Jane escrita por Lucca


Capítulo 9
Bee


Notas iniciais do capítulo

Existia um arco para esse capítulo. O que lerão a seguir é apenas um terço dele. Não dei conta.
Entre apagar tudo para reescrever ou dividi-lo em duas partes, optei pela segunda opção.
Boa leitura.



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Os dias que se seguiram foram bastante cansativos em casa e no trabalho. Kurt estava acompanhando Tasha de perto no SIOC e, com a desculpa de relembrar como executar toda burocracia imensa, tentava realizar boa parte das atividades para que a amiga pudesse descansar mais na reta final da gravidez. O tempo em casa estavam sendo bastante divertido, até relaxantes apesar das poucas horas de sono. Algumas vezes, ele insistiu em fingir dormir apesar dos dedos dela brincarem perigosamente em sua pele. Jane respeitava e logo parava. Após alguns longos minutos, ele arriscava entreabrir os olhos para verificar na penumbra do quarto se ela adormecera. E, droga, ali estava ela, olhos bem abertos o admirando, sorriso velado no rosto e peito inflando em suspiros silenciosos! Como prosseguir com a farsa? Dando-se por vencido, a puxava para seus braços e buscava seus lábios para recomeçarem aquele delicioso ritual de amor.

Jane estava bem mais ativa agora. Parecia completamente adaptada à nova rotina. Apesar de suas interações ainda estarem longe do que foi no passado, ela observava, questionava, demonstrava estar aprendendo.

Boston retornou aos EUA e passou a levá-la aos seu estúdio alguns dias na semana. Ele conhecia muitas técnicas de pintura e também pesquisou sobre as mais adequadas para introduzi-la nessa arte considerando suas limitações motoras. Os dois tinham ótimos momentos. Muitas vezes, a atividade a absorvia tanto, que Jane parecia em transe enquanto espalhava a tinta na superfície da tela. Apesar de ser sempre muito falante, Boston reconhecia e respeitava o silêncio necessário num momento de criação e dava a ela o espaço necessário para isso.

Quando Jane estava na ONG com Patterson, mostrava bastante habilidade na parceria de programação com Sal. Por outro lado, não parecia muito disposta a interagir com os meninos fora disso, ficando sempre calada durante as aulas. Raras vezes sorria. Os comentários que eles trocavam entre si eram muitos estranhos a ela. Aquelas gírias e referências não faziam parte do universo comunicativo que ela estava reconstruindo com Kurt e os amigos.

Sua linguagem avançava lentamente, ainda carregada pela mistura de diferentes línguas. Avery e Patterson notaram que aqueles idiomas mais longe no seu passado recente passaram a ter mais peso. Além do africâner, dialetos do Afeganistão apareciam com frequência. Esse último acabou sendo muito útil num caso no qual o FBI investigava um grupo de migrantes que entraram ilegalmente no país e eram suspeitos de tráfico de armas. Com a ajuda de Jane, tudo se esclareceu de forma bastante rápida e aquelas pessoas foram inocentadas.

No meio da semana, muitas coisas aconteceram. Tudo começou durante os exames de rotina do pré-natal. Após a ultrassonografia, a médica quis conversar com Weller.

— Então, Sr. Weller, desde quando Jane estava em coma, percebemos essa aderência aqui que vocês relataram ter sido um tiro que ela levou. A bala foi retirada e a ferida suturada sem uma cirurgia mais detalhada o que resultou nessa cicatriz profunda que era para nós algo mais a ser observado no caso dela. Com o útero crescendo por causa da gravidez, isso poderia afetar o curso normal das coisas, talvez até antecipando um pouco o parto. Já estamos na 21ª semana agora e outra coisa me chamou a atenção. O útero de Jane também tem uma cicatriz junto a essa aderência dos tecidos. Provavelmente, a bala, numa linguagem popular, passou de raspão no órgão bem aqui. Como não foi realizada uma cirurgia convencional, o tecido cicatrizou sozinho sem os pontos necessários, deixando essa cicatriz larga e, possivelmente, afinando a parede do útero nessa região.

— Nunca pensei que aquele tiro pudesse ter deixado sequelas. Ela pareceu se recuperar tão rápido.  Qual a gravidade disso, doutora?

— Difícil prever. Na pior das hipóteses, o útero pode se romper a medida que a gravidez avançar. Na melhor delas, Jane pode chegar ao final do terceiro trimestre sem que isso afete a gestação. Ela já nos surpreendeu com uma situação bem mais grave. Mesmo assim, quero deixar o alerta. Observe-a o tempo todo. Dores leves na região serão comuns por conta da aderência, mas qualquer dor aguda precisará de atendimento médico urgente. E vamos redobrar os cuidados: nada de exercícios físicos pesados nem pegar peso. Alimentação saudável é ainda mais importante agora. Ganho excessivo de peso pode causar acúmulo de gordura ali atrapalhando um acompanhamento adequado através da ultrassonografia.

— Pode ficar sossegada, doutora. Vamos ficar atentos a tudo isso. Muito obrigada.

De volta em casa, Kurt explicou tudo a Jane, tentando simplificar e resumir. Ele confiava que, sabendo dos riscos, ela também estaria mais atenta e relataria qualquer dor, algo que não costumava fazer. Mesmo tentando ser otimista, o problema o deixou bastante preocupado. Ela parecia tão bem, as dores de cabeça diminuíram em frequência e intensidade. Por que tinha que aparecer mais uma dificuldade para ela agora? Já não bastava todo o resto? E cada detalhe ligado a tudo que Jane passou parecia acender um alerta constante nele: cuide dela! Tudo que ele queria era não falhar dessa vez.

No dia seguinte, Jane entrou no banho ansiosa pelo momento em que Kurt se juntaria a ela. Os dois tinham compartilhado o chuveiro algumas vezes nos últimos dias. Entretanto, o tempo foi passando e nada aconteceu. Ele não veio. Isso a inquietou e a fez apressar-se sair do chuveiro. E, de repente, a ideia estava lá sem qualquer formulação prévia, sem estratégias elaboradas e encadeadas. Ela puxou seu roupão e resolveu ir ao encontro dele na sala. Havia algo estimulante naquilo. Aproximou-se devagar, bem sorrateira, disposta a surpreendê-lo. Era quase como se ela pudesse prever a forma como ele olharia para ela, a despindo com os olhos antes mesmo de tocá-la como se até aquele tecido fosse muito para separá-los. Um sorriso maroto entortou os seus lábios e Jane precisou respirar algumas vezes tentando conter sua pulsação acelerada.

Ao alcançar o final do corredor, encontrou a sala vazia. Por algum tempo, seus olhos insistiram em varrer o lugar ainda a procura dele, mas foi em vão. Então, a voz baixa e pesada de Kurt a alcançou vindo do escritório. Claro, ele costumava ficar ali durante as vídeo-chamada. A vontade dela era vencer a distância logo para finalmente estar com ele.

Mas ela parou antes de alcançar o cômodo. Não porque tinha a noção de que seria inadequado ser capturada pela câmera de vídeo usando apenas um roupão, sua mente ainda não estabelecia conexões de padrões sociais com tanta rapidez. Nem tão pouco porque pretendia ouvir a conversa já que depositava uma confiança sem medidas em Kurt. Foram seus instintos que a deteram, algo dentro de si ordenando que parasse.

A pessoa do outro lado não podia ser ouvida. Provavelmente ele usava fones de ouvido. Seu tom de voz parecia prudente e preocupado. Na noite anterior, numa chamada telefônica, ele usou esse mesmo tom. Algo não estava certo. A conversa parecia o incomodar bastante. Ali, parada, Jane consequentemente, acabou ouvindo:

— Por Deus, não é que eu não tenha entendido. Mas é complicado pra mim nesse momento. Não posso deixá-la aqui e desaparecer por alguns dias. – e silenciou para ouvir a pessoa do outro lado. – Sim, ela está bem melhor agora. Mas eu ainda sou a principal referência dela. Jane passa algumas horas do dia com Patterson e Boston e também fica sozinha com a fisioterapeuta e a fonoaudióloga, mas espera que eu apareça para buscá-la na hora certa. Posso ver a segurança nos olhos dela quando me vê chegar. Isso é muito importante para a sua recuperação. Uma viagem agora é algo impensável. – e parou de novo para ouvir. – Eu sei, eu sei tudo que prometi. Sei que também sou importante aí. Como eu já te disse, estou disponível para conversar com a psicóloga quantas vezes forem necessárias por vídeo-chamadas. Talvez daqui algumas semanas eu até consiga ir. Se você puder trazê-la só mais dessa vez, eu agradeço. Eu sinto a falta dela, sinto demais e sei que boa parte disso se cura quando nos encontramos sem importar se isso acontece aqui ou aí no Colorado. – e ouviu mais – Aí ou aqui, a separação será inevitável por enquanto, Allie. Se for essa a raiz do problema, pelos próximos meses tudo que poderemos fazer é buscar atenuar o impacto já que nenhum de nós pode se mudar no momento. Espero vocês no final de semana, então. Mais uma vez, muito obrigada por trazê-la.

Jane não conseguiu compreender a conversa. Era muito difícil para ela encadear longas sequências de palavras sem o contato visual. Mas algumas coisas chamaram sua atenção. Kurt falava sobre ela e parecia impedido de fazer algo por sua causa. Isso a incomodou bastante, muito mesmo. Era uma sensação horrível de se sentir. Então o amor não traz só coisas boas? O que havia de errado? O que ela estava fazendo de errado?

Tão silenciosamente quanto chegou, ela saiu e voltou para quarto. Vestiu seu pijama e se deitou na cama enrolando-se no edredon para tentar lidar com o que sentia.

Não demorou muito, Kurt chegou.

— Jane? – já entrou chamando por ela. – Você já está na cama? – questionou estranhando a situação. – Está tudo bem? – quis saber enquanto acariciava a cabeça dela que assentiu rápido para tranquilizá-lo. – Ok. Vou tomar um banho e já volto.

E ele foi mesmo muito rápido. Poucos minutos depois se juntou a ela na cama e a puxando para seus braços:

— Será que você se cansou de sexo? – não foi bem uma pergunta dirigida à ela e sim quase uma reflexão em voz alta enquanto ajeitava aquela mexa do cabelo dela que sempre insistia em se rebelar na frente dos olhos. E realmente ela não pareceu entender.

Levando as mãos ao peito dele, ela olhou diretamente nos olhos dele e perguntou:

— Você... bem?

Kurt sorriu torto. O cuidado que ela sempre demonstrou por ele parecia intacto mesmo após Jane ter sofrido danos tão terríveis. Isso aquecia seu coração de forma tão especial.

— Sim. Estou bem. E tenho uma novidade. Bethany – e apontou para o porta-retrato – virá esse final de semana ficar conosco.

— Ei! – ela respondeu animada e sorrindo, fato que dispersou qualquer insegurança que Kurt sentiu em reunir suas meninas de novo.

— Ela deve estar com saudades. E tem tido problemas na escola por causa disso. Vai fazer bem para todos nós nos reencontrarmos.

A conversa seguiu animada. Jane se esforçou bastante para entender tudo que ele dizia e sorria porque percebeu que isso também o fazia sorrir. Usando diversos idiomas, disse parque, playgroud e patos. Kurt entendeu que as referências eram uma tentativa de sugestões de lugares para visitarem com a pequena ficando ainda mais feliz.

Após algumas tentativas frustradas de pronunciar o nome da menina, acabaram optando por um apelido.

— Bee. – Jane disse orgulhosa.

— Ótimo! Ela tem cabelos dourados como o mel. Nossa abelhinha Bee. Perfeito!

Entre as palavras, os toques começaram suaves, demonstrando carinho e apoio. Aos poucos a tom da conversa, que já era feita de poucas palavras, se perdeu num beijo seguido de outro. E voltaram a se amar, adormecendo bem depois, agarrados um ao outro como sempre acontecia.

Bethany chegou no final da tarde de sexta. A pedido de Kurt, Allie levou a criança até o SIOC. Após um forte abraço e muitos beijos entrecortados de perguntas carinhosas, ele finalmente agradeceu:

— Muito obrigada por ter vindo e por entender meus pedidos, Allie. O final de semana já representa uma boa dose de novidades. Por isso achei melhor deixar o encontro com você para o domingo. Jane terá tempo para se adaptar à Bethany até lá. – disse sem assumir os reais motivos de sua insegurança. Ainda eram vívidas as reações que Jane tivera no hospital com a presença de Allie e ele preferia não arriscar o equilíbrio que ela vinha apresentando agora.

— Tudo bem. Parece bem sensato introduzir uma pessoa de cada vez na vida dela. E, por falarmos em Jane, tentei explicar o máximo que pude a Bethany. Falei sobre ela ter ficado doente e agora ter dificuldade para falar. Também reforcei que ela estaria diferente. Ela pareceu entender. Mas não contei nada sobre a gravidez.  E prefiro que você ainda não fale. Com todo esse problema na escola, talvez saber que terá que te dividir com mais alguém além de Jane possa piorar as coisas. Vamos ver se ela se estabiliza com essa visita e o acompanhamento psicológico e então analisamos em conjunto a melhor forma de contar tudo a ela.

— Eu ia abordar esse assunto com você. Também pensei muito nisso depois que me contou sobre a escola. A barriga de Jane já está bem perceptível para um adulto, mas Bethany pode não perceber. Deixamos isso para um outro momento, então. E contaremos seguindo as orientações da psicóloga. Como foram os últimos dias, depois que você contou à ela que viriam pra cá? Alguma mudança na escola?

— Nada. A mesma resistência desde o momento que a acordo de manhã. Ela se nega a colaborar. Sempre vai chorando. E se mantém firme na determinação de não realizar as atividades o que, quase sempre acaba com uma reação violenta: empurra cadernos e lápis, se fecha à comunicação. Parece você contrariado, com direito à carranca e tudo! No recreio, tudo muda. Ela brinca, come, interage normalmente com as outras crianças. Deve ser uma tentativa de chamar sua atenção, como o psicóloga da escola suspeita.

— Espero que isso melhore após esse final de semana. Farei de tudo pra ela entender que a amo mesmo estando distante. Ela sempre foi tão doce.

— Ah, eu trouxe as lições de casa. Talvez com você ela faça. Comigo é inútil. Tudo que já consegui foram folhas amassadas ou rabiscadas e muito irritação e até choro. Fico me sentindo uma inútil. Nunca imaginei que algo assim pudesse acontecer. A psicóloga falou também de falta de limites. Mas sempre me achei até dura demais com ela...

— Não pense assim. Já sabemos que boa parte da culpa disso é minha ausência. E muitas vezes falho, permitindo tudo quando estou com ela. Vou tentar mudar nisso também. Vamos encontrar um meio de contornar isso, eu prometo.

— Vamos sim. E ninguém disse que seria fácil, não é mesmo?

— Bem isso. E o Colorado ser tão distante de NYC também não está ajudando...

— Pois é. Bem, eu vou indo. Você deve estar ansioso em levá-la pra casa e apresentá-la a Jane. Boa sorte!

Assim que Allie saiu, Kurt também deixou o SIOC com Bethany rumo ao estúdio de Boston onde Jane estava. Não era longe dali. Resolveu entrar com a filha no colo.

— Ah, ainda bem que você chegou! – Boston disse ao abrir a porta – Jane conseguiu me deixar ansioso. Comi três donuts inteiros! Tem quase uma hora que ela não faz outra coisa além de olhar pela janela e depois ficar parada olhando a porta. – e só parou para dar atenção a pequena que deitou a cabeça no ombro do pai, insatisfeita por perceber que o destinos deles não foi o apartamento como ela esperava - Olá, Bethany!

— Diga oi, filha. – Kurt insistiu.

— Oi. – a garotinha disse mais para atender ao pai do que por vontade mesmo. Ainda assim sua voz era muito doce.

Jane, que estava roendo as unhas quando eles entraram, parada,  com postura ereta e tensa, mas tentou sorrir:

— Oi! – disse tentando parecer animada.

— Olha quem está aqui, Bethany. É a tia Jane. Ela estava esperando por você a semana toda. – Kurt fez a intermediação.

Imediatamente a garotinha bateu as pernas e se jogou para Jane com os braços abertos, mas o pai a deteve:

— Não, Bethany. Você não pode ir no colo da tia Jane. Lembre-se que a mamãe explicou que ela esteve doente, lembra?

A decepção ficou nítida no rosto da pequena e, percebendo isso, Jane olhava angustiada para Kurt.

— Mas vocês podem se abraçar. – ele sugeriu olhando para Jane esperando uma permissão que veio rápido com um aceno de cabeça. Então ele se aproximou mais dela e Bethany, do colo do pai, lançou os bracinhos ao redor de Jane puxando-a para um abraço apertado. Jane retribuiu com delicadeza, parecia ter um certo medo de machucar a criança, vendo seu pequeno tamanho com sinônimo de fragilidade.

Pouco depois já estavam no carro indo pra casa. Bethany falou o tempo todo e cantou também. Jane acompanhava atônica, tentando compreender qualquer coisa, mas não dava tempo. A pequena já dizia outra frase, emendava outra canção.

No aparamento não foi diferente. Assim que chegaram, Bethany correu para o quarto e trouxe todos os brinquedos que podia para a sala. Logo todo o ambiente havia sido modificado. Ela brincava, cantarolava e falava o tempo todo. Também ligou a TV e colocou um de seus programas favoritos, repletos de músicas infantis.

Kurt assumiu a cozinha para preparar o jantar. Jane se sentou num canto do sofá, rígida observando e tentando interagir sem encontrar espaço pra isso. Tentava assimilar as músicas da TV, as falas da criança, a nova configuração da sala. Uma das cadeiras da mesa estava tombada para ser um escorrega para a Barbie. Outra estava repleta de mini objetos coloridos. Sem conseguir dar conta, ela se esforçava em sorrir toda vez que Bethany olhava pra ela.

— Você quer um cupcake ou um brownie? – a garotinha lhe perguntou num determinado momento.

Aflita por não saber o que eram as duas sugestões e sem saber pronunciar aquelas palavras, Jane puxou o ar e resolveu acenar dois com os dedos. Bethany coçou a cabeça e olhou para ela:

— Você fala? – questionou e Jane sacudiu a cabeça positivamente. – Mas não fala muito, né? Eu vou fazer os dois pra você escolher!

Daí a pouco retornou com o cupcake e o brownie moldados em massinha de modelar.

— Pra você! – ofereceu a Jane. – Coma tudo!

Jane pegou o cupcake e colocou na boca.

— Não! – Bethany gritou. – É só de mentirinha. Não pode comer de verdade.

Jane cuspiu tudo e Bethany riu muito da situação.

— É, você tá bem diferente agora. Vem, senta aqui no chão. Vamos brincar de outra coisa. – e levantou a mãozinha num alerta – Melhor nada de comer...

Enquanto brincavam com a montanha russa aramada, a garotinha percebeu as dificuldades motoras de Jane com a mão direita. Isso a fez se sentir meio que responsável por aquela adulta que estava tão diferente do que ela se lembrava. Manteve bem próxima a Jane, supervisionando-a com cuidado e atenção. Começou falar mais devagar e sempre olhando pra Jane que interagia mais assim.

Entre as brincadeiras, Bethany pegou uma boneca e disse:

— Essa é a minha bebê.

Jane se empolgou e balançou a cabeça assentindo e colocou as mãos na barriga.

— Bebê! – disse empolgada em encontrar algo em comum com a pequena.

Bethany parou e observou. Então gesticulou com o dedinho chamando Jane para mais perto porque queria sussurrar. Ela obedeceu:

— Tem um bebê na sua barriga? – perguntou baixinho.

— Ja...Sim. – Jane respondeu também sussurrando.

— E você sabe se é menino ou menina?

Jane se concentrou tentando pronunciar corretamente.

— Meni...na.

Bethany deu alguns pulinhos e girou fazendo Jane rir depois retornou ao padrão confidencial:

— Eu posso por a mão na sua barriga? – e deu uma olhadinha por cima do ombro de Jane para conferir se Kurt estava distraído na cozinha.

Jane endireitou a postura e balançou a cabeça confirmando. As mãozinhas da enteada repousaram em sua barriga.

— Ela tem nome?

— Não... – Jane respondeu triste.

— Não fica triste. Eu vou pensar num nome pra ela, tá bem? – e recebeu outra confirmação da madrasta. – Ela é minha irmã? – novamente Jane assentiu. – Ela é irmão da Avery?

Assim que Jane confirmou, Bethany deu uma nova sequência de pulinhos. A garotinha sempre tentou se referir a Avery com o irmã, mas todos ao redor a corrigiam. Então disse baixinho:

— Não conta pro meu pai. Mas agora nós três somos irmãs. Eu, ela e Avery! – e olhou eufórica para Jane.

— Sim. – Jane disse bem satisfeita em pensar em todos como uma única família.

Na mesa do jantar, Kurt percebeu o cuidado de Bethany com Jane que compreendia e atendia a criança. Após a refeição, os três brincaram juntos e Kurt leu uma história para a filha dormir. A pequena parecia exausta e, dessa vez, quis dormir no seu próprio quarto como fazia na casa da mãe.

Na manhã seguinte, o café foi animado. Aproveitaram o clima agradável daquele dia ensolarado para irem ao parque. Jane deixou espaço para Kurt ter bons momentos com Bethany e ficou apenas os observando. Aquilo a deixava feliz.

Voltaram ao apartamento para o almoço e pediram algo pronto. Tudo parecia na mais perfeita paz. Enquanto Kurt organizava a cozinha, as duas voltaram a brincar. Muitas musiquinhas na TV, e brinquedos.

Assim que terminou na cozinha, ele preparou a mesa para a lição de casa. Então chamou Bethany e avisou que precisavam fazer aquilo. A garotinha resistiu. Ele insistiu, não queria que ela achasse que na casa do pai não precisaria cumprir com suas obrigações escolares.

A primeira hora foi de tentativas carregadas de carinho que só colheram resistência da parte dela. Após quase uma hora, Bethany se sentou na mesa com o pai, mas permaneceu pouco receptiva a tudo que ele dizia. Kurt tentou e tentou sem conseguir tirar a garotinha de sua decisão de ficar alheia a tudo. Por fim, ele desistiu e deixou que ela voltasse a brincar.

No final da tarde, Bethany disse que queria ir ao Mc Donald’s.

— Nós só vamos se você fizer a sua lição. – Kurt disse calmo.

Mesmo contrariada, a garotinha obedeceu e foi para a mesa com o material escolar. Mas foi tudo que ela fez. Uma vez ali, voltou a ficar alheia e resistente. Kurt achou que seria necessário ser mais firme e foi. Bethany reagiu balançando os ombros e chegou a mostra a língua. De repente, ele se descontrolou diante daquelas reações tão atípicas da filha. Falou alto e bravo com ela:

— Isso não é brincadeira, Bethany. Estou muito decepcionado com você! Faça sua lição agora!

 Foi a vez de garotinha se descontrolar. Rabiscou a página e depois jogou tudo no chão.

— Que coisa horrível, Bethany. Não vamos passear amanhã. Você vai ficar de castigo porque está sendo uma menina má! Você me decepciona tanto... – rosnou se levantando e empurrando a cadeira antes de se afastar.

Jane observava do sofá, com seus instintos dizendo que deveria ficar longe. Sua respiração foi pesando a medida que Kurt e Bethany se desentendiam. As reações finais de Kurt caíram sobre ela pressionando seu peito. Era a primeira vez que o via assim tão nervoso. Existia algo famíliar ali que fazia tudo dentro dela doer. Como ele podia ter sido tão duro com Bethany? Ela compreendia a garotinha. Talvez ela simplesmente não fosse capaz de fazer aquela lição por algum motivo. Se fosse possível, teria feito porque era sempre tão doce e alegre.

Bethany continuava na cadeira, as mãozinhas castigando as laterais do móvel, rosto fechado, segurando o choro. Kurt andava de um lado para o outro tentando pensar no que fazer e percebendo que só tinha piorado as coisas.

Foi então que Jane se levantou e foi até a garotinha. Ela tinha que fazer algo. Por algum motivo que ela desconhecia, sabia como a pequena se sentia. Era horrível quando as pessoas te diziam que você as decepcionou. Abaixou-se ao seu lado e ajeitou seu cabelinho atrás da orelha.

— Jane, não. Eu vou resolver isso. – Kurt disse, preocupado em afastá-la com medo daquela situação ficar ainda mais grave envolvendo Jane, mas ela o ignorou.

— Não. – ela disse seca sem olhar pra ele. E depois se dirigiu a pequena. – Vem!

Bethany se jogou nos braços dela. Jane a envolveu enquanto a garotinha chorava com soluços altos. Então ficou em pé suspendendo a enteada sem afrouxar o abraço.

— Jane, você não pode... – Kurt tentou intervir preocupado com o peso de Bethany.

— Não! – ela gesticulou com uma das mãos o parando e olhou muito brava pra ele.

Depois saiu pelo corredor que dava acesso aos quartos com a garotinha nos braços. Entrando no quarto da enteada, bateu a porta demarcando que Kurt deveria ficar fora.

Kurt deu tempo e espaço as duas. Agora entendia melhor as reclamações de Allie. Bethany precisava mesmo de ajuda. Sentiu-se ainda mais culpado e impotente. E sabia que suas reações não ajudaram em nada a situação e precisava se redimir. Pediu o jantar e, assim que foi entregue, bateu na porta do quarto.

— Oi, eu posso entrar?

As duas olharam desconfiadas e ainda arredias. Estavam sentadas na cama brincando com bichos de pelúcia. Como não recebeu uma negativa ele entrou.

— Vim me desculpar. Eu gritei e disse coisas ruins. Não é verdade, Bee. Você é uma garotinha muito especial. Nunca se esqueça disso. Será que você pode me desculpar?

Bethany se levantou da cama e foi até o pai. Os dois se abraçaram, mas foi mais frio que o abraço do reencontro. A menina, assim como seu pai, precisava de tempo para voltar a vê-lo com os olhos de antes.

— Eu trouxe o jantar – Kurt disse mostrando o pacote do Mc Donald’s.

— Ei! – Jane exclamou feliz tentando motivar a reaproximação dos dois.

Eles se sentaram no tapete do quarto e comeram ali mesmo. Após o banho, Bethany puxou Jane pela mão numa clara demonstração sobre quem queria ao seu lado antes de dormir naquela noite. Kurt deu um beijo de boa noite e deixou que a esposa ocupasse seu lugar.

Jane ficou ali acariciando os longos cabelos louros da enteada até que ela pegasse no sono. Então deixou o quarto silenciosamente.

Kurt ficou bastante tempo no banho, refletindo sobre aquele dia. Quando retornou ao quarto e não encontrou Jane, saiu a sua procura. Ela não estava no quarto de Bethany como ele imaginou. Encontrou-a na sala, TV ligada nas musiquinhas infantis de sua filha, parecia querer decorar o que as canções diziam. Sentando-se ao seu lado, colocou a mão sobre a perna dela:

— As coisas saíram do meu controle hoje. Por favor, me desculpe. – disse sincero.

— Você... não...fala assim ... com ela. – Jane disse disposta a esclarecer. – Dói.

— Eu sei. Não vai acontecer de novo. Eu prometo.

Ela olhou para ela compreensiva, demonstrando que confiava naquela promessa e levou a mão até suas costas descrevendo suaves movimentos para cima e para baixo para confortá-lo.

— Você... bom pai, Kurt. – ela disse com muito esforço o comovendo.

Ele levou a mão até seu rosto acariciando sua bochecha com o polegar.

— Hoje não estou me sentindo um pai tão bom assim. Mas eu vou melhorar. Ver o quanto você confia nisso me anima muito. Vamos dormir? Está tarde...

Ela sorriu, mas recusou:

— Não... -  e apontou para a TV.

— Estamos vendo isso desde ontem. Como você ainda não enjoou? Pensei que isso iria te incomodar... Vamos pra cama comigo. – ele insistiu.

— Não. Mais um pouco.

— Ok. Eu vou me deitar. Pra mim já deu dessas musiquinhas. – e deu um beijo na testa dela.

Jane ficou ali por algumas horas mais. Além de assistir, pegou as lições de Bethany para tentar entender o que deveria ser feito naquelas atividades. Só foi para a cama já de madrugada.

Na manhã seguinte, a família pareceu retomar sua rotina normal. Café da manhã animado com Bethany falante e sorridente seguido de brincadeiras a três com muitas risadas.

Quando Kurt se afastou para preparar o almoço, Jane discretamente buscou o material da lição de casa de Bethany e espalhou as folhas entre os brinquedos. A garotinha observou desconfiada, mas acabou se aproximando dos brinquedos já que em sua cabecinha fervilhavam situações imaginadas que ela ansiava por viver.

Em cada brincadeira, comandada pela pequena, Jane apontava semelhanças entre o brinquedo e as atividades de alfabetização. Ainda reforçava desenhando e estimulando Bethany a fazer o mesmo enquanto sonorizava trechos das musiquinhas que se referiam as letras e palavras. Alguns dos exercícios que Jane fazia com a fonoaudióloga também acabaram ganhando espaço. Mas ela nunca concluía o que estava tentando ensinar, só facilitava a organização daquelas peças e deixava Bethany ter a glória da descoberta e ainda se deixava ser aluna, pedindo ajuda para reproduzir no seu próprio papel. A garotinha gostou de ser professora e poder ensinar Jane.

Depois que Kurt colocou a mesa para o almoço, Bethany entregou a lição de casa feita. Ainda havia muitos sinais da jornada difícil de realização nas páginas, mas as atividades estavam concluídas. O pai a parabenizou e rodopiou com ela, enfatizando o quanto estava orgulhoso.

À tarde, chegou o momento da despedida. Allie chegou e cumprimentou Jane de longe que retribuiu da mesma forma ficando bastante distante enquanto ela estava por ali. Bethany falou o tempo todo, relatando tudo que fizeram no final de semana. Kurt também contou sobre os problemas que tiveram.

— É sempre assim que ela reage. E isso me tira do sério. Acho que agora você também entende.

— Mas ela fez a lição hoje pela manhã enquanto brincava com Jane. As folhas estão amassadas, tem uma delas rabiscada, mas está feito.

— Isso é ótimo. – Allie disse abraçando a filha. E quando a menina se afastou para buscar um brinquedo, se dirigiu a Jane – Não foi você que fez por ela, foi?

— Não! – Jane respondeu rápido olhando para Bethany. – Bee... fez.

— Muito bom mesmo, Jane. Obrigada. Eu precisava de você lá em casa comigo todos os dias. – disse rindo, mas Jane ficou séria entrelaçando as mãos no braço de Kurt.

Na hora da despedida, fortes abraços e beijos da pequena. Allie e Bethany já estavam na porta quando a garotinha voltou correndo, abraçou as pernas de Jane e deu um beijo em sua barriga.

— Tchau, irmã. Se comporte direitinho que te trago um presente quando eu voltar! – sussurrou, mas o silêncio dos adultos a traiu.

— Kurt... – Allie disse.

— Eu não disse nada... Jane, você contou sobre a bebê pra Bethany? – disse olhando pra esposa.

Jane confirmou balançando a cabeça e ficou olhando pra ele tentando entender por que aquilo parecia errado.

— Tudo bem. – Kurt tentou tranquilizá-la. – Eu me esqueci de conversar com ela sobre isso, Allie, me desculpe.

— É, agora já foi. – Allie lamentou.

— Ei. – Kurt chamou a atenção de Bethany abaixando-se ao lado dela. – Amo muito você, filha. Sei que será a melhor Big Sis! O que acha disso?

— Eu acho que nós vamos brincar muito juntas! – Bethany respondeu dando saltinhos e arrancando sorrisos de todos.

As duas saíram e o casal voltou a ficar sozinho. Kurt começou a recolher os brinquedos e Jane foi ajudá-lo.

— Não, por favor, descanse um pouco. Foi um final de semana bem intenso. – disse indicando o sofá.

Ela obedeceu e ficou o observando. A tristeza no rosto dele era nítida. Ela também sentia um vazio enorme, era como ter um buraco no peito que o silencio da casa alargava. A vontade de chorar vinha, mas ela a engolia de volta. Não queria piorar as coisas para ele.

Quando terminou de organizar tudo, Kurt foi até o sofá e ela se sentou dando espaço para ele se acomodar. Ele ainda estava calado, parecia processar tudo que aconteceu nos últimos dia.

Então, Jane se levantou. Vasculhou os armários e separou alguns chocolates. Ele gostava tanto disso. Talvez isso fizesse ele se sentir um pouquinho melhor.

Voltando à sala, colocou o pratinho na mesa de centro a frente dele e se sentou ao seu lado.

Kurt olhou para os chocolates por algum tempo sem assimilar nada. Sua cabeça estava longe, vagando entre a dor da separação da filha e dos problemas que ela tinha na escola. Após algum tempo, finalmente pegou o primeiro tablete e colocou na boca. A tensão no seu rosto, entretanto, não se dissipou.

Voltando a se levandar, Jane contornou o sofá e se aproximando dele por trás, pousou a mão em seu ombro e disse baixo:

— Sinto...muito...

Kurt respondeu sem ser capaz de olhar para ela. Não queria que ela visse a tristeza em seus olhos:

— Eu vou ficar bem, Jane. A casa só fica... vazia. Eu só preciso de um tempo para assimilar isso.

Ela assentiu com a cabeça e tentou sorrir. Deixou a sala em silêncio. Atravessou o quarto e foi direto para o banheiro. Só embaixo do chuveiro se deu conta que estava chorando. Tudo estava tão confuso dentro dela. Bethany chegou, mudou tanto a vida deles e depois se afastou. Kurt estava triste e ela não foi capaz de fazer nada para mudar isso. Ele poderia estar com a filha se não precisasse ficar com ela. Por algum motivo que ela não entendia, Bethany não deveria saber da bebê, mas ela estragou também isso. E o vazio que ela sentia sem a garotinha? Seu banho foi longo para deixar tantas lágrimas rolarem.

Pelo resto do dia, tudo ficou estranho e o casal distante um do outro. Quando finalmente foram para a cama, Kurt foi se aproximando dela até estar aninhado nos seus braços. Ali, acalentado por ela, logo adormeceu. Quase sempre era assim.

Percebendo a respiração compassada dele, Jane estreitou seu abraço e beijou os cabelos do marido. Foi um final de dia difícil, o mais difícil que viveram juntos desde que ela acordou no hospital. Aquele sentimento dentro dela não passava e incomodava tanto. Não era assustador como quando o medo de perder todos a tomava. Mas lhe causava tanto mal quanto aquilo.

Após muito tempo, exausta ela finalmente adormeceu. Nenhum sonho a visitaria nas poucas horas de sono que ela teria pela frente. E, ao amanhecer, ela descobriria que a tristeza não dispersava com a luz do sol.


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Notas finais do capítulo

Ficou coerente esse trecho?
Por favor, compartilhem comigo suas impressões desse capítulo.
Ah, não pensem que ignorei as sugestões e pedidos. No momento certo, a surpresa aparece.
Muito obrigada pela leitura.