Jane escrita por Lucca


Capítulo 11
Descobertas


Notas iniciais do capítulo

Pandemia + ONHB + fim de bimestre + quarentena = falta total de inspiração.

Mesmo assim tentei escrever pra não deixar essa história morrer. Meu maior medo e acabar abandonando-a se me afastar.

Jane sempre tentou resolver tudo sozinha. Quando tentou falar de seus pesadelos pessoais, o que encontrou foi Weller disposto apenas a impor seu sonho como solução de tudo. Assim, não existe nada lá mesmo nos instintos dela que apontem aqueles que a rodeiam como base de apoio.
Em contrapartida, também chegou a hora de todos perceberem que uma powergirl não é autosuficiente e também pode ter problemas para superar suas crises emocionais sozinha. Kurt e o team que lutem para descobrir o que está acontecendo e ajudar Jane antes que a percam de uma forma ou de outra.

Boa leitura.

PS: Alguém aí quer vir tomar um café comigo?



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A vida perde muito da sua cor quando se está rodeado de incerteza num quarto de hospital. Kurt tentou se forçar a enxergar o lado positivo de estarem ali: era o lugar certo, talvez o único lugar onde pudessem fazer alguma coisa por ela, estar ali era sinal de que ainda havia esperança. Mas o sentimento de fracasso também era grande. Ele realmente acreditou durante as últimas semana que não voltaria a ver Jane inconsciente e tão fragilizada numa cama hospitalar. Colocou isso no passado. Ela parecia tão bem...

Foi uma noite longa, com muitos exames sendo realizados às pressas. Inferno, ele odiava assinar todos aqueles papéis que alertavam para os riscos que ela e a bebê corriam. A madrugada já estava chegando ao fim quando os médicos deram seu parecer e se retiraram do quarto dizendo que ele deveria descansar. Descansar... era irônico.

Kurt andou nervosamente pelo quarto, mão no pescoço pela necessidade de tentar aliviar um pouco da tensão ali acumulada. Respirou fundo e olhou para ela na cama. Suspirou. Deus, pelo menos eles garantiram que a medicação a livraram da dor.

Ela parecia serena assim adormecida, distante de qualquer problema. De repente, ele se pegou apagando boa parte das luzes do quarto tentando deixar o ambiente mais aconchegante ao sono dela. Depois puxou a poltrona para o lado da cama, precisando estar ali bem próximo caso ela acordasse. Mas também porque olhar para Jane acalmava as ondas revoltas do seu interior.

Resistência, essa era a palavra que parecia defini-la. Ela ainda lutava com tudo que tinha para estar aqui.

— Você nunca para, não é mesmo? – ele sussurrou para ela enquanto deslizava os dedos pelo seu rosto – Isso mesmo, meu amor. Continue assim. Você está fazendo um bom trabalho, Jane. E não está sozinha. Vamos descobrir uma forma de te ajudar. Eu prometo. – e, se levantando, seu um beijo demorado na testa dela. – Boa noite, Honey.

***** Algumas horas depois... *****

                - Os exames mostraram que a bebê está muito bem. Quanto à Jane, nada que justifique a dor aguda que ela sentiu ou... isso. Ela parece simplesmente estar dormindo. – e Kurt sorriu triste. – Mas não conseguiram trazê-la de volta. Já fizeram tudo que podiam.

                - Talvez ela só precise descansar. – Boston tentou parecer otimista.

                - É uma boa teoria... – Patterson refletiu. – Ela foi zero a quase 100% de forma muito rápida. Recuperar linguagem e movimentos já seriam um progresso notável depois do que ela passou. Mas ela foi muito mais longe: foram diferentes línguas, programação de computadores, desenho, pintura.

                - Será que foi isso, então? Uma sobrecarga num sistema que estava reinicializando pode causar pane. – Rich disse querendo ajudar, mas só depois percebeu que palavra pane também era assustadora. – Se ela está respirando bem e tudo o mais, deve ter entrado numa espécie de “stand by”. Jane é especialista em sobrevivência, lembram-se? Ela pode ter acionado esse recurso para se proteger. Logo ela acorda. E, então, adotamos uma estratégia muito mais lenta para reintroduzir tudo.

                - Não sei. Pintar parecia fazer bem a ela. Fluía de forma natural. – Boston colocou um contraponto que achou importante com um braço cruzado sobre o peito apoiando o cotovelo do outro cuja mão sustentava o queixo.

                - Nas aulas de programação com meninos era a mesma coisa. A participação partiu dela. Mesmo assim, acho que sobrecarga e autopreservação são conceitos interessantes para pensarmos já que continuamos lidando com um caso sem precedentes. – a conclusão de Patterson foi relatada enquanto a loura corria os dedos pelo braço da amiga.

                - Bem, nós já estamos indo, Kurt. – Rich informou se despedindo. – Vamos estar por perto. Se precisar, é só chamar. Será um prazer fazer companhia à Jane. – E se aproximou da cama, dando um beijo nos cabelos dela. – A Branca de Neve sempre acorda no final, não se esqueça, hein! – nenhum comentário mais picante veio à sua mente porque ele estava realmente preocupado.

                Boston fez o mesmo, colocando-se à disposição e beijando Jane antes de se retirarem do quarto. Patterson ficou mais um pouco.

                - Sobrecarga... parecia normal deixá-la ir ganhando autonomia. – Kurt refletiu em voz alta, voltando a se sentar na poltrona ao lado da esposa e pegando sua mão.

                - É só uma teoria, Kurt. Pode ser que não seja por isso. – a loura fez questão de marcar a relatividade da teoria.

                - Quando ela acordar de novo - porque ela vai acordar de novo, eu sei que vai – não vou deixar isso se repetir.  – ele parecia bem aflito - Nada de rotinas estressantes: nem fisioterapia, nem fonoaudiologia, nada! Jane só vai casa. Voltar a falar ou andar será no tempo dela sem intervenções. E se não voltar, não tem problema. Vou estar lá pra cuidar dela. Posso falar por ela, carregá-la para onde for necessário... Desde que ela esteja em casa e comigo já vai ser ótimo!

                Patterson se aproximou e colocou a mão no ombro do amigo:

                - Kurt, eu sei que isso deve estar sendo muito difícil. Você precisa se cuidar também. Procurar ajuda. Um psicólogo ou um outro profissional da área.

                - Eu estou bem, Patterson. Jane é quem precisa de cuidados.

                - Não só ela. Você acabou de dizer que aceitaria mantê-la em estado praticamente vegetativo só para tê-la ao seu lado. Isso não é bom, Kurt. Se ela acordar... quer dizer, quando ela acordar, terá o direito de se desenvolver de novo. Não podemos tirar isso dela mesmo que traga riscos. E você tem Bethany também, lembra-se?

Kurt apoiou os cotovelos na cama e sustentou a cabeça com as mãos desolado.

— Além disso, Jane teve um apagão logo após recuperar a consciência enquanto você ainda estava no Colorado, lembra-se? – a loura continuou – E não havia sobrecarga ali. Pelo menos, não física ou intelectual. Talvez haja algum outro fator... essa teoria não está fechada.

— Parece que eu nunca sei cuidar direito delas, Patterson. De nenhuma delas: Jane, Bethany, Taylor...

— Chega, Kurt! Você vai procurar ajuda ainda hoje. Precisa resolver isso para poder alcançá-las, entende? Jane precisará muito de você quando acordar. Eu, Rich e Boston nos revezaremos cuidando dela. Vá pra casa. Tome um banho e descanse um pouco. Estou marcando um horário pra você com a Dra. Sun.  – disse já digitando a mensagem no celular para garantir a consulta.

— Não posso sair daqui. E se ela acordar?

— Estaremos aqui por ela e te avisaremos assim que acontecer. – a louca o tranquilizou colocando a mão em seu ombro e mantendo a voz firme para mostrar que não aceitaria recusas. – Você é a base que está sustentando tudo, Kurt. Se desabar, elas vão ruir com você. Então, não é simplesmente uma questão de escolha. Vá porque sua família depende disso agora.

Ele torceu o pescoço nervoso e insatisfeito. Afastar-se de Jane parecia uma ideia horrível. Fazer isso sem estar indo atender as necessidades de Bethany parecia ainda pior. Ter o foco de sua atenção voltada para si mesmo, então, parecia totalmente absurdo. Alguns momentos de silêncio se seguiram com ele fitando o rosto de Jane. E se Patterson estivesse certa? Admitir que precisava de ajudar era uma pílula difícil de ser engolida. Inferno, sua vida toda foi fugir dos pontos mal resolvidos. Talvez tenha chegado o momento de repensar a si mesmo por mais que isso lhe trouxesse desconforto.

Finalmente ele aceitou. Agradeceu a amiga e saiu.

****Consultório da Dra. Sun, algumas horas mais tarde.*****

                - Pra mim, você tem muito claro qual é problema, Sr. Weller. Não há como estar em dois lugares ao mesmo tempo. A vida envolve fazer escolhas, mesmo que muitas vezes não desejássemos ter que fazer isso. - Dra. Sun começou sua avaliação após os dois terem uma longa conversa.

                - Se isso é natural da vida, por que me sinto assim?

                - Talvez porque falte aceitação de suas próprias escolhas. Ao longo dos últimos anos você tem ficado ao lado da sua esposa e afastado de sua filha. Reunir as duas é seu maior desejo e tem sido frustrado repetidas vezes. Essa situação é o que parece te incomodar. Nesse caso, existem duas opções. A primeira é colocar a prioridade em Bethany e se mudar para o Colorado deixando Jane numa instituição que possa acompanhá-la. Sua esposa receberá os devidos cuidados e você poderá visitá-la com mais frequência do que visita sua filha.

                - Acho que você não entendeu. Jane sente minha falta. Ela me ama e confia em mim. Uma instituição não dará o amor e o apoio que ela precisa agora.

                - O que vou dizer não será fácil de ouvir, mas espero que entenda que é necessário. Jane tem sofrido danos psicológicos desde a mais tenra idade. Não se pode escapar ileso disso. Provavelmente, mesmo antes dessa última contaminação por ZIP e do coma, os danos já fossem irreversíveis. As situações as quais ela foi submetida a forçaram a desenvolver um instinto de sobrevivência. Você quer acreditar que ela te ama e precisa de você. Mas o fato é que ela pode apenas ter simulado ter esses sentimentos como uma forma de proteção diante das novas realidades que enfrentou.

— Não, Doutora. Jane me ama. Tenho certeza.

— Como você sabe, só analisei o irmão dela, mas os danos eram claros e irreversíveis. Acho muito difícil ela não carregar o mesmo problema dadas as circunstâncias. É normal quando se sente um amor grande e carente de compensação desde a infância, como era seu caso com Taylor Shawn, não enxergar os limites do relacionamento que está vivendo.

— Você não conhece Jane como eu...

— Tente pensar sobre isso, ver sua necessidade de ficar ao lado de sua esposa como uma forma de compensar a perda de Taylor já que as duas tem semelhanças físicas. E, se essa sua escolha por Jane permanecer consolidada, então, existe uma segunda opção.  Desde que soube que sua filha estava a caminho, você se preparou para a chegada dela. E, em termos concretos, quem se afastou com a criança foi Allison. A escolha pelo Colorado foi dela e não sua.

— Foi algo necessário para que Allie tivesse uma carreira profissional com riscos menores.

— Ainda assim, uma escolha dela tanto para a vida pessoal quanto profissional. Se a criança tem problemas com a distância, cabe à vocês dois encontrarem um meio termo. Uma mudança de cidade, escola, amigos é um processo que deve ser observado com cuidado. Mas crianças adaptam-se com muito mais facilidade que adultos. Se ela não quer vir para NYC, poderia pensar numa outra localidade mais próxima que permitisse sua presença física na vida de Bethany com mais frequência.

— Foi o que minha irmã fez por Sowyer. Uma vez cheguei a sugerir, mas Allie não parecia disposta a isso.

— Quando você chegou a sugerir isso, a menina já estava apresentando os problemas de agora?

— Não, ainda não.

— Mais um motivo para trazer a conversa de volta. Mas, antes de fechar essa nossa conversa, quero colocar mais uma coisa a respeito de Jane. Esse apagão pelo qual ela está passando pode dizer muito sobre ela. Você relatou uma série de limitações que ela carrega depois do coma, assim como um processo de reabilitação. Parece que só agora ela tomou consciência do que aconteceu e de sua situação. Para alguém acostumada a manipular situações a seu favor, isso pode ter um custo alto o suficiente para justificar a desistência da própria consciência.

Kurt ouviu calado, mas seu interior fervia toda vez que a Dra. Sun falava de Jane como alguém totalmente frio e calculista. Algo, porém, pareceu chamar sua atenção. Talvez tenha existido algo forte o suficiente para fazer Jane achar que não poderia lidar com aquilo. Assim que ela terminou, agradeceu e saiu.

Por algum motivo que sua racionalidade não apontou, ele não voltou ao hospital e continuou dirigindo pelas ruas de NYC, rumo aos subúrbios da cidade.

Jane não era como a Dra. Sun descrevia. Remi pode ter sido, mas Jane jamais. Ela era empática, sensível, determinada a ajudar qualquer um que cruzasse seu caminho. Jane foi Alice e foi Remi. Foi ou era? As duas se fundiram, então... Não! Ele a conhecia e sabia que não... Merda, ele nunca desejou tanto que Roman estivesse vivo para dar alguma informação sobre a irmã que pudesse ajudar nesse momento.

Entre reflexões e sentimentos, ele dirigiu por mais tempo que se deu conta, saindo da cidade. De repente, se viu em frente a um presídio de segurança máxima. O lugar que confinava Nigel Thorton, o Dr. Borden.

Não foi difícil conseguir que liberassem a visita mesmo em pleno final de semana, afinal ele era o Diretor Assistente Interino do NYO no momento.

Weller começou ponderando cuidadosamente o que dizer. O silêncio de Borden o intimando a dar mais detalhes se precisava de um parecer psicológico de quem realmente conhecia Remi. Aos poucos, a represa de fatos e sentimentos ruiu e uma onda de relatos varreu a sala.

Borden ouviu e ouviu. Braços cruzados. Olhar cabisbaixo. Quando Weller finalmente pareceu ter terminado, ele falou:

— Se você veio até aqui é porque está pronto para ouvir não só o que deseja. Vou te dizer o que disse à ela quando me procurou: não existem duas pessoas, Jane e Remi são uma só pessoa. Você se casou com as duas, Weller, sua esposa é a cria de Shepherd. Com o histórico que vocês dois carregam, o relacionamento de vocês está fadado à ruína porque o caos a acompanha.

— Eu não acredito nisso!

— É claro que não. Você a quer, mesmo contrariando todas as evidências do quanto isso te faz mal, você ainda a quer.

— Jane moldou a si mesma após sair daquela bolsa na Times Square. Superou toda a doutrinação de Shepherd. Ela sempre enxerga o que há de melhor nas pessoas.

Com um sorriso malicioso, Borden prosseguiu:

— E você acha que ela entrou na vida de todos nós como? Ela se aproximava demonstrando se importar com cada um dentro da Sandstorm. Remi era a queridinha de todos dentro da organização. O amor doentiu de Roman tinha razão de ser, a possessividade de Oscar, os ciúmes de Cade diante da proximidade entre ela e Markos. Sempre sorrindo e subvertendo pequenas regras para agradar a todos fingindo agir nas barbas de Shepherd. – e riu com sarcasmo. – Quando ela acordou na nossa casa do Afeganistão, mesmo muito machucada, armou uma cena fingindo que iria deixar a casa para garantir nossa segurança e de toda a vila. Chris chegou a sedá-la para mantê-la na casa. Uma estratégia bem pensada para ganhar nossa empatia e conseguiu! Como você pode ver, a conta que ela tem com o passado é bem longa e cara. Mesmo que tenha mudado ao ser zipada, o anseio por justiça que costura seu passado e presente fará com que ela passe o resto da vida tentando sair do vermelho, mas nunca será o bastante. Se você quer estar lá e acompanhar isso, aposente o projeto de família feliz. Não dá para conciliar isso e sua filha. Estar ao lado dessa mulher é navegar num mar solitário e naufragar com ela.

Kurt ouviu em silêncio. Quanto mais Borden falava, mais as inquietações no seu interior se acomodavam, consolidando suas decisões.

— Talvez tivesse sido melhor para ela ter morrido na Times Square. Não há paz para ela enquanto viver. Jane continuará tentando devolver uma estrela-do-mar de volta ao oceano numa praia repleta delas. E, ao concluir essa missão, ainda se deparará com a praia cheirando a morte.  É isso. – Borden finalizou relaxando o corpo na cadeira.

Dessa vez, Weller não agradeceu ou se despediu. Apenas se levantou e saiu.

Já no seu carro, dirigindo pela estrada deserta à sua frente, as lágrimas o assaltaram e ele deixou que fluíssem. Era preciso deixar que todas viessem à tona agora, enquanto estava longe de tudo e de todos. A noite caia rápido.

Fez uma única parada num pequeno hotel na entrada de NYC. Foi rápido, apenas tomou um banho para se livrar da negatividade daquele dia. Aproveitou para comer alguma coisa e seguiu.

De volta ao hospital, agradeceu a Boston que estivera com Jane nas últimas horas. Depois que o amigo saiu, posicionou a poltrona de forma habitual e a observou. Algumas coisas mudaram nas últimas horas. Agora ela tinha uma sonda nasogástrica para alimentação já que o quadro não mostrou melhora e a gravidez exigia mais do que o soro com eletrólitos podia oferecer. Desejou boa noite com o beijo tradicional na testa dela e deixou-se adormecer.

A manhã seguinte já avançava quando Patterson chegou. Ela entrou devagar. Kurt estava debruçado na cama, olhos próximos à pele coberta de tinta da esposa enquanto as costas dos seus dedos descreviam movimentos suaves indo e voltando pelo braço dela. A cena preocupou a loura:

— Kurt...como você está? Vim assim que recebi sua mensagem.

— Estou bem, Patterson. De verdade. Você estava certa, procurar ajuda era o que eu precisava. – disse dando um olhar rápido para a amiga antes de retornar o foco para a pele da esposa. – Por favor, me diga uma coisa: o que você vê quando olha para a pele dos braços dela.

A loura respirou fundo e fechou os olhos por um momento desejando profundamente ter sabedoria para conduzir aquela conversa já que suas deduções apontavam que Kurt não estava tão bem quanto dizia.

— Eu vejo as tatuagens. No começo, elas me intrigavam. Eu ficava olhando para as imagens se movimentando na pele dela como se aquilo fosse me ajudar a decifrar os segredos que escondiam. Mas os enigmas foram perdendo força à medida que minha amizade com Jane foi se firmando. Hoje, as tatuagens são quase um sinônimo dela pra mim.

— Pois é. São tantas tatuagens e cobrem tanto da pele dela que a gente nem consegue enxergar certas coisas. Eles a picaram várias vezes ontem. Tem um roxo aqui, outro ali, mais um desse lado. – e foi apontando os locais. - Mas as tatuagens camuflam isso assim como boa parte dos ferimentos e cicatrizes que ela tenha. E Jane tem outras formas de camuflagem, herdadas do orfanato, da vida com Shepherd e de Orion. Rich diz que ela parece ameaçadora. – e deu um leve riso triste. – É verdade. E isso impede as pessoas de verem a tristeza e preocupações que ela carrega na alma. Ontem, eu procurei a ajuda da Dra. Sun, mas tentando me ajudar, ela focou em me mostrar essa casca que recobre Jane. Não fiquei satisfeito. Queria alguém que conhecesse Jane de fato, não que a julgasse a partir de teorias. Então, fui até Borden...

— Ah, Kurt, essa foi uma péssima ideia. Você não pode confiar nele...

— Ele fez a mesma coisa, Patterson: me mostrou a Remi que eu não vejo.

— Sinto muito ter te levado a passar por isso, Kurt. Eu não pensei que seria assim. Não queria te colocar contra ela.

— Eu sei que não.

Então ele fez um longo relato de tudo que Borden havia dito e concluiu:

— Sabe por que nossa visão é tão diferente da visão deles? Porque nós amamos Jane. Eles dizem que isso nos impede de enxergar a mulher real, mas são eles que não enxergam quem ela realmente é. Dra. Sun não aceita exceções às regras das suas teorias. Borden só se guia pela vingança. Ela confiou nele no momento que estava mais fragilizada. E o que ele fez? Reativou a casca, camuflando o problema que continuava lá, mas colocando ela para funcionar de novo para que ninguém percebesse e assim as chances dela se acertar diminuíssem. Daí veio nosso tempo em fuga, meu ego ferido que me fazia ouvi-la sem me atentar para a dimensão do que ela estava enfrentando. Tudo que fiz por ela reafirmar o que eu mesmo queria: Bethany e o Colorado. Dessa forma me tornei a única estrela-do-mar que ela podia salvar de uma praia repleta delas morrendo ao sol. Justificável ela se trancar numa sala com ZIP ou não tomar o antídoto. Triste, mas é também a prova que Bordem e Sun estão errados. Ela ama o suficiente para dar sua vida pelos seus.

 - É claro que ela nos ama. O próprio relato de Borden sobre a relação de Remi com todos à sua volta pode estar carregado de equívocos. Talvez Remi tenha conquistado a empatia de todos porque também sentia empatia por eles. Um sentimento relativo e forçado a se finalizar diante das novas determinações de Shepherd, mas ainda assim existente e cativando pessoas. Sinto muito que tenha sido tempo perdido procurá-los buscando ajuda.

— Não, pelo contrário. Por isso te chamei aqui. As conversas que tive com eles teve momentos bem proveitosos. E não dá pra falar sobre mim sem falar sobre Jane. Dra. Sun acha que à medida que ela foi ganhando consciência de suas limitações isso a colocou em crise. Na teoria dela, a Jane calculista e manipuladora não aceitaria depender de outras pessoas. Com Borden descobri que ele nunca tratou Jane de verdade, só camuflou os problemas que ela tinha.

— Onde você está querendo chegar...

— Jane tinha problemas emocionais antes do acidente e ainda tem agora. Isso a fez se colocar em risco no passado e a fez apagar. Tenho certeza. Dra. Sun deve estar certa sobre ela estar ganhando consciência de suas limitações. Vocês notaram que ela estava triste.

— Acho a ideia de uma sobrecarga emocional muito mais plausível que anterior baseada só em questões físicas ou intelectuais. Entretanto, pensar que tomar consciência de suas limitações a levariam a um colapso não parece muito do perfil dela. Jane simplesmente tentaria superar.  Além disso, tenho pensado muito em outra coisa. Jane teve o primeiro apagão muito antes do coma. Isso também aconteceu quando o envenenamento por ZIP começou a dar sintomas.  Foi logo depois da morte de Roman. E ela também quase perdeu você naquele dia.

— Perdas... faz total sentido quanto ao passado. Mas ela não perdeu nada agora. E ainda falta encaixar o apagão que ela teve logo depois de voltar do coma. Se encontrarmos a linha que costura tudo isso, entenderemos o problema e poderemos ajudá-la. De qualquer forma, o fato é que o passado é inseparável dela e de mim. Sempre teremos que gerenciar as bagagens que carregamos no presente. Liguei pra Allie hoje cedo, pedi avaliação de outros especialistas fora da escola e reafirmei que, se para resolver o problema Bethany e eu tenhamos que ficar mais próximos fisicamente, ela precisa pensar numa mudança pra mais perto já que eu não posso me mudar. É o que eu posso fazer no momento porque também tenho uma família aqui precisando de mim. Jane acordando ou não me terá ao seu lado para enfrentarmos juntos o que vem pela frente, no tempo e ritmo que for necessário.

— São decisões de coragem. Fico feliz por você. E, se fui chamada aqui é porque você tem uma missão especial para mim nisso tudo.

— Sei que está bem atarefada com a ONG e o nascimento de Maya, mas você sempre teve uma sintonia especial com Bethany. Se puder olhar os arquivos das ocorrências na escola e cruzar isso com situações similares que nos ajudem a entender o que está acontecendo com ela, ficaria extremamente grato.

— É claro que eu faço e com muito carinho.

— E, quanto à Jane, você é tão boa com enigmas. O trabalho que fez com as tatuagens foi incrível. Será que não poderia colocar todos esses dados no computador e descobrir as peças que estão faltando? – e olhou para ela com o olhar carregado de súplica.

— Hmmm, criar um “Jane alert” para situações potencialmente perigosas e que poderiam causas novos apagões... É desafiador. Rich e Boston vão amar me ajudar. – Então se abaixou ao lado do amigo – Mas nenhuma inteligência artificial será capaz de fazer as ligações que seu coração pode, Kurt. Confie no amor que você sente por ela. Basta alimentar sua inteligência emocional com todos os dados, dando a atenção devida que ela precisa agora. Em toda a vida dela, Kurt Weller foi o melhor sistema de “Jane alert”, capaz de compreendê-la e decifrá-la. Nosso tempo em fuga pode ter desequilibrado isso, mas passou. Coloque seu foco novamente nela e tudo vai dar certo.

— Obrigada por suas palavras. Queria confiar em mim mesmo como você. Não posso correr esse risco. Se eu falhar, preciso que exista algo lá capaz de ajudá-la.

— Eu não disse que não faria o programa. É desafiador e eu amo decifrar enigmas. Vamos trabalhar nisso sim. Se Kurt Weller falhar, o Jane Alert entra em ação.

Pouco depois, Patterson deixou o hospital. Kurt passou a tarde ao lado do leito de Jane, boa parte do tempo recolhido nas lembranças dos últimos dias, buscando algo que explicasse o que aconteceu. No grupo de amigos da rede social, a ideia do Jane Alert fervilhou com todos compartilhando lembranças de momentos vividos ao lado dela e das suas reações.

“Weller, estou apostando alto em você. Não me faça perder essa!” Zapata fez questão de colocar.

“Kurt vencendo um programa criado por mim e Patterson? Faz me rir, Meia Porção da Sofia Vergara.” Rich zombou.

Kurt riu e se emocionou com o empenho dos amigos em contribuir para o programa que poderia ajudar Jane. Todas aquelas lembranças falavam alto ao seu coração, firmando ainda mais a visão de Jane que ele sempre teve.

No meio da tarde, fez uma vídeo-chamada com Bethany, afinal era domingo. 

Após realizar muitas anotações no bloco de notas de seu celular, apesar de ainda bem mais cedo do que o habitual, Kurt apagou as luzes do quarto e se preparou para dormir.

— Eu ainda estou aqui, Honey. E não vou sair do seu lado. – e pegou a mão dela e colocou em seu peito. – Está sentindo isso, Jane? Não vou desistir de você. Por favor, também não desista. – e, abaixando-se, afagou seus cabelos e roçou os lábios sobre os dela.

**** No meio da madrugada... *****

                Não foi lento e cuidadoso. A realidade a assaltou com tanta rapidez quanto sua consciência despertou. Apesar da violência como tudo aconteceu, ela controlou sua respiração para que a pulsação não oscilasse deixando o som dos aparelhos estáveis. Por quê? Merda, ela não sabia definir porque agia assim. Apenas fez.

                Seu primeiro instinto foi levar a mão até a barriga. Não foi tão fácil conectada ao acesso intravenoso e ao oxímetro. Mas ela conseguiu e pode respirar aliviada ao ver que a saliência continuava ali. Logo depois a bebê se moveu a tranquilizando ainda mais.

                Sentir-se presa era muito desconfortável. Mesmo na penumbra, seus olhos e tato varreram as amarras em seu corpo. Inferno, não dava sequer para tentar se sentar.

                O ronco de Kurt encheu o quarto fazendo-a rir. Havia tanta familiaridade e carinho naquele som. Antes mesmo de ser virar para fitá-lo, ela antecipou o que veria:  mandíbula cerrada, sobrancelhas franzidas, aquela ruga mais acentuada na testa demonstrando que, mesmo dormindo, a tensão o acompanhava. Ela fechou os olhos, aspirou o ar e só então virou-se devagar até encontrar tudo tal e qual seu conhecimento dele já lhe dissera.

                “Kurt... Weller... FBI” repetiu em seu pensamento o nome dele tal como estava tatuado nas suas costas. Se havia uma pessoa no mundo em quem ela confiava e amava acima de tudo e apesar de todas as suas limitações era ele. Foi assim, olhando para o rosto dele que Jane deixou todos os fantasmas que a rondaram nos últimos dias sussurrarem ameaças em seus ouvidos. A cada fato relembrado, ela engoliu uma lágrima, fazendo-se mais e mais forte.

                Desde que acordara, Jane nunca sentira nada assim. Era uma força estranha e imensa que a tomava de forma avassaladora.

“Nie!” disse a si mesma. Ela não se entregaria ao medo e à culpa, nem deixaria tirarem mais nada dela. O tempo estava a seu favor, a bebê ainda demoraria a nascer. Até lá, ela estaria pronta para cuidar de si mesma e de seu pequeno rebento. E talvez, até antes disso, Weller pudesse se libertar dela para ser feliz com a filha, cuidando das necessidades da pequena Bee.

Tomada de coragem e certeza, ela tentou estender a mão para alcançá-lo, mas foi inútil. Então tentou chamá-lo. Nem foi decepcionante quando o nome dele não se formou em sua voz. Essa era uma de suas grandes limitações e ela nem sabia por quanto tempo estivera desacordada. Desistir, entretanto, não era uma de suas opções, nem agora nem para tudo que enfrentaria a partir dali. Jane respirou algumas vezes buscando o foco e colocou toda sua energia nisso:

— Kur... – saiu incompleto com uma voz oscilante. Aquela coisa em sua garganta só deixava falar ainda mais difícil. Mas ainda assim foi forte o suficiente para despertá-lo.

— Jane? – ele respondeu já se colocando em pé antes mesmo de estar completamente acordado. E, então, buscou a luz acima da cabeceira da cama dela para verificar se tudo não passara de um sonho.

Ela estava ali, pálida como nos últimos dias, mas com os olhos abertos olhando pra ele e um sorriso tímido rosto.

— Jane...Você acordou! - ele repetiu já tomando a mão dela entre as suas e buscando espaço para senta-se na beirada da cama. – Eu sabia que acordaria... – Só então se deu conta que poderia estar sendo invasivo demais. – Uou, me desculpe, eu não quero assustar você. – e sentiu a mão dela apertando a sua.

— O...K. – ela disse com dificuldade, mas tentando manter o sorriso no rosto.

— Você se lembra de mim?

Jane confirmou devagar inclinando a cabeça para o lado e arqueando as sobrancelhas comovida pela preocupação dele:

— Kur... – voltou a tentar dizer o nome dele sem muito sucesso para chamar sua atenção e levou a mão livre até a barriga implorando por informações com o olhar.

— Ela está bem, Jane. Estava ótima no ultrassom de ontem à tarde, ativa, atenta até aos movimentos do cursor do aparelho na sua barriga. – ele esclareceu afagando os cabelos dela. – Como você está? Esteve desacordada por quase dois dias...

Jane não respondeu tentando processar tudo. Sua bebê estava bem. Dois dias... não era muito tempo. A demora dela em reagir às informações deu tempo para Kurt repensar sua estratégia ponderando que precisava ir devagar com ela.

— Jane, olhe pra mim. – disse acariciando seu rosto.

Assim que ela obedeceu, ele retomou bem devagar, uma mão no seu rosto, a outra entrelaçada a dela enquanto o polegar roçava o cobertor cobrindo sua barriga.

— A bebê está muito bem. – e esperou um pouco para continuar. – Você entendeu isso?

Ela respirou fundo e assentiu enquanto suspirava e sorria.

— Ótimo, Honey. Você está sentindo alguma dor?

Devagar, ela balançou a cabeça negativamente.

— Vo...da – disse com um pouco de dificuldade, mas tentando parecer calma.

— Voda. – ele repetiu olhando pra ela enquanto pensava que diabos era voda mesmo. – Eu vou ter que jogar isso no tradutor. – confessou rindo e pegou o celular fazendo a busca. – Água! Vou chamar a equipe de enfermagem para sabermos se posso te dar água.

Em instantes uma enfermeira apareceu e avaliou Jane. Sentaram a cama e deram um pouco de água pra ela. Todo o resto teria que aguardar a avaliação médica na manhã seguinte.

Quando voltaram a ficar sozinhos, ela olhou para ele sentindo crescer a necessidade ser sincera e honesta. Pro inferno suas limitações, ela não deixaria que isso ou qualquer outra coisa impedi-la de ficar com sua bebê.

— Kur... – e esperou que ele estivesse com os olhos sobre ela. – Eu... – e as palavras sempre a traindo. Como dizer que ia se esforçar para melhorar em tudo e ser capaz de cuidar de si mesma e da bebê? - ...melhor. – foi só o que saiu.

Kurt tentou completar a frase, acionando seu “Jane alert”, sua Jane estaria preocupada em garantir a ele que se sentia melhor. Isso aquecia seu coração. Era a primeira vez nos últimos dias que se sentia assim tão leve e feliz. E, mais uma vez, foi pelo poder quase “mágico” que ela tinha sobre ele.

— Sim! – concordou empolgado, juntando-se a ela na cama e passando o braço por trás de seus ombros. – Você está bem melhor, eu sei.

— Melhor... mais. – ela tentou de novo. E colocando a mão no peito dele, continuou – Você bom. Ajuda?

— Você acordou, Honey. Está aqui comigo. Isso já é ótimo. Não se preocupe com o resto. – e beijou os cabelos dela. – Não sei se sou tão bom quanto você sempre diz, mas... eu vou estar aqui, Jane, com você. Pode contar comigo.

Ela olhou para ele e sorriu. No futuro, teria que deixá-lo livre para partir e ser feliz com sua Bee. Mas hoje ele ainda estava ali, ao seu lado e sentir seu carinho e seu calor era tão bom e fazia tão bem a ela! Dane-se que a separação fosse o que o futuro reservava para eles. Até lá, ela seria feliz com Kurt Weller e pronto!


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Notas finais do capítulo

Então é isso...
Ai, gente, estou realmente muito desmotivada pra tudo. Sinto muito.
Se ainda assim quiserem partilhar suas impressões dessa história comigo, quase num café literário (Oh céus, ultrapassei todos os limites do bom senso em aproximar isso de literatura.) entre amigos, ficarei feliz em responder a cada um de vocês.
Muito obrigada pela leitura.