado. Foi seu dia de sorte, garoto. Eu te mataria primeiro e perguntaria depois!

Assim que ele virou de costas, o garoto respirou aliviado e seguiu caminho. Mas Nilf não queria seguir de modo algum. O cachorro estava atiçado e rosnava sem parar. De repente, o Husky puxou a coleira com força, derrubando o garoto a tempo de evitar um tiro certeiro pelas costas. 

O garoto viu a bala atingir o chão ao seu lado e se virou a tempo.  

O cachorro não se conteve e pulou contra o fiscal que atirava no garoto pelas costas.

Foi um curto segundo, mas parecia uma hora inteira. O Husky pulou no braço do policial, mordendo-o com tanta força que sua arma caiu no chão, disparando contra o nada. 

O garoto deixou até o pacote de carne cair, enquanto corria para salvar o animal da morte certa.

O soldado derrubou o cachorro no chão e pisou-lhe com extrema força nas costelas, fazendo um som terrível de ser escutado. O cão graniu e não conseguia mais se levantar.

— Atacar um policial: pena de morte! - Ele pegou sua arma do chão e apontou para o cachorro.

O menino, mais que depressa, atirou-se na frente, com os braços abertos, em lágrimas. 

— Por favor! Este cachorro é do soldado Alef! Ele confiou a vida dele a mim! Não o mate!

O soldado rangeu os dentes ao ouvir a pronúncia de Alef.

— O humano da guarda?  - Perguntou ele, raivoso - Mas então alguém vai ter que pagar por tudo isso! 

— EU PAGO - Gritou o garoto, chorando.

— Você que escolheu! - O soldado atirou contra a perna da criança, abrindo um buraco. 

O garoto ficou em choque, mudo por alguns segundos, antes de gritar de dor. Nas janelas tomadas pelo escuro de antes do amanhecer, algumas pessoas de diversas espécies observavam por frestas, mas nenhum teve a coragem de intervir.

A dor lacerante fazia o garoto berrar, mas ninguém saia para enfrentar o velho soldado corrupto.

O fiscal, antes de ir, chutou o pacote de carne até o garoto e parou em sua frente. 

— Olha, eu até queria a carne, mas agora... Bem, ela está muito suja para ser comercializada. - Ele pisou com força, esmagando os pedaços de carne com seu sapato cheio de lama - Até outro dia, garoto! 

....

Mais tarde, no meio do mercado que se abria, uma multidão se afastava espantada. Eles observavam a cena, mas não sabiam se deveriam intervir:

Um garoto apoiava-se em um galho de madeira para não cair ao chão e, por cima de seu ombro, um cachorro gania de dor. O garoto tinha os olhos vermelhos, cheios de ódio e o rosto em lágrimas. Sua perna, dilacerada por um tiro, estava mal enfaixada, apenas evitando que morresse de perda de sangue, enquanto se arrastava até um médico da comunidade que atendia mais barato no mercado.

O médico veio correndo e só pode ouvir:

— Por favor, cuide do cachorro! Ele vale mais que a minha vida!

E o garoto veio ao chão, desmaiado...

 

...

Era tudo flash. As luzes davam ânsia de vômito e o garoto enfim tinha acordado. Sua mãe estava na beirada da cama, segurando-lhe as mãos.

— Mãe...?

— Meu filho! - Ela gritou, chorando de alegria - Doutor! Doutor! Ele acordou!

Um homem - Gajëll - Vestia-se apropriadamente como um médico popular.

— Você teve sorte garoto! E seu cachorro também! Você estava apagado há um dia inteiro, tomando medicamentos. Sua cirurgia de reconstrução foi um sucesso!

O garoto estava grogue, mal conseguia assimilar tudo.

— Usei enxertos de carne e pele. Em algumas semanas você estará novinho em folha!

De repente, a consciência veio à tona. Se estava operado, quer dizer que todas suas economias não seriam capazes de pagar pelo serviço.

— Mas... Eu... - O garoto irrompeu em lágrimas - Como eu...

 

Gajëll sorriu. Ele sabia que eles estavam preocupados com o valor das medicações. Mas ele já havia ganho um bom dinheiro com Alef na comercialização de seus brinquedinhos novos, então ergueu um pacote cheio de terra, esmagado, e disse:

— Olha, eu encontrei esse pacote de carne, de raríssima qualidade - Mentiu ele. Ele sempre ganhava essa carne de Alef, em troca de serviços.

Era uma carne rara, claro, mas para quem tinha "contatos" com os contrabandistas de fora, era como beber água. Já dentro da fortaleza, um pedaço poderia ser vendido à milhares de moedas para as pessoas certas 

— Se concordar em me dar ela como pagamento, acredito que custeará o tratamento seu, do cachorro e ainda vou ter que te pagar em remédios o restante - Mentiu ele novamente.

— Mas senhor... - Disse a mãe do garoto ao humano à sua frente - Esta carne está suja!

— Mas e quem se importa? A não ser, é claro, que vocês já tenham algum comprador. Não quero atrapalhar seus negócios - Mentia ele ainda mais, se fazendo de um comprador interessado no produto - Afinal, essa carne ainda valeria muitas moedas além do que posso ofertar em produtos e serviços médicos!

Mãe e filho se olharam com emoção, chorando. 

No final, eles aceitaram a proposta do médico.

Sem que percebessem, Gajëll colocou algumas pedras no lugar da carne suja e, discretamente, deu a carne recheada de medicamentos ao cachorro, que comeu rapidamente, com muita felicidade.

— Come, garotão... Seu dono vai querer que você melhore - Sussurrou ele, acariciando o Husky.

O cachorro nem se importou com a carne suja. Degustou com toda a felicidade do mundo. 

Gajëll deu ao garoto os medicamentos e explicou à sua mãe como administrar os remédios.

Em seguida, pediu ao garoto se ele se recordava dos últimos acontecimentos e prestou muita atenção ao seu depoimento...

 

 

 

 

 

 

 


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Notas finais do capítulo

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