Jane escrita por Lucca


Capítulo 10
Tristeza e Medo


Notas iniciais do capítulo

A medida que o mundo ao nosso redor ganha sentido, vamos adquirindo consciência da complexidade de tudo. Não é fácil. Até mesmo a rosa tem espinhos que podem ferir quem só está tentando admirá-la.
Com um passado tão pesado, mesmo que amortecido pela ausência de lembranças, ter consciência do seu redor pode trazer sentimentos não tão bons para Jane.
Isso é necessário para que ela e Kurt entendam algumas coisas e não voltem para a mesma rotina que foi tão nociva para eles antes.
Prometo que depois disso só teremos mais um momento difícil pra Jane no arco dessa história, algo bem breve que será superado dentro do próprio capítulo.
Respirem fundo e mergulhem.

Boa leitura!



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Jane tinha uma capacidade incrível de ficar imóvel na cama, ao lado de Kurt, observando-o dormir. Ela até gostava disso. Observar os traços do rosto dele adormecido lhe trazia paz. Era o que ela sempre fazia nas madrugadas quando o sono a deixava. Ficava ali observando-o até amanhecer. Ela nunca o acordava, simplesmente aguardava que ele voltasse à vigília por si só. Entendia que Kurt tinha necessidade de dormir por mais tempo que ela.

                Entretanto, muita coisa vinha mudando.  Nos últimos dias, ela sentia necessidade de se revirar na cama algumas vezes. A bebezinha em seu ventre se remexia procurando se acomodar forçando-a a isso. As idas ao banheiro também se tornaram mais frequentes, a obrigando a se levantar no meio da noite.

Mesmo sem refletir sobre as mudanças que a gestação estava impondo ao seu corpo e hábitos, Jane reagia, deixando-se guiar pelo instinto. Obedecia ao seu corpo sempre de forma discreta e silenciosa para não acordar Kurt.

Nessa manhã, porém, mais uma coisa veio lhe roubar o sono. Aquele sentimento estranho que a incomodava desde a partida da pequena Bee. Isso a arrancou da cama pouco antes do sol raiar. Chorar no chuveiro tudo bem. Chorar na frente de Kurt jamais! Tudo que ela aceitava eram o que podia fazê-lo sorrir.

Fazia parte da sua rotina auxiliá-lo na cozinha. Ela já conhecia bem aquelas atividades e resolveu tentar adiantar o preparo do café da manhã. Colocou a mesa, deixou os pães na torradeira, o café na máquina... Ah, como o cheiro do café era delicioso! Sua boca salivava só em sentir. Era sua maior satisfação todas as manhãs. Ela beberia o dia todo, mas Kurt sempre foi firme em dizer que só podia consumir uma pequena xícara diariamente por causa da bebê. Então seria assim.

Ela bateu os ovos com um pouco de dificuldade, separou o bacon. Também já deixou seu tofu ali sobre a bancada. E começou o preparo assim que ouviu o som do chuveiro, prova que Kurt já tinha acordado.

Bastou começar para perceber que a conexão entre a sua vontade e ato de cozinhar não se dava de forma tão natural como no desenho ou no sexo. Parecia tão fácil quando era Kurt no comando do fogão. Agora tinha ovos respingados fora da frigideira, um lado já queimando e uma aparência nada apetitosa.

“De novo. Tente!” disse a si mesma.

A nova tentativa não foi diferente da primeira. Ela até procurou segurar diferente o cabo e a colher, mas...

— Ai! Hmnnn. – gemeu ao queimar a lateral da mão.

— Jane! – Kurt se materializou ao lado dela a afastando do fogão. – Não, não, não! Isso é perigoso, Jane. – ele falou firme com o rosto fechado de preocupação. – Se você estava com fome, deveria ter me acordado. Não volte a mexer no fogão, ok? – ele precisou se certificar que ela entendia e não faria novamente.

Ela assentiu rápido com a cabeça

— Eu... – ela começou tentar explicar, mas ainda estava lidando com o que aconteceu. Sua mão doía, Kurt estava bravo e tudo que ela queria era alegrá-lo. Droga!

— Não. Tudo bem. Me deixe ver a sua mão. – ele disse já invadindo seu espaço pessoal antes que ela pudesse reagir e pegando sua mão com delicadeza. – Nada grave. Venha. – e a puxou para mais perto do armário de onde puxou uma caixa de primeiros socorros e começou os cuidados.

Ele estava concentrado no que fazia. Agia com tanta delicadeza, tão diferente da forma como a possuía durante o amor. As mãos dela não ajudavam muito quando precisava de delicadeza. A força ainda obtinha melhores resultados. Ela suspirou o observando. Kurt era tão cuidadoso com ela. Tudo que Jane queria era fazer o mesmo por ele, mas parece que sempre dava errado.

— Pronto. Com essa pomada está resolvido. Até a noite vai doer bem menos. – ele disse olhando debaixo para ela porque ainda estava com a cabeça inclinada sobre sua mão. Só então percebeu a forma como o olhar dela o sondava. Abriu um sorriso e se deu conta que nem a cumprimentou. -  Bom dia, Honey. – e deu um selinho nos seus lábios. – Agora sente-se e deixe que eu termino aqui.

Ela acatou e, em minutos, tudo estava pronto sobre a mesa. Deus, como ele era bom nisso!

Mas Kurt continuava mais quieto que o convencional, fechado e agitado. Durante a refeição restringiu o diálogo com ela a orientações sobre sua alimentação, reforçando que só deveria comer o que ele mandaria. Depois também salientou que, caso ela sentisse dor deveria relatar a Patterson.

Jane o ajudou a retirar a mesa. Kurt preparou frutas e legumes, tofu e outras coisas mais para seu almoço colocando tudo em recipientes perfeitamente organizados e embalando para ela levar. Foi só então que pegou o telefone:

— Oi, Allie. Bom dia. Como foi? – e ouviu a resposta. – Então ela chorou muito... poxa, achei que seria diferente. – novo silêncio. – Ok. Eu ligo à noite para saber como foi e pra conversar com ela. Até mais. – e desligou triste.

Jane só precisou entender o “ela chorou muito” e ler a tristeza no rosto do marido pra compreender que se tratava da pequena Bee. Engoliu o nó que se formou na sua garganta. Não sabia o que fazer para resolver aquilo. Se aproximou e colocou a mão no peito dele.

— Kurt, pessoas ruins... coisas ruins. Pessoas boas as impedem. – a frase veio a sua cabeça e ela achou que poderia ajudá-lo a se sentir melhor se mostrasse o quando ele era útil no seu trabalho. – Você bom.

Ele cobriu a mão dela com a sua e entortou os lábios num quase sorriso. Não se sentia uma pessoa boa ultimamente, o sentimento de falha era mais forte por tudo que vinha acontecendo com sua filha. Mas Jane sabia como fazê-lo se sentir melhor.

— Obrigado. – e deu um beijo em sua testa.

Deixaram o apartamento e entraram no carro. Kurt ligou o rádio e foram em silêncio.

Chegando à ONG de Patterson, tudo estava bem agitado por lá com a instalação de novos equipamentos. Jane já estava habituada a ficar em vários espaços que o lugar oferecia, mas nesse dia optou pelo escritório de Patterson, ficando calada e alheia olhando para suas tatuagens como nos primeiros dias.

Entre atender um e outro que vinham solicitar decisões, Patterson tentou conversar com ela:

— Ei, está tudo bem, Jane? – disse tentando conseguir a atenção da amiga que balançou a cabeça confirmando sem mudar a tristeza no seu rosto. – Você não parece feliz.

Jane olhou pra ela sem entender o que era ser feliz.

— Patterson, o eletricista está instalando tudo do lado errado. Será que você pode ir lá falar com ele? – Um dos colaboradores entrou e já foi falando.

— Tá, tá. Já estou indo. – e se virou para Jane. – Quando eu voltar, vamos conversar melhor.

Mas ela não voltou até a hora da aula com os meninos. Jane ficou sozinha. Até chegou a tirar um breve cochilo no sofá.

Durante a aula, tudo foi normal. Os meninos estavam agitados e cheios de brincadeiras inconvenientes. Como Patterson estava bem impaciente, não deu muita margem para tudo que queriam aprontar. As constantes interrupções dos instaladores na aula, pedindo a atenção de Patterson,  prejudicaram o andamento do que estavam aprendendo e incomodaram de forma especial Jane. A falta do ritmo habitual tornava mais difícil sua conexão com a programação que vinham desenvolvendo.

Retomaram. Parecia que agora tudo ia caminhar bem. Nova interrupção.

— Meninos, vamos fazer assim, vou liberá-los um pouco mais cedo para o almoço. Assim já resolvo tudo e retomamos a tarde. Ah, será que você poderiam levar Jane para almoçar. Tenho o lanche dela pronto. Só pra ela não ficar sozinha.

— Claro! – Sal já se dispôs.

Foi tudo bem rápido. Pegaram o lanche e saíram. Atravessaram a rua e foram até uma lanchonete que conheciam e não ficava muito longe. No trajeto, Jane tentava acompanhar a conversa e se adaptar as mudanças repentinas:

— “Claro!” Sinceramente, Sal – Big Joe disse.

— Qual é o problema? Ela só vai almoçar com a gente. – Sal argumentou.

— E vai espantar todas as garotas.  E meninos. Acho que essa cara brava dela espanta até a polícia! – Tito reclamou.

— Já pensaram nessas tatuagens aí? Podem ser coisa de gang e vamos ficar marcados. – Malcom completou.

— Parem de exagero. Jane é nossa amiga e não faz parte de nenhuma gang. Todos vão amar as tatuagens dela. – Sal insistiu.

Chegando à lanchonete se sentaram. Jane estava totalmente na defensiva fora do seu ambiente. Postura enrijecida, rosto fechado e calada. Algumas garotas olharam desconfiadas de longe e foram cumprimentadas pelos meninos, mas não se aproximaram.

— Eu não disse? Ela é encrenca. – Big Joe repetiu.

— A gente mal chegou. – Sal defendeu.

— Sal, você tem que admitir que ela é estranha. E hoje está mais estranha ainda. – foi a vez de Nick Red se manifestar.

Sal bufou insatisfeito com os amigos. Os lanches e as batatas fritas chegaram. Jane pegou sua refeição preparada por Kurt e começou a comer.

— Diz agora que ela não é estranha. Tá comendo legumes numa lanchonete. - Malcom caçoou - Vou chamá-la de Jane Carrie, como Carrie, a estranha.

— Para com isso, Malcom. Deixa ela em paz. – Sal começava a se irritar pra valer.

— Se ela for como Carrie, a estranha, pode ser perigosa até pra gente. – Nick Red falou rindo, mas torceu o nariz no final demostrando que estava realmente preocupado.

— Ela não é perigosa. É nossa colega de turma. – Sal já estava se cansando daquilo.

— E o que nós sabemos dela? Nada. Só é uma mulher estranha, coberta de tatuagens. Nem falar direito ela fala. – Big Joe estava muito irritado por não estar tendo a reciprocidade das na outra mesa.

— Nem o sobrenome dela sabemos. Vai ver ela nem existe de verdade. Já sei. Podemos chamá-la de Jane Doe. Irado! – Tito sugeriu.

Jane olhava fixo para sua comida, mas as palavras dos meninos iam e voltavam em sua cabeça. Ouvir Tony chamá-la de Jane Doe revirou seu estômago. “... ela nem existe de verdade...” como isso a incomodou.

— Chega. Ela não é Jane Doe, tá bem. Nós sabemos quem ela é sim. Ela é só Jane e pronto. Não liga pra eles, Jane. São uns idiotas.  Aqui, pegue uma batata. – Sal tentou mudar o foco.

Jane sorriu e pegou a batata devorando-a satisfeita.

— Quer mais? Pode pegar. – Sal insistiu.

Jane quase pegou mais. Ela queria um punhado daquilo. Era bom e Sal a fazia se sentir melhor. Mas se lembrou das advertências de Kurt. A bebê precisava dos legumes. Sorriu agradecendo e negou as batatas, voltando aos legumes na sua marmita.

— Tá vendo? Só alguém muito estranha troca batatas por cenoura e brócolis. – Tito avaliou balançando negativamente a cabeça.

— É porque ela está grávida, seu bobo! Ela precisa se alimentar bem. – Sal defendeu Jane.

— Ei, como será que ela ficou lesada assim? Será que foram drogas? Minha mãe disse que tem um cara lá na vizinhança que o craque comeu os neurônios dele. Ficou lesado como a Jane. – Big Joe contou parecendo bem curioso sobre o que teria acontecido com ela.

— Se ela ficou assim por causa de drogas, não vão deixá-la ficar com o bebê. Eu tinha uma prima que era viciada. O bebê nasceu e o Serviço Social apareceu lá assim que ela chegou em casa. Pegaram o bebê e levaram pra adoção. Ela nunca mais viu a criança. – foi a vez de Malcolm compartilhar uma experiência próxima à ele.

Drogas. Lesada. Levaram o bebê. Adoção. Ouvir aquilo provocou um maremoto de sensações dentro de Jane. Medo. Tristeza. Familiaridade. Era tudo tão horrível. Mas ela se manteve firme. Impassível aos olhos dos meninos que a rodeavam.

— Hoje vocês estão um saco. Vão à merda! Ninguém vai tirar o bebê dela porque ela não usa drogas nem é lesada como vocês dizem! Quer saber, vão pra outra mesa e nos deixem em paz! – Sal foi firme.

— Calma, cara. Tá apaixonado por ela, é? – Tito brincou tirando Sal do sério que empurrou a mesa e se levantou o peitando.

Jane também se levantou imediatamente. Segurou o braço de Sal e olhou ameaçadoramente para todos.

— Não! – disse firme e forte. – Comer e voltar!

Todos ficaram quietos, se sentaram e comeram em silêncio.

A tarde seguiu com a aula entrecortada pelas interferências dos instaladores deixando Jane ainda mais distante e desinteressada do seu redor.

Kurt chegou na hora marcada, sem atraso. Estava bem fechado. Mesmo com Patterson, disse poucas palavras:

— Vocês tiveram problemas com Bethany? – a amiga fez questão de perguntar percebendo a diferença nele.

— Ela tem dado trabalho na escola. Se recusa a ir e não faz as atividades. – ele relatou de forma breve.

— Durante a visita, ela estava diferente? Como foi com Jane? – ela quis saber já pensando que poderia estar ali a causa das diferenças que percebeu na tatuada.

— Entre ela e Jane foi tudo bem. As duas se entenderam bem rápido. – ele disse finalmente entrelaçando a mão a da esposa. – Provavelmente ela não está lidando bem com a minha ausência.

Patterson apertou os lábios e ficou pensativa.

— Estranho... ela cresceu assim, não conhece uma realidade diferente dessa. Você sempre esteve distante espacialmente, mas presente na vida dela de forma remota. Talvez seja bom consultarem um outro profissional para ter certeza, Kurt. Bethany parecia lidar com a distância bem melhor que você.

— Ela sempre foi esperta, meiga, atenta. Se não for isso, o que poderia ser?

— Algum coleguinha praticando bullying, a própria professora, o método de ensino. Existem uma multiplicidade de fatores que podem se articular inclusive com outros fora da escola.

— Obrigada, Patterson. Chegando em casa, após o jantar, quero pesquisar sobre o assunto. Vou fazer tudo que eu puder pra ajudar, mesmo à distância.

— Vai dar tudo certo. Tenho certeza. – e nesse momento a loura pensou em dizer que Jane estivera mais calada e parecia triste, mas ponderou que isso só deixaria Kurt ainda mais tenso do que estava. Ela mesma passou pouco tempo com a amiga naquele dia. Melhor observar melhor no dia seguinte antes de alertá-lo.

Eles se despediram e foram para o carro. Assim que ganharam a rua, Kurt ligou o rádio. Sua cabeça estava repleta de pensamentos e considerações. As músicas tocando ajudavam-no a preencher o espaço com vozes, dispensando-o da conversa com Jane para refletir entre as possibilidades de ações possíveis no caso da filha. Jane compreendia e respeitava isso. Toda vez que o rádio era ligado, ela também se recolhia. Mas sua cabeça não era um lugar confortável nesse momento. As palavras dos meninos voltavam em ondas ameaçadoras trazendo medo e insegurança.

“Jane Doe”

“Ela não é ninguém”.

 “Ficou assim por causa das drogas”.

 “Lesada”.

 “Jane Carrie, a estranha”.

 “Não vão deixá-la ficar com o bebê”.

Aquele aperto no peito foi se tornando mais forte. As linhas que dançavam em sua pele não pareciam mais capazes de lhe trazer qualquer paz.

Kurt tinha os olhos fixos no trânsito à sua frente, batendo ocasionalmente a mão no volante de forma nervosa fingindo seguir o compasso da música.

O carro, a música, Kurt nervoso, a confusão que só crescia dentro de cabeça dela...

De repente, ela desligou o rádio ganhando a atenção dele:

— O que houve? Não gostou dessa música? – ele questionou.

Ela balançou levemente a cabeça sem vocalizar uma resposta. Então, respirou fundo e tentou se expressar:

— Kurt... aqui. – e passou a mão na têmpora.

— Está com dor de cabeça?

Ela não esperava essa pergunta e sim, sua cabeça doía um pouco.

— Ja...

— Sim, é assim que dizemos aqui, lembra?

— Ja. – ela repetiu tentando voltou ao foco anterior.

— Sim. Diz sim pra mim pra eu ver que você se lembra.

— Sim. – ela respondeu ao pedido dele, ficando ainda mais desconfortável por ver tudo se desviando do que pretendia.

— Assim que chegarmos em casa vou te dar um remédio que ajude isso a passar. – ele disse levando a mão até a perna e apertando docemente para mostrar apoio.

— Kurt. – ele voltou a chamar tentando retomar o foco. – a cabeça.

— Está doendo muito? Você quer que eu pare? – ele ficou mais preocupado.

— Nie... não. A cabeça... por quê?

— Por que a cabeça? Por que sua cabeça dói? Bem, você ficou muito doente...

— Droga? – ela o interrompeu precisando saber de forma mais exata.

— Isso! – ele respondeu animado. – Foi uma droga chamada ZIP. – e buscou a mão dela entrelaçando seus dedos. – Você está lembrando. Isso é ótimo.

Jane sequer teve forças para retribuir e também apertar a mão dela. Engoliu seco. Os meninos estavam certos. Foi uma droga que a deixou assim “lesada, estranha, diferente”... As palavras pareciam girar em sua cabeça como uma roleta bizarra, parando vez ou outra e piscando diante dela: estranha – diferente – lesada. Era tão horrível o que ela sentia.

Chegaram em casa e seguiram a rotina de sempre. Kurt foi preparar o jantar e ela foi para o banho após tomar o remédio que a deixou bem atordoada quase sonolenta. Sentados na mesa, nenhum dos dois parecia ter muito apetite. Ele estava focado em alguma busca no celular. Ela ainda mais presa naquela desconexão a que se viu lançada.

— Tente comer mais um pouco. – Kurt disse de repente olhando pra ela com muita ternura.

Ter aquele olhar dele de volta fazia tão bem pra ela. Jane tentou sorrir e engoliu toda a comida que tinha no prato para agradá-lo.

Após o jantar, ele ficou um bom tempo no computador pesquisando. Ela aguardou na sala, presa no que parecia ser seu novo cárcere de silêncio e tristeza. Após algum tempo que ela não era capaz de mensurar, ele apareceu e sorriu, convidando-a para irem para a cama.

Como sempre acontecia, logo ele adormeceu. E Jane ficou o observando, já sem encontrar paz nem mesmo nisso.

Na manhã seguinte, ela se esgueirou para fora da cama sutilmente como fizera no dia anterior. Preparou o que podia e não se atreveu a se aproximar do fogão. Sentou-se na sala e só esperou.

Kurt veio do quarto com uma euforia atípica, abaixou-se em frente a ela deu um beijo rápido em seus lábios:

— Jane, está acontecendo. A bebê de Tasha está nascendo!

Aquela notícia pareceu fazê-la emergir de volta à luz. Seu coração se aqueceu, reencontrando a esperança mesmo que ela não fosse capaz de entender por quê. Tomaram o café, Kurt sorriu o tempo todo e ela retribuiu.

— Pelo resto da semana, você vai passar mais tempo com Boston, ok? – Kurt informou e ela concordou com a cabeça. – Patterson vai estar muito ocupada com Tasha e a bebê.

Assim se passaram mais dois dias. Kurt achou melhor só irem conhecer a pequena Maya quando Tasha já estivessem em casa. Jane não costumava ficar confortável em hospitais, então era melhor evitar. Assumindo a liderança do SIOC de forma oficial agora, ele ficou bem mais ocupado e acabou trazendo trabalho para casa. Mesmo assim, no dia anterior, eles tiveram tempo para se amar e isso era muito bom.

Naquela noite, durante a vídeo chamada com Bethany, a pequena insistiu em falar com Jane. Kurt sabia que a esposa não costumava interagir assim, mas com cuidado, pediu um esforço da parte dela e a colocou em frente ao laptop disposto a mediar para que a conversa deixasse a pequena satisfeita. Ele ficou fora do ângulo da câmera forjando uma privacidade entre as duas.

Bethany falou e falou. Jane tentou focar a atenção na tela, mas ela não estava realmente bem aqueles dias. Seu olhar vagava do laptop para o rosto de Kurt que repetia alguns pontos mais devagar. Após mostrar desenhos e brinquedos, a garotinha, de repente disse sem olhar para a câmera e para Jane:

— Eu sou diferente, sabe? Eu não aprendo as coisas. E eu não gosto da escola, nem da professora. Não gosta de nada de lá. Nadinha! – disse balançando a cabecinha triste.

A cena na tela, dessa vez, cativou a atenção de Jane. Ver sua Bee dizendo aquilo a jogou de volta na lanchonete com os meninos. Ela sabia como ela se sentia e precisava fazer algo. Imediatamente seu amigo Sal veio a sua mente, relembrando o que ele fez e disse:

— Não liga... pra eles. – Jane disse fazendo Kurt abrir um enorme sorriso de orgulho. – Eles... idiotas! Vão...merda!

— Isso! Idiotas!  Merda! – Bethany disse muito empolgada do outro lado.

Imediatamente Allie entrou na tela, abaixando-se ao lado de Bethany e a repreendendo. Kurt também interveio entrando na vídeo-chamada:

— Não, filha, você não pode dizer isso da sua escola e da sua professora. Isso é muito feio. – e virando-se pra Jane – Você não pode dizer isso pra ela, Jane. É um jeito horrível de se referir as pessoas.

Ele parecia muito bravo. E Allie parecia brava com Bethany. Então, as pessoas que faziam ela e Bee se sentirem diferentes estavam certas?

— Jane, por favor, saia. Preciso falar com Bethany e Allie.

Jane se virou pra tela, tentando ver Bee, mas a garotinha estava com os braços cruzados, olhando para baixo e chorando.

— Sorry... – ela disse baixo o suficiente pra que nem Kurt ouvisse. Talvez ele não tivesse ouvido nem se ela disse alto e claro de tão preocupado que ele estava naquele momento.

Então ela se levantou rápido, postura desafiadora e saiu.  Foi para o quarto, colocou o pijama e se deitou sentindo um misto de culpa, raiva e tristeza, todos sentimentos que ela sequer era capaz de definir.

Kurt veio bastante tempo depois. Foi ao banheiro, voltou de pijama, se deitou de costas, olhando para teto. Ele demorou muito para dormir nessa noite. Ela não dormiu nada. Ficou lá imóvel vagando entre muitas sensações desagradáveis.

Na manhã seguinte, ele parecia mais calmo. Assim que foi ao encontro dela na sala, sentou-se ao seu lado no sofá e explicou de forma bem calma que ela não podia dizer palavras assim perto de Bethany. Jane assentiu, procurando manter seu rosto com um sorriso que não era legítimo, mas que ela sabia que tranquilizava o marido. Havia tantas coisas dentro dela que queria partilhar com ele. Tantos incômodos que achava serem semelhantes ao que Bee sentia. Mas as palavras não encontravam caminho naquela confusão.

Pouco depois estavam no carro indo conhecer o pequeno pacote de felicidade de Tasha. Levaram muitos presente e Kurt ainda parou pegar um balão. Foram recebidos com muita alegria. A amiga estava radiante em apresentar sua pequena Maya.

Pequena. Essa foi a percepção que mais chamou a atenção de Jane. Como era pequena, muito menor que Bee. Muito menor que os bebês do parque. Delicada e linda. Logo Kurt a pegou nos braços. Ele era tão grande, mas sempre tão cuidadoso. Jane ficou admirando a cena.

Tasha a puxou para o quarto da bebê. Ela estava falante, parecia ter a necessidade de compartilhar tudo que viveu. Falou e falou. Pena que Jane sentia tanta dificuldade em entender as frases longas nesses dias.

— Prepare-se, é insano e maravilhoso! – a latina disse sorridente. – Ah, e esqueça tudo que os sites dizem. Compre muito mais fraldas do que o indicado. Já gastei quase todas que imaginei pra um mês inteiro.

Jane olhou para o quarto ao seu redor. Era tudo tão lindo e perfeito. Já estivera ali algum tempo atrás. Mas agora tudo tinha algo diferente. Era a presença real de Maya dando cor, cheiro e vida ao lugar. Era emocionante.

Voltaram a sala. A bebê dormia tranquila nos braços de Kurt. Jane se sentou ao lado dele no sofá.

— Não seja egoísta, Kurt. Você já está a um tempão com ela. Deixe a Jane segurá-la um pouco. – Tasha disse ainda com aquele sorriso que parecia que nada no mundo seria capaz de tirar do seu rosto por toda a eternidade.

Kurt se levantou se preparando para colocar Maya no colo da esposa. Até a forma como ele se movia com a bebê no colo era diferente, carregada de delicadeza. Ao perceber aquilo, ela ficou muito insegura. Não era boa com nada que exigia delicadeza. Não era boa com crianças. Ela errava. E se ferisse a bebê ou a derrubasse?

— Nie! – ela disse rápido, atraindo todos os olhares.

— Não quer segurá-la um pouquinho? – Tasha questionou.

Sim, ela queria muito poder ter aquele serzinho em seus braços por algum tempo, sentir aquele cheirinho de perto. Mas não devia. Na verdade, nem sabia como fazê-lo. Seus braços pareciam imensos e desajeitados para tal tarefa.

Ela vestiu aquele sorriso falso que estava começando a se tornar habitual e balançou a cabeça negativamente.

— Kurt. – disse insistindo que a bebê deveria ficar com ele.

Assim que ele voltou a se sentar, Tasha ficou em frente ao casal, pegou a mão de Jane e foi conduzindo devagar até Maya incentivando a amiga a tocar a bebê:

— Está sentindo essa pele?  E olha os cabelinhos, não são a coisa mais macia que você já tocou?

Jane se deixou guiar e sorriu de verdade dessa vez.

— Per...feita. – disse emocionada.

— Sim, perfeita!

O clima no apartamento era tão aconchegante. Kurt estendeu o braço, incentivando  Jane a se recostar no seu peito e se aproximar mais de Maya. Ela se acomodou ali. O cheirinho da bebê, o calor do marido, o clima festivo da chegada de uma nova vida, tudo aquilo a fez relaxar, tirando-a de suas inquietações. Foi tão bom, mas tão bom, que Jane acabou adormecendo.

— Ei – Tasha sussurrou chamando a atenção de Kurt. – O que ela tem?

— Acho que nada. Grávidas sentem muito sono, não é?

— Sim. Mas ela parece triste. – a latina disse observando Jane.

— Eu ia te dizer isso outro dia. Também achei que ela parecia triste no início da semana lá na ONG. – Patterson completou.

— Acho que não. Ela só deve estar sentindo um pouco a partida de Bethany. Eu também fico meu jururu depois que ela vai embora.

— Talvez. Tomara que isso passe logo. Prefiro a Jane assanhada tentando de beijar nos lugares mais impróprios. – Patterson confessou.

— Ah, eu também. – Tasha concordou.

O cochilo não durou mais que poucos minutos. Logo ela acordou, tão sutilmente quanto adormeceu, ficando imóvel ali e fazendo Patterson e Tasha se entreolharem estranhando essas reações.

Depois que saíram do apartamento das amigas, Kurt a deixou no ateliê de Boston. Durante todo o dia, a sensação de ter uma bebê perfeita em seus braços a assaltou. O cheiro, o amor explodindo por aquele serzinho, a delicadeza... Ela não segurou Maya, nem eram ela aquele bebê insistia em vir à sua mente. Era Avery, ela sabia. Eram lembranças lindas, mas também tão tristes.

Jane trabalhou na tela à sua frente com ainda mais afinco. Boston, como sempre, dava espaço para sua criatividade, respeitando seu silêncio e foco. Em mais dois dias, o quadro estava pronto. Ficou muito bom. E ele fez questão de levá-la até em casa para presenciar o momento em que Jane presentearia Kurt com aquela pintura.

— É lindo, Jane. Você fez um ótimo trabalho. Parabéns e muito obrigada. – ele disse com uma empolgação abaixo da expectativa de Boston.

— Sim, é lindo. Mas não é só lindo. É incrível. Você percebeu como ela conseguiu representar tudo que queria sem usar pinceladas contínuas? Foi a forma que ela encontrou de superar a falta de coordenação motora. Se aproxima um pouco do impressionismo das vanguardas europeias do século XIX, mas você não deve saber o que é isso. Então, vamos ao que interessa: é praticamente uma nova técnica. Ela tem talento, Kurt!

— É claro que tem, sempre teve. – ele completou puxando Jane para um selinho. – Que tal se o colocarmos no quarto de Bethany?

Jane assentiu, pegou o quadro e se dirigiu ao quarto da pequena. Enquanto caminhava, absorvia melhor a reação do marido diante do seu presente. O quadro não foi capaz de trazer alegria para ele como ela imaginara. Talvez tenha até o entristecido por relembrá-lo do que não podia ter.

Assim que Jane se afastou entrando no corredor de acesso aos quartos, Boston segurou o braço de Kurt:

— Ei, tenta demonstrar mais empolgação. Sei que arte não é seu forte, mas ela se dedicou muito.

Kurt coçou o pescoço incomodado:

— O trabalho dela está realmente incrível. Vou tentar demonstrar mais gratidão. – disse sem graça. Na verdade, o tema da obra, apesar de lindo e bem executado, lhe causou um incômodo estranho.

— Olha, agora sem entrar no campo da arte, está tudo bem? Tenho notado Jane... triste, sei lá.

— Triste? Não notei nada. Mas você não é a primeira pessoa que fala disso. Vou ficar mais atento. O trabalho e os problemas com Bethany tem me consumido bastante.

Pouco depois, Boston se despediu e o casal voltou para sua rotina normal. Antes de ir para seu quarto dormir, Kurt entrou no quarto de Bethany e observou o quadro sobre a cômoda: tons pastéis se organizavam em pequenas batidas do pincel mostrando uma família feliz numa linda paisagem ao entardecer. Kurt suspendia a filha no ar. A pequena tinha um lindo sorriso e seus cabelos esvoaçantes reluziam ao sol. Atrás dela, apoiando a mão em seu ombro, satisfeita e feliz, Allie o apoiava.

Era perfeito. A intenção do quadro era clara: apresentá-los como uma família normal e feliz. Mas não era real. Não era essa a família de Bethany. Então era assim que Jane imaginava uma vida feliz para ele sem que ela precisasse estar presente naquela família?  Sem Jane ali, a felicidade apresentada naquela pintura parecia mais que incompleta, era falsa.  Kurt sabia o quão perto esteve de perder a chance real de ser feliz quando quase a perdeu na Times Square e quando por semanas os médicos reafirmaram que não havia mais esperanças. Merda! Ele também sabia o quanto suas palavras levaram Jane a arriscar sua vida não tomando o antídoto do ZIP. Parece que tudo que ele disse foi eficiente em convencê-la de que bastava Bethany para que ele fosse feliz, que sua vida deveria ser sacrificada para ele alcançar aquilo e isso parecia continuar presente e forte naquela pintura, mesmo depois de tantas coisas que ela passou.

Ele saiu do quarto e fechou a porta decidido a mudar tudo. Precisava encontrar uma forma de fazer Jane entender que sua felicidade não estava ligada apenas à sua filha. Ele precisava dela também.

Entrou no quarto do casal disposto a começar a dizer isso já, mas ela parecia dormir serenamente. Ele sabia o quanto Jane custava pegar no sono, não ousaria acordá-la. Quieto, ocupou seu lugar na cama e sutilmente se aconchegou a ela. Não demorou para o sono o levar.

Assim que a respiração dele ficou compassada, Jane se esgueirou para fora da cama e do quarto. Foi para sala, abriu as cortinas para poder observar o céu e se deitou no sofá. Enquanto tentava fazer poucas estrelas que desafiavam a claridade das luzes novaiorquinas absorverem seus medos, ela acariciava a barriga, tentando ninar sua pequena bebê guardada ali dentro.

Como resolver tudo isso? Ela não tinha respostas, só angústias. Como foi tola em achar que um quadro conseguiria devolver um pouco da felicidade de Kurt. Ele precisava era junto de Bethany.

“Ela ficou lesada por causa das drogas.”

“Eles não vão deixa-la ficar com o bebê”

Eles não podiam fazer isso. Não podiam separá-la dessa bebê.

“Afaste-se do fogão.”

“Não diga isso à ela!”

Ela não sabia fazer muitas coisas. Não sabia preparar comida e nem sabia o que podia ou não dizer à uma criança. Ela sequer sabia segurar um bebê tão pequeno e delicado quanto Maya.

“Você não serve para ser mãe. Ela está com alguém que pode dar a ela o que precisa.” – a voz feminina era firme e familiar, mas lhe causava náuseas.

As horas foram passando sem que ela fosse capaz de conciliar o sono. E sua cabeça começou a latejar de dor. Devagar, ela se arrastou para o quarto, atravessando o cômodo até o banheiro. Um banho quente poderia ajudar.

Mas nem embaixo da água quente as vozes em sua cabeça pararam de martirizá-la. E a cada frase, repetida, mais sua cabeça doía. De repente, o choro a surpreendeu, explodindo de forma incontrolável abafado apenas pelo som do chuveiro.

Encostando na parede, ela se permitiu chorar, tentando por pra fora toda aquela tristeza que a incomodava. Foi em vão, aquilo parecia não ter fim. As vozes ameaçadoras ainda a cercavam, sufocando-a. Trêmula, suas pernas já não conseguiam sustentar seu corpo e ela escorregou até o chão, apoiando as mãos dos dois lados da cabeça e pressionando para tentar sentir algum alívio da dor.

Havia tanta dor e escuridão que ela só queria que acabasse, que tudo chegasse ao fim. Então, de alguma forma, mesmo com tudo aquilo sendo desfavorável, ela sentiu a bebê se mover no seu ventre lembrando-a que não se tratava só da sua vida. Jane respirou uma, duas, três vezes. Reuniu toda força que ainda lhe restava e gritou:

— Kurt... – sua voz já desaparecendo ao final do curto nome. O esforço custou caro, aumentando ainda mais a dor.

No instante seguinte, ele estava ao lado dela, a envolvendo com toalhas, suspendendo-a em seus braços. Enquanto atravessava o apartamento em direção à porta de entrada, ele tentou conseguir o máximo de informações que podia:

— Eu preciso saber se sua barriga está doendo também.

— Cabeça. – ela respondeu fraco.

Já fora do apartamento, com Jane nos braços, ele conseguia chamar o elevador. Foi  então que as portas magicamente se abriram, mostrando um casal de vizinhos que chegava de uma festa.

— Sr. Weller, o que aconteceu?

— Eu não sei. Ela está com muita dor na cabeça. – Kurt disse.

— Meu carro está estacionado aqui na frente. Vamos levá-los ao hospital.

Enquanto desciam, a mulher foi ligando para a emergência. Já dentro do carro, tentaram fazer tudo que indicavam ao telefone, mas Jane pouco colaborava.

— Jane, por favor, só mais um pouco, meu amor. Você precisa ser forte só mais um pouco... – Kurt dizia baixo e tentando parecer calma para passar segurança à ela. – Vai ficar tudo bem. Eu preciso de você, Jane. Fica comigo.

Devagar, ela abriu os olhos e se conectou com ele. Respirou fraco e balbuciou:

— Sorry... – e sua cabeça tombou para trás.


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Notas finais do capítulo

Apesar de dar ênfase às coisas negativas que a afetavam, procurei mostrar que não foi uma trajetória linear. Momentos bons aconteceram trazendo altos e baixos para o que ela experimentava.
Não se desesperem. Está tudo sob controle. Pelo menos fui capaz de terminar o arco iniciado no capítulo passado.
Se quiserem compartilhar comigo suas sensações ao lerem esse capítulo, será ótimo conversar com vocês.
Muito obrigada pela leitura e tenham um ótimo domingo!