Regras de Sangue escrita por Moriah


Capítulo 5
Regra Número Quatro: Você deve ficar em silêncio.


Notas iniciais do capítulo

Oi gente, passando pra avisar que a vida vem acontecendo e por isso os capítulos estão demorando demais, demais. A história tem todo um cronograma, tem início, meio e fim já planejado e vai sim terminar, mas não posso (infelizmente) entregar um prazo ou uma constância de postagens.

Não desistam da Astrea Ho, ela ainda tem muita história para nos contar ♥



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Regra Número Quatro

Você precisa ficar em silêncio.

 

Os dois guardas jogavam cartas (ou tentavam), enquanto a carruagem chacoalhava na estrada de terra e dificultava o início de qualquer competição acirrada. Os outros dois guardas, um deles sendo Sirius, haviam ficado para guardar minha família.

Minha guarda consistia em Soldado Norwood e Soldado Lerman, jovens demais, entusiasmados em serem prestativos e com muitas opiniões formadas sobre a capacidade de exercerem suas funções. Eles gostavam de Dalva, mesmo que essa estivesse desanimada desde o início do percurso e mal olhasse para qualquer um deles. 

Era surpreendente e um pouco absurdo que houvesse tantos guardas disponíveis em uma época de crises, quem dirá dois para ficarem com famílias "insignificantes". Toda vez que Lerman ganhava o outro batia com os pulsos no estofado alaranjado e Dalva saltava, assim como eu. Esse ciclo embalou boa parte do caminho.

 

O chacoalhar vinha me deixando enjoada e fechar os olhos parecia aliviar um pouco, enquanto deixava meus dedos na janela desviar a brisa para que batesse em meu rosto, fechar os olhos me fazia pensar em tudo que havia ficado para trás. Sentir o ar beijando meu rosto era um bálsamo sobre essa ferida aberta em minha mente.

— Ele vai mandar você fechar a janela, de novo — Norwood apontou, sua voz parecia a de um velho fumante, mesmo que seu rosto certamente pudesse estar em revistas de moda masculina.

— Quem se importa que estamos andando devagar se conseguimos respirar aqui dentro? — perguntei.

Dalva encontrava-se deitada no meu colo, ressonando baixinho e me fazendo suar na calça escura. Estava terrivelmente quente dentro da carruagem.

— Já havia saído? — ele perguntou, de repente cansado do jogo de cartas. Lerman entretia-se com o baralho. Falar dava a impressão de normalidade para nossa viagem solitária e fúnebre.

— Poucas vezes. Você é daqui? — perguntei, enquanto Dalva resmungava pela conversa.

— De TagLamig, já visitou?

Uma cidade familiar e fria, como Dimer. Era comum que uma semana antes do começo do verão fossemos até o cais da província de Tag, passando por Lamig, Lagas, Sibol até chegar em Init, onde nos despedíamos com um beijo e Lazzarus desaparecia em alto mar por três ou quatro meses.

— Para chegar até TagInit.

— Cais bonito — o jovem concordou, parecia perdido em suas próprias lembranças.

— Foi transferido por causa da Seleção?

— Não, Lerman sim. Eu já trabalhava no castelo.

— Legal e qual seu dom? — perguntei, acariciando Dalva.

— Muitas perguntas — Lerman observou.

— Vocês leram minha ficha e estou conhecendo a minha escolta.

— Fogo. — Desta vez, o soldado já se mostrava acanhado pelas minhas perguntas e comentários do seu parceiro.

— Prometo não dar muito trabalho — tentei sorrir.

— Você é uma Howard, acho difícil não ser sinônimo de problemas.

Não tentei esconder minha cara de confusão.

— Trabalho com seu irmão — Norwood explicou.

— O que ele quer dizer é que limpa a bunda do seu irmão — Lerman corrigiu.

 

Olhei para fora enquanto saíamos do limite da cidade e entravamos em um descampado, o céu estava negro com poucas estrelas e muitas nuvens pesadas, as árvores de um bosque qualquer estavam muito longe e era possível ouvir os grilos cantando. Dalva se arrepiou. Enquanto passávamos pelas cidades havia luz, fogo e festas pela seleção, mas agora não havia nem mesmo luzes na rua.

O que nos fez olhar para Norwood não foi o sangue, mas alguma pergunta que ficou presa em sua garganta quando a flecha atravessou a janela e atravessou seu pescoço. Lerman e Dalva saltaram, havia sangue em mim que vinha sendo jorrado de Norwood.

A carruagem parou.

 

Por que esse maldito parou? — Lerman parecia apavorado enquanto procurava sua pequena baioneta e puxava sua pistola. Fazendo o maior esforço que conhecia para não encarar o amigo novamente.

 

Lerman colocou as mãos nos lábios antes de abrir a porta da carruagem, mas não teve tempo de descer, pois outra flecha atravessou a janela aberta e pegou sua nuca. Agora Dalva estava rosnando, agachada.  Nenhum som  vinha do lado de fora para me dizer se o motorista ainda estava vivo, por isso tentando acalmar minha respiração busquei roubar as armas de Lerman, no chão, sem movimentá-lo. Tentei não pensar no cheiro de sangue enquanto me agachava para sair da carruagem.

As orelhas de Dalva ergueram-se de repente e eu soube que havia perdido algum som. Meu coração parecia um tambor enquanto me lembrava dos atentados as outras selecionadas: as explosões durante a visita médica. Conseguia sentir aquela sensação que começava nas pontas dos dedos e me fazia querer saltar, a adrenalina começando a bombardear todos os meus sentidos com informações irrelevantes como um cachorro que quer desesperadamente brincar.

 

Outra flecha passou ricocheteando pela janela e saindo pela porta aberta, acima da minha cabeça. O automóvel ainda estava ligado quando descemos, eu e Dalva, e agradeci aos céus pela porta não ranger enquanto Dalva saltava na minha frente. A terra na estrada parecia dançar, sinais claros de Terrenos.

— Não se mexa — o homem sussurrou, tampando minha boca. Estava me esperando do lado de fora da porta. Era a voz do motorista. — Dois homens com flechas, e fogo. Preciso que se acalma e fique em silêncio.

Eu avaliei as árvores, estavam longe demais e em nossa volta havia apenas pequenas elevações na campina, Dalva estava agachada na minha frente cheirando as botas do homem. Eu concordei levemente.

— Acertaram uma roda, não há step.

Eu esperei.

— Queimaram o step.

Mas enquanto ele falava eu vi o step jogado na campina começando a espalhar seu fogo. A terra sob nossos pés começava a erguer-se como um degrau e por dois segundos pensei que os dois homens encapuzados que vinham em nossa direção eram os culpados.

— Aquele step pode fazer a carruagem explodir — o homem explicou.

— Como gostaria de ter cavalos — murmurei. Dalva ergueu seus olhos felinos para mim, como quem dizia “mesmo que fosse possível, você jamais montaria em mim”. — Eles estão vindo.

— Sabe correr?

O quê?! Você não é meu guarda?

Motorista — ele corrigiu.

 — Vamos morrer — murmurei. O ar trazia para mim o cheiro do suor e seus passos. — Desligue o carro e então corremos.

— Eles estão perto demais.

E eles estavam, eu e o homem avaliamos o caminho.

— Você é terreno, mexa a terra e então desligue o carro. Eu e Dalva damos conta deles — eu gostaria de acreditar que daria certo, mas mesmo que desse não havia para onde corrermos. O carro desligado acabaria momentaneamente com a luz e isso talvez nos desse algum tempo de sobra.

— Você tem algum plano? — ele parecia indeciso.

Sorri, mas notei pelo olhar de Dalva que deveria haver sangue nos meus lábios.

— Correr.

Enquanto uma tempestade areia se formava em nossa volta arranquei a flecha da nuca de Lerman e Dalva trouxe a de Norwood, duas teriam que ser suficiente no escuro. De repente a escuridão veio, seguida de uma saraiva de flechas. Eu e Dalva nos agarramos a carruagem, torcendo para que o motorista chegasse.

O velho apareceu com sua respiração alta e sapatos derrapando na própria areia.

— Duas flechas, eu tenho ar. Quando eu falar para correr, você corre e se ver uma luz se aproximando você recua, eles são bons de mira. Siga Dalva.

Homem e fossa não falaram nada e supus que estivessem me olhando feio.

— Eu sigo vocês, mas preciso saber onde eles estão para mandar as flechas.

— Eu sei onde estão, estão na terra — o homem sussurrou. — A diferença de tempo entre vibrações e som permite calcular a direção e a distância, posso ajudar.

Nos encaramos, no escuro só dava para supor onde ele estava.

— Confie em mim, eu desliguei o carro — ele murmurou, me oferecendo sua mãe esquerda. Eu não estava desconfiando da sua lealdade, mas talvez devesse ter me perguntado antes.

— Eu não sou boa com localizações às cegas.

 

Mas tentamos. Ele desenhou no chão nossa posição para os atiradores, tentando me dar alguma noção. Meu coração continuava sua música com tambores e eu tentava esvaziar a cabeça, mas minha mente divagava para as pessoas que deixei em casa — estariam seguras? E as pessoas que Lerman e Norwood deixaram?

— Você consegue, senhorita Howard.

— Vá agora.

O homem hesitou.  

— Vá, quando eles tentarem acertar vocês, vou ter uma confirmação visual.

Então partiram. Dalva lambeu minha mão antes de deixar o homem se agarrar ao seu pescoço e entrarem na campina, a única iluminação vinha do step pegando fogo à nossa frente.

 

Então eu as vi, flechas queimando pelo céu escuro vinham do bosque. Eram surpreendentemente muito habilidosos e eu sempre odiei arco e flecha porque era péssima neles. Eu podia sentir o pânico vindo.

Respire fundo, Astrea. Não se perca dentro de você. Ache o início do medo e feche a porta. Sobreviva, As, e poderá viver mais.

 

A voz de Lazzarus em minha mente trazia uma calma fria, mas de olhos fechados o vento trouxe o cheiro do perfume vagabundo de um dos traidores e o cheiro de álcool do outro. Eu nunca havia usado o dom sem o auxilio de um arco, flechas são voláteis e de difícil controle e a mira nunca fora uma grande habilidade em mim. Eu nunca havia usado o dom como uma arma de ataque, porque certamente ter um animal excepcional como Dalva me fazia ser relaxada em relação a minha autodefesa. Eu poderia tentar acertar duas vezes o mesmo ou uma vez cada um deles e ainda estava decidindo quando outras duas flechas com fogo passaram por cima da carruagem, pelo grito vindo da campina atrás de mim soube que eles não errariam as próximas.

Respirei fundo mais uma vez, as flechas flutuando e girando descontroladamente nas minhas mãos. Queria Dalva por perto nesses momentos, talvez ela pudesse voar como águia ou atacar como abutres ou picar como uma cobra, mas havia a expulsado com o motorista: sem platéia para este fracasso.

Droga, como eu gostaria de já estar cercada de vestidos e saltos e realeza.

Ergui as flechas acima da carruagem, ao menos não giravam mais, mas como sempre tremiam descontroladamente.  

 

— Como brisa leve de partida, sempre fomos boas com essas brisas.

Se Dalva estivesse ali, concordaria.

 

 

O vento trazia o suor e eu conseguia imaginar seus ouvidos aguçados tentando entender de onde viera a ventania repentina, tentando descobrir onde eu estava. Atirei, sem pensar muito a respeito, uma para cada um na esperança de atrasá-los e não matá-los, mas estava exausta demais para correr.

 

De repente algo ressecado e comprido me ergueu pelas pernas, uma tromba. Dalva. Reparei na coceira insistente na coxa direita, na insígnia de elefante ganhada aos onze anos e nunca usada. Onde eu usuária um elefante em uma cidade fria como Dimer? Dalva me depositou de qualquer jeito sobre suas costas enquanto começava a correr em direção a floresta. O motorista já bem colocado se segurava com força, apavorado.

— Seu animal sumiu e esse elefante, ele... ele...

— Eu sei — murmurei. — Também.

Bem, talvez devêssemos ter morrido, pois como explicaríamos isso? Uma única flecha solitária tentou nos acertar, mas Dalva bruscamente mudou de direção antes de retornar para seu percurso. 

— Fez um bom trabalho — o motorista disse. — Me chamo Izhar.

— Bem Izhar, eu mandei correrem. Você não fez seu trabalho e agora Dalva...

— Dalva sumiu — Izhar respondeu, depois de um tempo. — Acho que não somos os únicos nessa situação senhorita, meu comunicador não está funcionando, acredito que atacaram uma das torres de comunicação.

— Onde a torre fica?

O homem engoliu em seco.

 

— Na província de Gioh. Há um museu na cidade de Gwanwyn, lá encontraríamos outras selecionadas da região e iríamos para o castelo de trem. A torre do norte fica lá.

— E onde estamos?

— Numa estrada que corta a província de Samgeam em duas. Aquela floresta já pertence a Geamhradh. A cidade está logo depois dela, por sorte meu lar.

Dalva havia diminuído o passo da sua corrida conforme adentrávamos a floresta e as flechas de fogo cessaram.

— Conhecia eles? — perguntei, os lábios ressecados com gosto de ferro.

Agora em um passo comum conseguíamos montar em Dalva com facilidade, tentávamos em vão não fazer barulho.

— Não, mas obedeciam às ordens de um dos soldados que ficou. Pareciam próximos, os guardas.

— Por que só um levava a insígnia?

— Só o capitão. Ele deveria ter estado conosco, mas preferiu ficar e como dava ordens a Norwood não se importou em trocar de lugar. O poder do homem o salvou, não é mesmo?

Parecia debochar, mas... capitão? Bem, muitas coisas haviam mudado, sem dúvida. Isso poderia explicar as marcas que Acbor levava?

— Toda sua família faz isso? — Izhar perguntou, apontando para Dalva.

— Isso o quê, Izhar?

— Isso explicaria o poder.

— Sua resposta é não.

— Bem, não o quê senhorita? Seu animal apenas fugiu. Sabe-se Deus como nos salvamos, não é? — outra risada amarga. Notei o cheiro de sangue, mesmo sem conseguir enxergar muito. Izhar fora ferido por isso a volta de Dalva. Teria perdido nós dois, como as insígnias de Norwood e Lerman os perderam.

— Acha que alguém se importa? — perguntei ríspida demais. — Sobre como nos salvamos.

— Acho que nós temos mais perguntas do que eles, com certeza. Como sabiam nossa posição, por exemplo?

Era uma estrada perfeita para armadilhas. Nada onde se esconder e teríamos uma morte certa se Dalva não fosse... bem, Dalva. Era para ser uma morte rápida e com pouca sujeira. Bem planejada. Suspirei.

— Estamos perto da cidade.

— Não há animais?

— Não, só insígnias por aqui. Muitas são animais carnívoros então poucos animais ficam por aqui. Como é em Dimer?

— Muita floresta, poucos animais carnívoros, então muita caça.

— Acho que você deveria saber, senhorita-

— Me chame de Astrea.

— Claro, Astrea. Acho que deveria saber que há muitas apostas sobre seu nome ser o único na urna de Dimer. 

— Eu imaginava. Quanto você apostou?

— Baixo.

— Uma pena, não vou poder ajudar você.

— Uma pena. Sou o que chamamos de curioso.

— Não é assim que matamos o gato?

— Engraçado você dizer isso — ele passou a mão por Dalva. — Alguns gatos tem sete vidas, não é?

 

Sorri, cerrando os olhos.

Ambas as mãos de Izhar estavam enfaixadas e nas faixas havia pequenos cortes e marcas feitas pelo impacto de algum objeto. Eu deveria ter perguntado mais, investigado melhor e mantido à guarda, ao invés disso confiei nele. Ignorei as marcas em suas mãos e a tinta preta escondida embaixo de toda as faixas.

— Há algo que você queira perguntar? — Izhar virou brevemente o rosto para o lado, para que eu o visse sorrindo.

— Não — respondi. Mas havia muitas respostas que eu desejava ter. Principalmente ao notar que havia mais bandagens por todo o seu corpo. — Deve ser um trabalho complicado — insinuei.

— Você nem imagina.

♔ ♕ ♚ ♛

— O que acontece agora?

Há horas estávamos andando, Dalva nos dava sinais de que não aguentariam por muito mais tempo. As estrelas no céu começavam a ficar menos visíveis conforme amanhecia, não falamos nada após o curto diálogo anterior e eu tentava piedosamente bloquear todas as lembranças do que havia acabado de acontecer.

Dalva parou e se agachou, deixando óbvio o seu desejo de descansar e, possivelmente, mudar de forma. Continuei caminhando e minutos depois Izhar começou a me acompanhar. Dalva era inteligente o bastante para não aparecer mais, até que a parte de Izhar no seu serviço houvesse terminado. Izhar não parecia ter certeza sobre o que fazer.

O que a Astrea naquela dia não sabia é que Izhar vinha decidindo muitas coisas durante o caminho. Ele conhecia o plano original e o que fazer em casos de mudança, mas vinha pesando muitas outras perspectivas em sua mente. Isso o deixava completamente exausto e olhar para a Astrea trazia uma mistura de orgulho e medo.

Notei o medo e procurei sorrir rapidamente, para reconforta-lo.

— Acho que você não vai perder seu emprego, talvez vire cabo.

Izhar sorriu de volta, pensou em comentar sobre minha péssima precisão com flechas ou elogiar meu desempenho na matança. Ao invés disso suspirou.

— Estamos a pé, então vamos seguir até o café mais próximo onde conseguiremos comida, água e comunicação antiga. O castelo saberá informar onde é o novo ponto de encontro.

Hoje sei que Izhar deveria saber onde era o novo ponto de encontro, só desejava passar naquela espelunca antes de voltar para o percurso correto.


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Notas finais do capítulo

Esse cap foi tenso, tenso.
Há muitas coisas nesse capítulo que só serão explicados beeeeem pra frente.
Espero que esteja gostando do estilo da narrativa, aceito todas as críticas. Fiquem bem ♥



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