Tudo o que está em jogo escrita por annaoneannatwo


Capítulo 29
Na cozinha




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A psicóloga não deve ter ouvido as batidas na porta, é só o que o enfermeiro pode deduzir quando bate e não obtém resposta. Não que importe, pois ele adentra o consultório mesmo assim.

Ela está com as pernas sobre a escrivaninha, olhando para o computador como se fosse a coisa mais interessante do mundo todo, provavelmente deve ser mesmo. O enfermeiro pigarreia, mas ela continua distraída, então ele pigarreia ainda mais alto, e ela enfim o nota.

—  Ai, caramba! Faz barulho antes de entrar, parece um gato se esgueirando por aí!

—  Eu bati na porta… 

—  Não é culpa minha se eu não ouvi!

—  Realmente, não é… —  ele suspira —  Você gritou assim durante a consulta toda com a protagonista?

—  Ela fala muito baixo! Tive que gritar um pouco, sim!

—  Ai ai… esses aparelhos não vão dar conta se continuar assim. Deixe-me dar uma olhada. —  ele dá a volta na escrivaninha e espera que ela levante os cabelos a fim de mostrar suas orelhas.

É preciso olhar muito atentamente para notar as pequenas deformações, ou vai ver só ele as note pois ouviu atentamente a todos os detalhes sobre os procedimentos necessários para se livrar das orelhas de coelho e substituí-las por humanas, ou o mais próximo disso. Os aparelhos para melhorar a audição são de um modelo mais antigo, não são o ideal, mas foi o que deu pra conseguir nesse mundo estagnado no tempo e espaço.

—  Que mundo doido é esse que essa menina vem que gente tem orelha de coelho e asa de pombo?

—  Pombo? São asas de gavião! Bom, eram… —  ele ajusta o aparelho da orelha direita —  É um mundo onde boa parte das pessoas têm poderes únicos, a Otoge-sama disse que são “individualidades”, cada um tem uma. A Mirko que foi usada para seu modelo é uma super heroína que dá incríveis saltos e tem umas características de coelho.

—  Imagina você ser salvo por uma coelha gigante! Que coisa mais besta!

—  Será? Eu acho divertido! —  ele sorri —  Mas isso não importa muito, a Otoge-sama queria que a psicóloga que ajuda o Midoriya-kun fosse bem agressiva e direta. Nas memórias da protagonista, ela encontrou essa tal de Mirko e achou que seria a que se encaixava melhor.

—  Tsk, que seja. É só um saco esses moleques virem ficar gastando minha orelha com esse draminha todo!

—  Bom… mas o Midoriya-kun está com uma atitude muito melhor, não? Lembro que ele fazia um tipo meio obsessivo…

—  “Meio?” O garoto era doido! Tava querendo armar um plano de vingança contra o outro lá, tive trabalho pra tirar essas ideias da cabeça dele!

—  Bom, mas deu certo, não? Ele me parece melhor, e isso deixa a protagonista feliz. E não se esqueça, minha cara, nós somos um tipo diferente de NPC, nós-

—  É, é, eu sei! A gente não é neutro, nossa função é ajudar a protagonista! 

—  Isso mesmo, e é melhor que não se esqueça disso. Você nem existe no jogo original, está aqui apenas por causa da Uraraka-chan, então seja grata a ela. —  ele aperta sua orelha com um pouco mais de força.

—  E quem disse que eu não sou? Só não entendi porque ela tá triste daquele jeito!

—  Bom… a Uraraka-chan não parece saber jogar otome games, ela está encarando tudo como se fosse uma escola real com pessoas reais, dessa forma seria inevitável sofrer mesmo. Além do mais, ponha-se no lugar dela, ela está numa realidade paralela, com pessoas que se parecem mais ou menos com as que ela conhece, e a única pessoa que veio do mesmo mundo foi colocado no papel oposto ao dela, ninguém é confiável, ninguém a compreende…

—  É… complicado.

—  É cruel, simples assim. Ela é uma garota muito forte por aguentar tudo isso, até demorou muito pra vir te procurar. —  ele termina de arrumar os aparelhos e indica que ela já pode parar de segurar os longos cabelos brancos —  Espero que você tenha dado bons conselhos pra ela.

—  Eu só disse que ela precisa continuar jogando. Não com essas palavras, né? Mas foi o que eu disse.

—  Sim, nós estamos aqui pra ajudá-la, mas não podemos fugir muito do roteiro.

—  Pois é, ela pareceu ter ficado pensativa, mas sei lá. Pelo que entendi, ela é bem imprevisível, né?

—  Completamente! —  ele dá risada —  Nunca vi nada parecido! E olha que já tô aqui há muito tempo, hein?

—  Ah, é? —  ela ergue a sobrancelha —  Quanto tempo?

—  Nem eu sei mais. —  o enfermeiro dá de ombros —  Bom, o importante é que ela continue jogando, as rotas estão se misturando e nada mais faz sentido, mas…

—  “Mas”? Isso não é ruim?

—  Oh sim, a Otoge-sama não conseguirá manter o mundo estável por muito tempo se continuar assim.

—  Sim, pô. E o que tem de “mas” nisso?

—  Nada, nada mesmo. É só… interessante.

—  Tsk, você é perturbado mesmo!

—  Hahaha, devo ser mesmo. Bom… você me ouve melhor agora, não?

—  Sim… se bem que isso não serviu pra nada, não tenho mais consulta nenhuma hoje!

—  Ora, mas pelo menos você pode ouvir essa bela voz que eu tenho, né? O meu modelo é bem bonitão, tem até uma voz bacana. —  ele ajeita os cabelos —   E o seu modelo…

—  O que tem o meu modelo?

—  Não é nada mau também…

—  Você tá pensando em coisas indecentes? —  ela fecha a cara e cora.

—  Eeeu? Como poderia? Esse jogo é pra maiores de 14 anos! —  ele bota as mãos nos quadris —  Quem está pensando em coisas indecentes é você!

—  É, mas a gente não tá “em cena” agora. —  ela cruza os braços.

—  Ohoho, então você está mesmo pensando em coisas indecentes fora de cena?

—  Eu sei lá, só tô entediada.

—  Hahaha, não estamos todos sempre que não interagimos com a protagonista? Pelo menos você ganhou um apartamento, eu nem posso sair daqui, a não ser em ocasiões especiais…

—  Ahhhh, coitadinho! Deve ser mesmo muito difícil ser o braço direito da chefa!

—  Você tá com inveja? Porque se quiser minha função, eu te dou agora mesmo!

—  Você não tá falando sério… —  ela o olha de cima a baixo.

—  Não mesmo, até porque a Otoge-sama nunca deixaria. —  ele ri —  Eu só tenho mais experiência nisso, e essa é minha função, não há o que se fazer… —   e se inclina na direção dela —  Mas o que acontece fora de cena… fica fora de cena.

—  Tranca a porta e volta aqui, magrelo. —  ela decide.

 

***

 

Ochako checa o livro mais uma vez e observa o que está diante dela na bancada da cozinha, tendo a certeza de que ou a foto do livro de receitas exagerou na beleza do bolo ou… ela que não conseguiu repetir o que está ilustrado na página, seu bolo ficou… simplesmente horroroso.

As bordas ficaram meio altas e o meio afundou um pouco, vai ver faltou fermento… mas ela seguiu as medidas do livro! Por não deu certo? Suspirando, ela corta um pedaço e decide se arriscar em provar essa gororoba.

É, não tão ruim… apesar da aparência pouco convidativa, tá comível. Ochako pega um pratinho no armário e um garfo na gaveta, sentando-se próxima à bancada da cozinha e se servindo de uma generosa fatia.

Ela não é a melhor das cozinheiras, nunca foi, mas sabe se virar o suficiente para não passar fome ou acabar comendo qualquer besteira a fim de forrar o estômago. Habilidosa ou não, tem qualquer coisa de relaxante em ficar mexendo na cozinha. Misturar ingredientes, checar medidas, aquele chiado de bacon na frigideira, o cheiro, a fumaça que sobe de um bolo recém-tirado do forno, tudo isso é meio relaxante, terapêutico até.

E o melhor: é algo que ela pode fazer sozinha.

Hoje não teve aula, então ela ficou o dia inteiro em casa. Ochako fez uma faxina geral em seu quarto de princesa, lavou os banheiros e limpou a cozinha. Ela já vinha fazendo isso, mas fez com particular afinco hoje, determinada a se distrair do jogo e só ter um dia pretensamente normal.

—  Ora, você fez um bolo? —  sua “mãe” surge na cozinha e sorri ao ver a forma posicionada na bancada.

—  Sim. Não tá muito bonito, mas não tá ruim também.

—  Hahaha, você precisa aprender a fazer uma propaganda melhor. —  ela comenta, sentando-se ao seu lado na bancada.

—  Eu só prefiro ser honesta. —  Ochako serve um pedaço pra ela.

A mulher que é idêntica à sua mãe em aparência agradece pela fatia e come o bolo com vontade. Olhando-a assim, a garota sente um aperto muito grande no coração, pois bem antes de vir parar nesse jogo, já faz muito tempo que ela não tem a oportunidade de cozinhar para sua mãe. Ela costumava ser responsável pelo jantar em alguns dias da semana quando ainda morava em Mie. Os pais chegavam tarde do trabalho, e ela cuidava das refeições quando chegava da escola. Ochako sabe que nada do que fazia ficava excepcionalmente bom, mas sentia uma grande satisfação em receber elogios do pai e da mãe, além do contentamento em poder ser útil para suas pessoas que trabalhavam tanto (ainda trabalham). Era cansativo, por vezes frustrante quando ela queimava ou deixava algo fora do ponto, mas no geral, eram dias felizes.

E ela sente muita falta deles. Desses dias, e de seus pais.

—  Ah sim, nisso você puxou seu pai. Pode ser sincera até demais. —  é um comentário curioso, pois a mãe verdadeira dela já disse algo parecido certa vez. Isso lhe dá um gosto agridoce, pois é algo que Ochako gosta de ouvir, mas não gosta do fato de ter gostado.

—  Isso é ruim?

—  Às vezes sim, às vezes não. Você pode acabar magoando alguém sem querer, ou se magoando também.

—  É, acho que sim… é engraçado a gente falar disso, porque… tem um menino na minha escola que é assim, muito apegado a isso de falar a verdade, mesmo que possa magoar os outros. Mas… aconteceu uma coisa aí e ele preferiu omitir a verdade pra não criar ainda mais problemas. Eu acho que o que ele fez foi certo, mas fico pensando se foi bom eu… ter ouvido a verdade também. 

Ela pensou muito no porquê do Bakugou não ter contado de uma vez que a empurrou, mas quanto mais pensa nisso, mais conclui que deve ter sido difícil pra ele pensar numa maneira de contar que não o deixaria indisposto com ela. Revendo toda a situação, Ochako percebe que o loiro devia estar se sentindo muito pressionado, e falou a verdade meio que sem querer, talvez ele planejasse guardar isso pra ele a fim de não perturbá-la, porque não parece do feitio do Bakugou guardar algo por medo das consequências… também não parece do feitio dele se importar com os sentimentos dela especificamente, mas… magoar a pessoa que provavelmente é a única chave pra saída dele desse mundo com certeza não é o que o garoto queria.

Seja como for, ela ainda está tão magoada… e mesmo que tenha decidido seguir com o jogo sem as dicas do Bakugou, Ochako ainda sente que falta algo, sente que precisa de mais. Mas ela realmente não quer ir atrás do garoto agora, ainda mais se é ele quem lhe deve desculpas.

—  Você acha que teria ficado melhor na ignorância?

—  Eu não sei… talvez sim.

—  Mas não seria ruim você ficar acreditando numa mentira? Pelo menos agora você pode tomar suas decisões com uma visão mais clara, não?

—  É o que eu quero fazer, mas… ainda tô meio confusa… —  ela admite, arranhando o prato levemente com o garfo. E então se dá conta da conversa que está tendo com a mulher que tecnicamente é sua mãe. Isso é tão estranho! 

Ochako costuma evitar os dois NPCs adultos com quem divide essa casa muito por conta do desconforto que sente sempre que os olha. Com o pai, é relativamente fácil, ele raramente está em casa —  a mãe menciona que ele sempre está fora por causa do trabalho, seja ele qual for —  já a mulher costuma estar por perto com frequência, ela sorri e pergunta como foi a escola, às vezes pergunta como está o trabalho de meio expediente dela e anuncia quando as refeições estão prontas, mas elas dificilmente conversam pra valer.

—  Entendo. E esse garoto de que você fala é o que te trouxe em casa na outra noite?

—  Hã? Ah… é. —  Ochako fica surpresa pois nem imaginava que a mulher tinha notado que ela chegou à noite —  Nós… ficamos fazendo um trabalho na escola até mais tarde.

—  Claro, claro. —  ela sorri, comendo mais uma fatia —  Ele é um bom garoto?

—  Ah, sim. Ele tem sido bem gentil comigo, e… é meio inesperado, pois não achei que ele fosse gentil.

Até ela mesma se pega de surpresa em pensar o quanto ele é gentil, na verdade. A conversa na sala de aula lhe deixou um tanto mais tranquila, tanto que Ochako só não mais está inquieta e louca pra procurar o Bakugou a fim de ouvir mais explicações pois o garoto de olhos azuis lhe acalmou. Ele não é doce de um jeito muito óbvio, mas demonstra sua preocupação e a quer bem.

E verdade seja dita, foi super fofo quando ela o questionou sobre o tal encontro deles, e ele de um sorriso todo torto e retrucou que ela não deveria agir de maneira tão desesperada, então ele se virou para que não pudesse ser visto corando, mas Ochako viu mesmo assim. E achou um tanto adorável.

—  Entendi. —  ela sorri —  E você gosta dele?

—  O- o quê? —  Ochako para de riscar o prato, chocada com a pergunta —  E-eu… bom, eu não desgosto mais dele, não tanto, m-mas daí pra… n-não, mamãe, eu-

—  Oh.

—  Oh?

—  Você me chamou de “mamãe”, já faz um tempo que não me chama assim.

Oh, ela falou meio sem pensar, já que está acostumada a chamar alguém com esse rosto dessa forma, isso é… mais força do hábito do que qualquer outra coisa.

—  B-bom, é que eu…

—  Agora eu fiquei feliz. —  ela sorri e cora, e chega a ser assustador ser lembrada do quanto seu próprio rosto parece o de sua mãe, e o dessa mulher à sua frente —  Você tem estado tão distante, filha.

—  Ah, eu só… não quero incomodar. —  ela mente, desviando os olhos. Um hábito antigo de quem não quer preocupar a mãe.

—  Se você está triste, eu fico triste também. Pode contar mais com sua mãe, ok? —  a mulher passa as mãos no cabelo dela.

E vai ver seja o peso de tudo isso, vai ver seja o cansaço, mas Ochako não se contém. Ela quer tanto um colo materno, quer tanto ser só uma menina perdida por alguns momentos, sem sentir a pressão da necessidade constante de saber qual tem que ser seu próximo passo. Ochako abraça essa mulher que parece sua mãe, fala como sua mãe, tem até o cheiro dela.

E é ótimo.

—  Obrigada…

—  Não precisa agradecer.

Ela se mantém agarrada à mulher por muito tempo, nem dá pra saber o quanto, e só solta quando sente o celular vibrar no bolso dos shorts. A sua mãe diz que está tudo bem e que ela pode olhar quem é.

Ochako pega o aparelho com uma leve e ridícula esperança de que seja o Bakugou, mas sabe que isso nunca aconteceria. Se ele não tem nem onde dormir, com certeza não tem celular. E também é tão orgulhoso que jamais a procurará primeiro, mesmo que já tenha percebido que precisa se desculpar com ela.

Isso se ele percebeu.

Mas ela também não fica decepcionada quando vê quem é. Afinal, Ochako já esperava que desde o momento em que ela questionou o Monoma sobre o encontro, aquela cabecinha feroz dele se pôs a trabalhar para pegá-la de surpresa.

“Sobre nosso encontro, você está livre amanhã?”


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Notas finais do capítulo

Mirhawks ou como quer que o ship se chame é algo que eu contemplo às vezes, consigo imaginar a fic em minha cabeça, e acho que eles teriam interações incríveis, porém não sai jhhdshsdjjkskk, então esses Mirko e Hawks de araque se pegando enquanto fazem diálogos super expositivos é o máximo que vocês terão de mim, perdão. Ou de nada, sei lá.
E é isso, um capítulo mais calmo (?) antes do final da rota de Monominha, tâmo quase lá u.u
Beijos e boa semana!



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