Tudo o que está em jogo escrita por annaoneannatwo


Capítulo 38
No passado




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A garota de marias chiquinhas observa essa garota de bochechas redondas e cabelos castanhos. Vestindo uma roupa de hospital em um tom triste de verde água, ela parece ainda mais comum do que o normal. É, ela é bonita sim, mas não chega a ser uma beleza estonteante, já houve jogadoras com características físicas mais marcantes. 

Então qual é o segredo dela? Como pode uma garota de aparência tão ordinária contornar todos os caminhos tão cuidadosamente pavimentados nesse jogo, atropelar todas as regras pré-estabelecidas e ainda se dar bem? Os números não mentem, os pretendentes estão felizes. Mas como podem estar felizes com uma garota que os rejeita a sangue frio e segue agindo como se não fosse nada demais? Ela nem é grande coisa, como se dá a esse luxo e ainda consegue um good ending? E o mais importante: como alguém que não entende nada sobre esses jogos consegue perturbá-la tanto ao ponto de fazê-la adaptar as histórias, ver se a garota vai se aprumar e fazer o que é esperado dela pelo menos uma vez, para enfim frustrá-la de um modo que esse mundo não está suportando tanta pressão de sua própria criadora?

—  Oh, que bom que melhorou! —  a garota sorri, olhando-a atentamente por alguns segundos, até que seus olhos começam a se voltar para a porta atrás dela —  Então, hã… posso ajudar em alguma coisa?

—  Não sou eu que deveria fazer essa pergunta? —  ela afina a voz, assumindo sua faceta de garota colegial.

—  Ah, acho que… normalmente sim, mas eu não preciso de ajuda agora, obrigada.

—  Tem certeza?

—  Tenho sim, obrigada. —  ela leva uma mecha de cabelo para trás da orelha, ainda olhando para a porta —  Bom, se não se importa, eu… eu tenho que ir, a peça já vai começar e eu…

—  Você precisa entregar uma boa performance para agradar ao Todoroki Shouto para conseguir o good ending com ele, não é isso?

—  É, sim.

—  E só falta o good ending com ele, não é mesmo?

—  Bom, acho que sim. Acho que não vou pegar um good ending porque não vou aceitar nenhuma declaração de amor, mas… é, meu objetivo é conseguir pelo menos um final neutro.

—  E de onde você tirou que existem finais neutros nesse jogo?

—  Bom, eu… eu não entendo muito, mas foi uma possibilidade que surgiu porque nada de ruim chegou a acontecer, e os pretendentes pareciam felizes mesmo eu não aceitando a confissão ou cumprindo o objetivo da rota, então… se não aconteceu nada ruim ou bom, é neutro, né? Um… um final neutro… —  ela explica com toda a incerteza que parece ter. Que ridícula, nem ela mesma entende o que está dizendo, então como pode ter dobrado o jogo desse jeito? —  Me desculpa, mas eu preciso ir mesmo, eu-

—  Você acha que se completar todas as rotas, irá conseguir sair daqui, não é? Você e aquele garoto loiro com cara de bandido. —  ela aponta entredentes.

—  Hã, como você…? —  a garota se aproxima —  Você… você também é uma…?

—  Eu não sei de onde vocês dois tiraram que seria assim. 

—  Bom, a gente não tinha certeza que seria isso mesmo, mas me pareceu o único jeito, e o Bakugou-kun disse que…

—  E você confia nesse garoto tão cegamente por quê? Eu vi suas memórias dele, não tem uma em que ele não esteja berrando ou xingando. Não se esqueça, ele é o vilão, não é de confiança.

—  Ele pode ser um vilão aqui, mas não é assim no meu mundo, ele não… espera, como assim você olhou minhas memórias?

—  Que tipo de desenvolvedora de jogos eu seria se não soubesse exatamente o que minhas jogadoras pensam, querida? —  Sakura sorri quando a garota finalmente se dá conta.

Beleza mediana, inteligência mediana… então o que há de tão especial em Uraraka Ochako? Ela nunca descobrirá se só ficar observando de longe.

 

***

 

Ochako sente seu corpo se enrijecer quando a garota de marias chiquinhas toca sua bochecha. Parece um gesto afetuoso, muito semelhante ao que sua mãe faz —  tanto quanto a verdadeira quanto a desse mundo —  mas dá pra sentir certa tensão nos dedos dela e um leve raspar de unhas pouco antes da mão dela se afastar.

—  Você… eu… —  ela tem muitas perguntas, mas não pode esquecer de suas prioridades. É muito bizarro que o mais importante agora seja uma peça de teatro, e não o fato de que está diante da pessoa que a colocou aqui, e ainda assim, é esse o caso. 

Ochako precisa ir até lá se apresentar, é a única condição imposta pelo Todoroki para avançar pela rota dele. Então por mais que não esteja entendendo o que acontece e porque a desenvolvedora resolveu se revelar agora, ela tem que-

Não, a questão é exatamente essa. A criadora do jogo se revelou para atrasá-la ou impedi-la de ir até aquele palco. Sem protagonista, não tem peça. Sem a peça, o Todoroki vai ficar frustrado. Com o pretendente frustrado, ocorre um bad ending, e não dá pra deixar esse mundo se um dos personagens estiverem infelizes por uma escolha errada da garota que gostam.

—  Você entendeu o que tá acontecendo, não é? 

—  Me deixa passar. —  Ochako pede em tom baixo e assertivo —  Por favor, me dá licença e me deixa passar.

—  Ora, claro. —  ela dá passagem para a morena —  Eu sei que você tem treinamento em artes marciais, não serei louca de ficar no seu caminho. Só posso adiantar que nenhuma dessas suas… habilidades será útil lá fora. É óbvio que eu mudei algumas coisas de lugar, então você não vai saber chegar ao palco. Mas… pode tentar, se quiser. —  ela faz um gesto em direção à saída.

—  Quem é você e por que fez isso comigo? Com a gente?

—  Você diz com você e com aquele garoto? —  ela finge surpresa —  Ah, não me leve a mal, vocês não estão aqui por qualquer motivo especial, eu nem conhecia nenhum de vocês dois antes, então… não pense em si mesma como um alvo ou algo assim. Só… aconteceu de vocês dois caírem no meu jogo.

—  E… como… como isso funciona? Como…?

—  Vocês chamam de “individualidade” hoje em dia, não é? Não havia um nome específico pra quando esse meu poder se manifestou, ainda mais o meu que era diferente dos poucos que tinham se manifestado naquela época. —  o modo como ela fala indica que apesar da aparência de colegial, essa mulher é bem mais velha do que aparenta —  Eu fui catalogada como uma “híbrida”, tenho duas habilidades que não são diretamente relacionadas, uma é chamada de “escavação”, posso acessar memórias alheias desde que a pessoa esteja desacordada, e a outra é “distorção”, posso alterar lugares e construções desde que eu conheça a configuração do espaço. Dá pra reduzir espaços enormes a ambientes bem pequenos também.

—  Do tamanho de um CD de videogame. —  ela conclui, entendendo a base do que a levou a ser sugada para esse mundo.

—  Nossa, muito bem! Você até que é bem esperta! —  a mulher sorri e bate algumas palminhas —  Quer dizer, não sei se você é mesmo esperta, você parece ser muito criativa em algumas vezes, já por outras só parece dar muita sorte. Ou será que você é daquelas pessoas carismáticas que cometem mil erros e ainda são perdoadas? Eu realmente não sei dizer, só sei que estou… fascinada por você, Uraraka Ochako, você é uma jogadora como eu nunca vi antes, e olha que já tivemos muitas.

—  E… o que aconteceu com elas?

—  Hum? Ah, elas jogaram e deixaram o jogo quando completaram os good endings e um ou outro bad ending, a função delas era essa mesmo, só testar o jogo que ainda tava em desenvolvimento. —  ela abre um sorriso sinistro —  Por quê? Achou que elas ficaram presas aqui pra sempre?

—  Não é um pensamento tão absurdo assim, é? —  Ochako rebate —  Um jogo de namoro muito parecido com a realidade de um jeito que às vezes fica difícil separar uma coisa da outra… tem gente que poderia não conseguir sair.

—  Ha, você tá falando igualzinho àqueles imbecis sem visão da SoarHigh. —  ela dá uma risada de desdém —  Você não parece saber muito disso, mas SoarHigh é uma empresa de desenvolvimento de jogos para PC, hoje já devem estar focados só em jogos mobile, enfim… eu dei muito dinheiro para aqueles canalhas com meus jogos, nunca nem precisei usar minha “escavação” pra saber exatamente o que as garotas queriam, eu só… entendia de romance, essa sim é minha grande… “individualidade”. Histórias com astronautas, cowboys, samurais… eu fiz de tudo! Meninos apaixonantes dos mais variados tipos e aparências, sempre fazendo algo inesperado e totalmente diferente de qualquer outro jogo do gênero!—  ela adota um tom diferente, parece estar falando com ninguém em específico —  Foi apenas natural que eu ficasse responsável por criar um jogo de romance escolar… eram todos iguais! E eu fiz um jogo incrível! Não era só um romance colegial, a protagonista se via envolta em suspense tentando descobrir quem era o verdadeiro vilão da história, travando uma batalha mental com aquele que seria seu maior inimigo e grande amor… e a ideia foi rejeitada. —  “Não me espanta…” é o que Ochako pensa e chega a murmurar pra si mesma, mas a mulher parece completamente absorta em seu monólogo —  Disseram que era uma ideia muito ousada e até perigosa, qual garota quer viver um romance com alguém que é seu inimigo? Chegaram a dizer que talvez eu estivesse velha demais para saber o que garotas e mulheres mais jovens gostavam. Ha… é sempre esse o pensamento masculino, não é? Não é só seu corpo e rosto que têm data de validade, suas ideias também, então lá fui eu…

 

“ —  Eu… tomei a liberdade de conduzir um soft launch independente e coletei os dados. O que eu busquei é criar uma experiência altamente imersiva na qual se a jogadora é convidada a ter personagens masculinos cujas personalidades e aparências remetem a alguém que conhecem, a experiência de ter que explorar rotas na qual não se sabe qual personagem é confiável ou como vai  reagir torna-se muito mais rica. —  a mulher de rabo de cavalo cor de rosa apresentou os envelopes cuidadosamente ordenados.

—  E para essa… experiência imersiva… é necessário que você use aquela sua… aquele seu… aquele negócio que você tem um documento, como é o nome mesmo?—  o homem de cabelo rareante perguntou, não dedicando o mesmo zelo a conferir os envelopes os quais ela preparou.

 —   “Documento de portador de habilidade sobre humana”, senhor. Sim, eu… tive a autorização expressa das participantes do teste, os termos de responsabilidade assinados por elas estão anexados nos documentos que eu apresentei, eu usei minha habilidade de escavação de memórias para ver o que elas preferiam em se tratando de características ideais em homens, cruzei os dados e desenvolvi personagens que tinham os traços mais preferíveis. “Garoto mais jovem e inocente”, “rapaz mais frio e calmo”, “garoto de língua e olhar afiados, mas de bom coração”... dentre outros. A princípio, eu criei quatro protótipos, estava pensando em fazer um modelo de garota para uma rota não romântica, acho que pode ser interessante… posso conduzir testes para coletar dados de como seria a recepção para tal. —  ela finalizou, apoiando as mãos no colo a fim de evitar transparecer seu nervosismo diante do olhar relapso de seu chefe.

—  É, então… não, Otoge-kun. —  ele largou os papéis na mesa —  Olha só, a senhora sabe o quanto apreciamos seu trabalho aqui, mas não acha que é um tanto… impertinente conduzir testes por sua própria conta para uma proposta que já havia sido rejeitada? Acho que o combinado foi refazer esse jogo, não? O que aconteceu com o personagem delinquente? Ele foi muito bem recebido, poderia ser aproveitado em cenários futuros.

—  Ele? É só um personagem secundário, eu não acho que ele tenha qualquer apelo com as garotas.

—  Bom, talvez a senhora não saiba, mas é assim que as mocinhas de hoje em dia são, adoram um rapaz que as maltrate.  —  ele dá uma risada que naquele momento não soava menos que repulsiva —  Então… lamento muito, mas estou rejeitando essa sua… ideia mais uma vez. 

—  M-mas eu… eu me dediquei tanto, isso é...

— Pense bem, Otoge-kun, sei que vocês podem ter um pouco de dificuldade de pensar racionalmente, mas um jogo em que as garotas podem namorar garotos da vida real? Isso é um trabalho personalizado, praticamente artesanal, os custos seriam estratosféricos! Além do mais, muitas dessas meninas que jogam são loucas, imagine uma delas não querer mais viver a realidade por causa de um joguinho, isso poderia resultar em complicações jurídicas. Inviável, lamento.

—  O senhor nem chegou a ler minhas análises. O custo inicial de produção pode ser recuperado com-

—  Otoge-kun, não tenho dúvidas de que a senhora se esforçou muito, dá pra ver em seu rosto, inclusive. —  o que havia de errado com o rosto dela? —  Mas é um projeto completamente fora de base. 

—  O senhor não entende, isso é… —  ela apertou as mãos, decidida a tentar blefar —  Imagino como se sentirá quando eu aceitar as propostas de outras desenvolvedoras para lançar o jogo.

—  Oh? É mesmo? Eu me sentirei muito bem, que bom para a senhora! Não conheço nenhuma outra desenvolvedora de jogos tão progressista como a minha que aceita a contratação de pessoas... especiais como a senhora, é um sinal de novos tempos! Então… fique à vontade para buscar outras empresas que se interessariam por esse seu jogo, eu não tenho o hábito de ceder a criadores insubordinados que fazem coisas pelas minhas costas e ainda se acham no direito de vir barganhar. —  ele deu um sorriso ardiloso.

A mulher de rabo de cavalo cor de rosa deixou a reunião com as mãos tremendo, mas teve que escondê-las por medo de tocar em algo e acabar mudando de lugar sem querer. Não importava o quanto se contivesse, o quanto secretamente treinou para controlar esses poderes, eles acabavam por… escapar às vezes, apenas contribuindo e alimentando um medo que muitas das pessoas ao seu redor já tinham. Ela sabia que estava correndo um risco ao apresentar dados colhidos independentemente, mas… já viu colegas desenvolvedores tomarem decisões igualmente arriscadas, se não mais, que não receberam um tratamento tão duro. Alguns eram homens, todos eram pessoas que não possuíam esses genes estranhos.

De toda forma, o problema era ela! Ela e a bizarrice que corria em suas veias, ela e o simples fato de existir e ousar viver nesse mundo tentando ignorar o que havia de errado. Mais do que uma pessoa com poderes, Otoge Sakura era, por excelência, uma desenvolvedora de otome games. Por mais que sempre tenha parecido mais jovem do que realmente era, anos e anos de sua vida foram investidos na criação de personagens, rotas, histórias, tudo para que garotas pudessem viver o romance que ela nunca conseguiu, sempre tão dedicada ao trabalho e tão apavorada de ter que mostrar seus poderes bizarros nesse mundo que nunca esteve e nunca estará pronto para aceitar as diferenças, diferenças essas que nem ela conseguia aceitar.

Sim, esse mundo cruel nunca a mereceu.

Dias se passaram sem que seu paradeiro fosse determinado, e duas semanas depois, Otoge Sakura foi dada como morta. Não foram encontrados vestígios do corpo nem de seus trabalhos mais recentes.

 

***

 

—  Eu… eu sinto muito mesmo que a senhora tenha sido vítima de preconceito, eu… nem imagino como é ser julgado por sua individualidade, sou de uma época que é completamente comum todo mundo ter uma. —  Ochako começa —  Mas isso… isso não justifica, a senhora se isolou de todos e… eu não entendo o que… o que tem de bom em puxar pessoas pra cá.

—  Ora, você não entendeu? Esse mundo é meu! Eu posso fazer o que quiser nele, estamos em tanta sincronia que tudo acontece nele afeta minha saúde diretamente! Ter uma jogadora ativa aqui é ótimo, faz eu me sentir viva, motivada! E… ter uma jogadora que cria suas próprias distorções me deixa confusa e exausta, mas… mas é incrível! Você cria variações novas, e eu te odeio na mesma medida que quero te ver avançando, quero te testar, quero me desafiar criando cenários e aprimorando a aparência dos meus personagens, até os NPCs, por sua causa! Eu… preciso que você fique aqui, Uraraka Ochako —  ela finaliza, seus olhos brilham de maneira alucinada, quase animalesca.

—  Mas eu não… não posso ficar aqui. Eu tenho minha vida lá fora, tenho meu próprio mundo, eu…

—  Eu vi suas memórias, no que aquele mundo se tornou? —  ela parece soar enojada —  Heróis, treinar para combater vilões, lutar, ganhar cicatrizes, por que você iria querer coisas assim quando pode viver uma vida pacífica aqui? Se você enjoar desses personagens, posso criar novos! Que tal uma rota com irmãos gêmeos? Uma de um cara mais velho com óculos? Você tem um amigo com essa aparência, não? Se quiser uma rota com uma garota, por que não? Não tenho nada contra quem curte essas coisas! —  o jeito dela de falar acelera, é assustador.

—  Aquele mundo não é tão diferente do que você se lembra, tem sim muito preconceito com pessoas diferentes, tem violência e medo, e… ódio, mas também tem esperança, tem pessoas lutando por uma sociedade melhor e mais justa, e eu nem tô falando só de heróis! O mundo é… muito mais do que só as coisas ruins, e eu quero estar lá para ajudar a fazer coisas boas. Eu não posso ficar aqui, e a senhora… a senhora também precisa sair pro seu próprio b- —  Ochako é interrompida por um estrondo, a vidraça da janela de repente se despedaça. Ao olhar para a mulher à sua frente, ela nota os dedos dela se movendo como se estivessem em espasmo —  Não adianta tentar me assustar, eu não vou ficar aqui.

—  Isso é por causa daquele garoto? Por que se importa tanto com ele? Ele te empurrou da escada e levou um tempão para contar! Pare de ser ingênua!

—  Chega! —  Ochako decide, abrindo a porta do camarim e se deparando com o fato do que o que a mulher disse é verdade: está tudo diferente.

O corredor que dava para o camarim está mais comprido, existem várias portas, bem mais que antes, a parede tijolos desapareceu, e não dá nem para ouvir movimentação no palco daqui, como era possível antes. Não importa, ela precisa dar um jeito de sair! A garota sai empurrando porta por porta em busca de uma que leve para algum lugar, mas seus esforços são inúteis.

Até que uma se abre por conta própria, e uma mão a puxa para dentro da escuridão.

 

***

—  Otoge-sama, eu peço que repense. —  o enfermeiro bate o lápis ritmicamente contra a escrivaninha —  A senhora sabe que interferir diretamente nas escolhas da protagonista é um hacking perigoso.

—  Eu sou a dona desse jogo, não é hacking se sou eu que faço.

—  Bom, mas ainda assim não me parece certo, o que… qual seu plano exatamente?

—  Não é óbvio? Vou fazer com que ela pegue bad ending na rota do presidente do clube de teatro. Se não conseguir concluí-la, vai ter que refazê-la, é o suficiente para eu ganhar tempo e reconstruir minhas ideias. Quem sabe? Ela pode acabar não sendo capaz de escapar dos bad endings e terá que continuar jogando. E se ela continuar jogando, eu e meu jogo ficamos mais fortes.

—  Mas… isso é errado, Otoge-sama, a senhora não pod-

É rápido, num minuto ele está sentado, no outro já está com as costas prensadas contra o chão, a ponta do lápis apontada para a lateral de seu pescoço. A dor nas costas é excruciante, e o enfermeiro firma os dentes, suando frio.

—  Eu posso fazer o que quiser, o jogo é meu. Eu posso, inclusive, te resetar mais uma vez, será que você vai aguentar arrancar essas asas bizarras de novo? Acho que não, hein…

—  Otoge-sama… se a senhora interferir… o jogo vai bugar de vez. —  ele levou as mãos tremulantes ao pulso dela.

—  Eu não vou fazer uma escolha por ela, só vou… impedir que ela possa escolher. —  ela afasta o lápis e se afasta dele, arrumando alguns fios de cabelo. Não importa o quanto ela mexa, eles parecem cada dia mais rebeldes, dando a ela uma aparência de descontrole e, porque não, insanidade.

—  Tem certeza de que isso não é prejudicial para a senhora também?

—  O pior que pode acontecer é eu ter que resetar todo o jogo. Não é um problema tão grande.

—  E o que acontece com a protagonista caso isso seja necessário?

—  Não sei, nunca tive que resetar tudo. Se ela tiver sorte, terá a memória resetada também, pode começar o jogo do zero.

—  E se ela não tiver sorte? —  ele pergunta apreensivamente.

—  Quem sabe? —  ela dá de ombros novamente —  Arrume essa bagunça, eu vou falar com o presidente do clube, preciso dele fora do camarim alguns minutos antes da peça.

—  Acha que ele irá colaborar? O garoto está apaixonado por ela, não?

—  Apaixonado ou não, ele obedece ao meu jogo. —  ela finaliza, retirando-se do estúdio ao lado da enfermaria.

E enquanto recolhe os papéis e utensílios que caíram da escrivaninha quando foi arremessado ao chão, o enfermeiro pensa no que pode fazer. A dor lancinante em suas costas não o permite raciocinar direito, então talvez… talvez não seja o melhor plano, mas ficar parado e não fazer nada é pior, essa mulher está fora de controle, agora mais que o normal. É necessário acabar com esse jogo antes que ela acabe consigo mesma.

Então só há uma coisa a fazer, o garoto de cabelos loiros vem vigiando os corredores há alguns dias, o que será que aconteceria se o enfermeiro surgisse no corredor de uma escola em que ele não deveria estar tão tarde da noite?

Uma coisa que a desenvolvedora parece estar se esquecendo é que a parte mais legal de um jogo é apostar. Que graça teria se não fosse assim?


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Notas finais do capítulo

Sempre que eu preciso escrever algo que aconteceu no passado, fico em dúvida se só coloco o personagem contando ou mostro o que rolou, acabei optando por um pouco dos dois nessa história.
Pois bem, antes que vocês pensem que eu tô tentando justificar as escolhas da Otoge com um passado complicado, juro que não é isso! Só quis mostrar que pode ser um pouco mais complexo que isso, e que opressão e ódio podem gerar um ciclo onde ninguém tá totalmente certo nem totalmente errado, seu juízo de valor aqui pode ir de acordo com suas próprias convicções, mas eu, a autora, não tô assumindo nenhuma posição em específico hdsjkjdkjks
Uma curiosidade: a empresa SoarHigh mencionada não é real, mas é inspirada em uma: a Cybird, que desenvolveu uns otome games bem famosos da famílai Ikemén: Ikemén Sengoku, Ikemén Vampire, Ikemén Revolution e por aí vai djjdjkdj
E é isso por hoje, beijos e boa semana!



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