Dê-me a sua mão escrita por Mary


Capítulo 9
9. Bárbara




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Felizmente não perdi o documento com a queda de energia. Consegui salvá-lo a tempo de desligar o laptop, entretanto, foi uma noite bastante atípica porque meu celular estava descarregado e eu nem podia apurar os estragos feitos por este ciclone, pois o Tempo na TV alertou sobre as fortes chuvas e com certeza fez uma excelente cobertura sobre o evento, até porque nessas horas as pessoas querem mais do que nunca entenderem o que motivou a chuvarada, além de os meteorologistas serem as fontes mais confiáveis, afinal de contas, não estudaram por quatro anos e chegaram a ter doutorado à toa.

Jantei à luz de velas e tão logo a energia elétrica foi restabelecida, coloquei o celular para carregar, todavia, sem internet nem sinal da operadora, sem notícias também. Um lamento que eu estivesse recolhendo roupas e, com isso, impossibilitada de registrar a intensidade da ventania.

Ainda assim, as notícias não são boas acerca da crise hídrica por aqui, o inverno já é uma estação seca aqui no Sul e o índice de chuvas está aquém da média, preocupante, posto que já vivemos o rodízio de água e com o agravante da pandemia.

Quem reclamou de 2019 deve estar chorando de arrependimento porque no ano passado pelo menos podíamos abraçar as pessoas, sair para desanuviar quando o clima ficava pesado em casa, fazer mil planos e agora tudo é tão incerto. Nossas vidas, nossos empregos, nossos sonhos e projetos, até nossas antigas paranoias. Muitas coisinhas que me tiravam do sério outrora, hoje vejo o quanto eram pequenas. Se eu sair viva dessa, pretendo pensar mil vezes antes de murmurar. Se. E me aflige tanto a suposição.

Agora que vocês já conhecem minha querida sogra, vamos dar os créditos à ela. Quando vi certas coisas que me deixaram de baixo astral, conversamos por videochamada, discorremos sobre o que lhe contei e vou partilhar com vocês às minúcias a partir de agora.

— Você deveria aproveitar esse momento de pandemia para desenvolver algum projeto que possa te ajudar e ajudar outras pessoas. Vejo esse potencial na escrita. 

— A embaixadora daquele site me persegue.

— Ela que se foda.

— Ela manda naquele site.

— Manda o caramba. Até onde tenho conhecimento, a plataforma é plural, não uma panelinha de meninas mimadas que querem a atenção só para elas.

— Parece-me que é.

— Babs, esconder seus escritos e procurar por essa perfeição doente não te fortalece. A moça pegou seu ponto fraco: o perfeccionismo. Esse mesmo perfeccionismo que ainda te prende tão fortemente ao Ensino Médio. Você se transformou numa mulher incrível, o mundo é capaz de enxergar essa Babs, mas você, Babs, você ainda se olha no espelho e se depara com aquela adolescente tímida, que sofreu muitos abusos, ouviu palavras contrárias vindas de pessoas que nunca foram suas amigas de verdade. E você se olha com os olhos de quem te rejeita. Enquanto você não passar a se olhar com amor, não importa quantas voltas dê o mundo, você vai continuar se sentindo terrível. Parar de escrever é deixar essa embaixadora acreditar que levou a melhor, que conseguiu o que queria: te tirar de lá, te impedir de ser lida pelas pessoas, de sonhar que um dia você vai ser a autora preferida de alguém e esse alguém vai ser eternamente grato pelo seu livro.

A embaixadora da plataforma, que atende por Rose, é uma sebosa que destruiu (por ora) meu sonho de ser escritora.

— Você não acha que maltratou demais a si mesma?

Dei de ombros.

— Pois eu acho. E acho mais: a escrita é uma forma catártica de fazer às pazes com o passado, mas não necessariamente vivê-lo no presente. Você poderia dividir sua experiência com outras pessoas. Agora, nessa quarentena, muita gente está na mesma situação que você ou talvez até pior. Você pode escrever e colher depoimentos, criar uma rede de apoio, pensar que enquanto você se cura, também utiliza sua habilidade para proporcionar um alento a muita, muita gente. Se aquela embaixadora não gostar, foda-se ela. Poste no seu blog, me marque no Facebook, crie uma conta no Wattpad, mas não permita que o egocentrismo e a soberba dela minem seu território. As críticas expõem as fraquezas do caráter dela, não exprimem um real parecer sobre a sua arte. Com todo o material que você já produziu e as suas vivências, você não deveria abaixar a cabeça, mas se considerar escritora sem sentir como se tivesse de pedir desculpas por não ter um pau no meio das pernas. 

— É... se eu fosse Bruno e não Bárbara, o trato daquela vaca comigo seria outro. Irônico que ela detonou tanto meu trabalho, mas tanto, tanto, me acusando de incoerências e ela, em contrapartida, não cita UMA única autora, nunca enaltece a escrita de nenhuma mulher.

— Escreva como uma mulherzinha aconselhou-me ela. — E não se esqueça de me marcar. Posso estar atolada de trabalho, mas nunca deixo minhas meninas prediletas sozinhas.

Quando escrevi sobre o primário, as maldades de Larissa foram enaltecidas porque infelizmente a falta de empatia dela por mim foi prejudicial, mas me lembrei da Marília e que eu tinha compensações do portão para fora: brincar com meus primos, as férias, os feriados e recessos, a inocência em relação ao mundo e as pessoas, a esperança de que o futuro seria incrível, entretanto, a autoconfiança que me protegia no primário veio por água abaixo no ensino médio.

Monstros nunca foram meus desejos, foram os meus medos, eles sim, fomentados pelas ervas daninhas que cresceram onde outrora havia um lindo jardim. 

Depois de Lana, foi a vez de Lety me aporrinhar os ouvidos com essa história de eu escrever uma história LGBT, ainda mais sendo junho o mês do orgulho LGBTI, entretanto, eu nunca me julguei interessante o suficiente para ser lida porque meu primeiro namoro homoafetivo foi com a Letícia e até conhecê-la, eu queria me convencer de que gostava de rapazes. Não quando escrevo numa plataforma onde uma das embaixadoras me persegue. A Babs sensata, aquela que se manifesta na escrita, sabe que ela é uma estudante de Letras frustrada porque queria ter passado em Direito ou Jornalismo e por não ter talento nato, desconta nos outros o ódio por si mesma, tecendo críticas ácidas e cruéis, a maioria sem embasamento.

Ela é uma versão da Larissa, porém metida a cult, embora não seja popular como a garotinha que me infernizou na 4ª série. O que vivi no primário tinha a intenção de me preparar para o mundo, mil vezes mais cruel que aquela escola gerida por comadres. 

Eu sobrevivi à Larissa, me formei no Ensino Médio e neste instante estou aqui, não exatamente levando a vida dos meus sonhos, mas estou respirando, fazendo parte da criação, mais do que mereço gritar para quem quer me odeie tanto que eu não vou desistir. Vou escrever como uma mulherzinha e com muito gosto porque a cada voz que essa embaixadora silencia, é um sonho que morre, uma ideia que volta para a gaveta.

O bullying velado existe e se ninguém está imune a ele, não há alternativa senão levantar a cabeça e lutar, lutar como nunca por esse espaço mais do que merecido, porque enquanto eu batalho para que minha voz seja ouvida por uma única pessoa que seja, crio aquilo que tentam roubar de mim: a identidade.

Eu não posso ser a Babs se passo a maior parte do tempo não querendo ser quem eu vejo em frente ao espelho.

— Babs


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Notas finais do capítulo

Dedos congelando, mas temos mais um capítulo pronto. =)



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