Dê-me a sua mão escrita por Mary


Capítulo 10
10. Letícia


Notas iniciais do capítulo

Sabem essa capa linda que agora adorna a fic? Foi presente do queridíssimo Gabriel, o rei do Nyah. ♥
Foi difícil de escrever esse capítulo, ele foi bem mais pesado do que os da Babs, mas cá está.



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Se você nunca ficou obcecada para descobrir o signo do (a) seu (a) crush e até a hora de nascimento para fazer uma sinastria amorosa, está vivendo errado. 

Aqui quem fala é a louca dos signos. Eu já amo assuntos sobre espiritualidade e não gosto de fanatismo religioso, até porque já fui obrigada a seguir uma religião à força, acusada de estar possuída pelo capiroto e não encontrar Deus em nenhum daqueles rostos com sorrisos falsos e discursos prontos. Hoje foi a vez de tirar cartas, senti vontade de receber uns conselhos.

Pensei muito sobre escrever ou não sobre essa parte da minha vida, mas é preferível quebrar o silêncio de uma vez por todas porque já guardo esse segredo comigo tempo por demais e está na hora de os culpados serem punidos. Sei que estou colocando minha vida em risco, todavia, o silêncio me mata lentamente.

Eu odeio a minha mãe biológica.

Não, não estou chorando histericamente só porque discutimos outra vez, porque ela, que nem presente na minha vida é, teima que "o homossexualismo não é natural, que Deus fez o homem e a mulher" e vai além, grita que a pandemia é castigo divino por causa dos LGBTS, não tem condição de ter um diálogo minimamente sadio.

Eu choro de ódio por saber que minha própria mãe tentou me matar e eu, quando pude escapar, escondi isso até de Lana, omiti a verdade de todos, por medo, por medo de que numa noite qualquer alguém fizesse tudo aquilo de novo ou em represália machucasse quem eu mais amo.

Não sou obrigada a amar a mulher que me gerou, o tempo que me ensine a perdoar, porque esse pensamento doente de que "é família" naturaliza abusos que não deveriam ser tolerados. Os pais de Lana se retrataram depois de julgarem que o amor dela por Odair era uma abominação em razão da diferença de idade, pediram perdão, até porque depois de tudo que passamos, desde a perda da Beatriz até o que aconteceu comigo, somente um amor verdadeiro poderia suportar.

Se Lana não conseguiu ter filhos com Odair, procurou ser a melhor madrasta possível, senão eu não teria entrado na justiça para pedir que no meu registro o nome dela conste como minha mãe. Ela amparou o meu pai no tempo em que estive ausente, tomou minhas dores e até quando estava separada foi mais próxima do que muitos parentes jamais foram.

Depois que Beatriz morreu, meus pais não tentaram ter outros filhos e não levaram adiante a ideia da adoção. Vivíamos os três bem felizes até que de um dia para o outro, minha mãe biológica entrou na justiça contra o meu pai e queria a minha tutela. A argumentação não fazia o menor sentido, posto que se ela quisesse recuar da ideia, que tivesse feito durante a gestação, não quando eu já tinha doze anos.

Não me aprofundei nos meus primeiros anos escolares porque até a grande reviravolta da minha vida, eu era uma garota brincalhona, sapeca, frequentava muitas festas de aniversário e dormia na casa de amiguinhas, sabia sim que tinha gente que não gostava de mim, porém ninguém empenhava esforços para destruir minha reputação ou impedir que eu me socializasse com os demais.

Após ficar mais do que provado o quanto eu era feliz com minha família e não tinha o menor interesse em ter contato com minha mãe biológica, todos nós acreditamos que a trégua viria. E como estávamos equivocados!

Numa noite de verão eu fui dormir e como era de costume, deixei a janela aberta. Alguém entrou no meu quarto, a princípio não pude distinguir na escuridão. Minha boca foi tampada e quando despertei de novo, estava dentro de um porta-malas. E não era pesadelo.

— Esconde naquele quartinho... 

Pela entonação eu reconheci a voz de Cida, a mulher que me pariu. Fazia calor, eu não conseguia respirar, senti medo de morrer, nem quando quase me afoguei na praia pensei que pudesse estar tão próxima de deixar este mundo. E foi por pouco. Para não afugentar vocês, fui raptada por ela e pelo companheiro, primeiramente escondida no porta-malas do carro dele até sair do perímetro urbano naquela madrugada.

Cida não trabalhava mais para a minha família desde os meus oito anos, porém por ter prestado serviços por tanto tempo, conhecia as falhas de segurança do condomínio onde eu morava com os meus pais, ela e o companheiro devem ter espionado nossos hábitos por muito tempo porque o plano decorreu perfeitamente.

Eles sussurravam, mas eu não era surda:

— É só pra dar um sustinho neles...

— Quer quanto de resgate? — Quis saber o comparsa dela.

— Ainda não pensei, mas eu quero dar um sustinho neles... — respondeu Cida, olhando pensativa para a estrada.

— Nenhum arranhão na princesinha, então?

Cida voltou-se para mim, já acomodada no banco traseiro do carro.

— Tudo bem, princesinha? Animada pra conhecer a casa de mainha?

— Eu quero ir pra minha casa!

— Mas mainha preparou até um quartinho pra você. Não magoa mainha não.

— Eu quero ir pra minha casa, chega de brincadeira.

O parceiro de Cida grunhiu. Eu não era tão tola quanto os dois sugeriam.

— Mainha só fala dessa menina bonita...

— Eu quero descer desse carro. Agora!

Cida estava desconcertada:

— Letícia é uma menina de gênio ruim.

— Eu nem te conheço direito, não falo com estranho.

— Se você quiser ver aqueles dois patetas de novo, é melhor mudar esse tom, mocinha. — advertiu Cida.

— Você está me ameaçando? — devolvi.

— Eu disse, Cidinha, eu disse que era melhor estourar os miolos da vagabundinha e ficar sugando esses dois trouxas até cansar...

— Quero saber até onde vai o "amor" deles pela bastarda!

O casal gargalhou.

Meu destino final era um barraco fétido, situado numa rua de barro, os postes em volta cheios de gambiarras, crianças brincando na água suja e fui segurada pelo braço ao descer do carro para não fugir. Eu nem sequer sabia onde estava, não daria muito certo. Fui apanhada de camisola de algodão com alcinhas, não tinha um centavo no bolso e as únicas pessoas conhecidas me queriam muito mal, me viam como forma de obter dinheiro.

Num primeiro momento eu fui tratada como hóspede pelos meus meios-irmãos, já tinha até sobrinhos, posto que Cida engravidou aos 14 e a primeira filha dela também procriou cedo. Quando deu na televisão que Lana e Odair estavam desesperados à minha procura, meu coração disparou, eu mensurava que com a intervenção da mídia no caso, seria questão de tempo para me tirarem dali.

O circuito de segurança mostrou a imagem de um casal entrando no condomínio mais ou menos na mesma hora em que fui raptada. A polícia já trabalhava com algumas hipóteses e várias linhas de raciocínio eram levantadas.

Cida endureceu comigo. Eu não podia sair daquele barraco por nada no mundo. E quanto mais o caso ganhava visibilidade nacional, o ódio dela por mim só aumentava de tamanho.

— Antes que me peguem, eu acabo com você...

Passei a ser empregada do barraco. As outras meninas estavam autorizadas a me darem ordens e eu tentava tomar banho quando não tinha nenhum homem presente porque não foi uma nem duas vezes que fui espionada e flagrei meu suposto padrasto... bem... vocês sabem. Ele era nojento. Felizmente nunca fui estuprada, mas aqueles olhares de cobiça já me amedrontavam.

Eu já sabia que gostava de meninas, que me sentia muito melhor perto delas, mas ainda não havia vivido nenhuma experiência romântica, nenhum selinho roubado na melhor amiga, nada. Pelo que Babs contou da Ana e da Karla, tenho certeza de que rolou algo entre elas e os pais, revoltados, frustrados, mal informados e temerosos da opinião pública acerca do assunto, proibiram o contato na ilusão de que restringindo as duas de se verem, acabariam com o amor que sentiam uma pela outra.

Apesar de serem apenas teorias, pode ser que Karla tenha entrado na bolha da heterossexualidade compulsória e tentado se esquecer do que viveu com Ana em razão do sofrimento que isso lhe trouxe. Não a amada em si, mas o ódio, o preconceito, as palavras amargas, os olhares de nojo. Ela própria pode ter pensado que confundiu tudo com a melhor amiga. Quanto à Ana, bem, a barra ficou pesada para o lado dela.

Eu fui a Ana da vez.

Enquanto a Gata Borralheira Letícia organizava o barraco, as outras crianças iam para a escola, os vagabundos para o bar e Cida trabalhar, eu ficava ouvindo música e de prosa com Olívia, uma menina de quem ninguém gostava na rua. O apelido dela era Mortícia porque ela era tinha a pele bem branca, o cabelo preto e só andava de preto até no calor. 

No início eu via umas grandalhonas querendo pregar peças nela, daí quando ela ameaçou fazer uma bruxaria para as quengas não pegarem nem resfriado, deixaram Olívia Mortícia em paz.

— Sempre com a vassoura. — comentou a garota, parando em frente à minha casa enquanto eu recolhia o lixo com a pá e jogava numa caçamba próxima.

— É a vida... — dei de ombros.

— Eu não sabia que a Cida tinha outra filha...

— Ela tem um por ano, como é que você iria saber?

— Você se parece bastante com a menina que estavam procurando, mas acho que ela morreu porque nunca mais foi falado nada.

— Deve ter sido algum tarado... — menti. Ou nem tanto. — Na certa, ela está morta!

— Você não se importa que eu fale com você?

— Não.

— Nem que eu use preto?

— Não.

— Nem do que já falaram de mim?

— Falar até papagaio fala... falam por aí que eu sou metidinha, narizinho empinado, me acho... eu não ligo... danem-se os outros!

— Sei que a Cida não gosta de visita, mas...a gente pode ser amiga?

Mortícia não tinha amigas. Se fosse hábito conversar com outras meninas, ela não teria me implorado com os olhos rasos para ter minha amizade, para ser aprovada, se sentir bem-vinda em algum lugar porque com certeza sua vida estudantil era um inferno, em casa também e pela vizinhança sua reputação não era das melhores.

Eu não estava matriculada na escola, não tinha documentos, era basicamente uma indigente. Mortícia era obrigada a frequentar os cultos do Pr. Wellington, quando tinha mais interesse em se aprofundar no universo Wicca. O cara, além de mercenário, achava que Deus era surdo. Era fácil extorquir aquele pessoal miserável, bastava abrir uma portinhola, colocar uma placa dizendo que curava até unha encravada, encher uma sala com umas cem cadeirinhas de plástico, ter microfone, caixa de som e prometer milagres.

Dava para saber quando tinha culto porque a igrejinha não tinha isolamento acústico e todo o áudio vazava pela rua. Quando ele marcava sessão de descarrego, desembocava gente de tudo quanto é lugar. 

— O pessoal não estuda, a culpa é do capeta. A fulana saiu com o marido da cicrana, foi o diabo que cochichou no ouvido. É incrível como as pessoas culpam o capeta por tudo e nunca se responsabilizam por nada.

— É mais fácil encontrar um culpado para tudo do que aceitar que se tem liberdade para saber o que é certo ou errado, mas, falando sério, essa de culpar o tinhoso pelas notas ruins é de lascar.

— Eu só não tenho namorado porque...

Mortícia me contou que a média com que as meninas da nossa região engravidavam era catorze anos de idade. 

— Você não gosta de meninos!

— Não me diga que até isso te contaram? — espantou-se a garota, ficando mais branca do que já era.

— Eu também não gosto, por isso não tenho namorado.

— Eu também não sei, nunca beijei ninguém...

— Eu também não.

— Você já imaginou como é que é?

— Eu vejo as pessoas se beijando, já vi até coisa pior, né? Mas nunca dei um beijo, não.

Para ela eu contei sobre minha antiga vida, ficaria entre nós.

— Se você prometer que não conta pra ninguém... — pediu Olívia, com as mãos para trás, se balançando, mas olhando para os meus lábios com desejo e curiosidade.

— Não conto...

— Você está rindo...

— Estou rindo de nervosa, nunca fiz isso antes...

Demos um selinho. De olhos abertos. Foi breve, mas tive certeza de que nunca beijaria um garoto na vida.

— Fala alguma coisa, Lety...

— Fala você... ficou toda vermelhinha.

— Não sei, mas pensei em...

Escondidas atrás da caçamba, demos um beijo mais longo. Era o primeiro, não tinha como eu saber o que fazer com a língua, precisaria praticar muito, mas Lana e eu, muito antes do rapto, havíamos conversado sobre essa parte quando menstruei pela primeira vez. Ela me falou que eu não precisava encanar com o tamanho dos seios porque eles seriam adequados ao meu formato de corpo, que quem decidiria a hora de beijar na boca ou não seria eu e que eu nunca deveria deixar ninguém tocar em mim sem o meu pleno consentimento.

— Nós somos lésbicas? — inquiriu Mortícia.

— Não sei.

A mão dela se aproximou da minha e nossos dedos foram se juntando. Meu coração disparava. Por fora eu estava risonha, falante, mas só eu sei o tamanho do nervosismo.

— A gente pode fazer isso outras vezes?

— Claro!

— Por favor, não conta pra ninguém!

Logo que me dei conta que havia beijado aquela menina, meu maior medo foi a rejeição dela. Era esperado que gostássemos dos meninos da nossa idade, dos atores bonitões, dos carinhas de banda. Numa novela até teve um casal de amigas e elas deram um selinho só no último capítulo. O autor já foi ousado em dar visibilidade, ainda que pouca, para mulheres que amam outras mulheres, mas a sociedade ainda não estava (e eu falo como se estivesse) preparada para debater sobre isso.

De uns anos para cá, já há personagens LGBTS representados em séries, novelas, filmes e livros, mas um clichê que me irrita é o de "ser só uma fase", de uma das moças do casal lésbico ficar com um cara. Ainda assim, os conservadores insistem que beijo homoafetivo (beijo não é beijo?) vai influenciar as criancinhas a "virarem" gays, lésbicas, travestis... 

Tudo bem, camarada, mas fazem um escarcéu quando tem casal homoafetivo em novela, ameaçam boicotar, esperneiam e em contrapartida acham normal uma cena de estupro, romantizar incesto, certa série de livros que virou uma trilogia de filmes e colocar aquele cara como a vítima da situação, mostrar cenas pesadas de sexo porque o casalzinho é hétero.

Mortícia me pediu em namoro e se não podíamos usar alianças, eu ganhava um doce. Ela me prometeu que fugiríamos juntas. E muitos beijos mais vieram. E muitas cartas (dela, eu não podia respondê-la, apenas guardava numa caixinha para ninguém bisbilhotar). E as expectativas a mil por hora. Seguia eu na vida de uma gata borralheira cujo príncipe era uma princesa gótica, emo e cheia de vontade de sair daquele lugar.

Cida me mantinha em cárcere privado, a maior distância por mim percorrida desde minha chegada àquele lugar havia sido até a caçamba onde rolou meu primeiro beijo. Apesar de não se falar mais no meu desaparecimento, ela não queria me libertar. Não preciso perder tantas linhas relatando privação, maus tratos e total falta de empatia. A essas alturas você deve imaginar que minhas condições de vida eram lastimáveis e cada dia era um milagre. Não morrer de fome. Não ser violentada. Abrir os olhos. Comer um pedaço de pão seco. No meio das trevas ter alguém para amar.

Certo dia eu saí do banho e notei um burburinho na casa, risadas altas e arremedos. Meu coração quase parou quando reconheci as cartas de Mortícia espalhadas por toda a sala e meus meios-irmãos gargalhando.

— A Mortícia é sapata...

— Quem deu ordem pra vocês mexerem nas minhas coisas, hein? — gritei, já mandando a real. Meu pequeno cantinho não era a casa do Seu Madruga, onde todo mundo vai entrando sem nem pedir licença.

— A Mortícia é sua namoradinha, é?

Um dos meus meios-irmãos era nojento, queria tentar algo comigo, dizendo que era filho do embuste com quem Cida era casada, para me convencer a ceder a chave do jardim secreto para ele. Aquela conduta horrenda não era repreendida, mas o sentimento que minha primeira namorada tinha por mim, sim. E com uma força estupenda.

— Ah vá... sou muito mais homem do que aquela magrela horrorosa! — insistiu o sujeito, me prensando contra a parede, num tom de intimidação. — Me diz o que ela tanto tem que eu não tenho.

Olhei fundo nos olhos dele e me mantive em silêncio.

— Vai, fala, vagabunda! 

Ele me esbofeteou. 

— Você não vai mais ver essa magrela horrorosa.

— Você não manda em mim.

— Olha esse tom, mocinha.

— Olha esse tom você, cara. Só quem pode gritar assim comigo é o meu pai.

— Que pai, ô maluca? Se esqueceu de que os dois idiotas lá acham que você morreu?

Desvencilhei-me do embuste e me defendi como pude:

— Ah, seu bêbado desocupado, em vez de se meter na minha vida, vá arrumar uma ocupação e me erra! Cria vergonha na cara, seu peludo, eu não te devo satisfação da minha vida.

— Você vai se arrepender do tom que está usando pra falar comigo, sua canalha.

— Se você encostar um dedo em mim, um dedo que seja, eu acabo com a sua raça, tá me ouvindo?

— Você quer é ser do contra, criar confusão, isso sim.

O canalha esperou Cida chegar para contar sobre o meu affair com Mortícia, porém forjando um conservadorismo que me dava tanto nojo. Sentado na mesa, bebendo o que restou da cachaça, dava o parecer dele como se fosse o dono da razão.

— Não bate nela, mainha. Leva pra igreja. A Mortícia é má influência. A culpa não é dela. O que é que essa menina sabe na idade dela? Nada. Não sabe nada. A Mortícia é usada pelo diabo pra mexer com a cabeça da menina, presta atenção.

— Deus criou o homem e a mulher porque é pra mulher gostar de homem e homem gostar de mulher. Não é de Deus mulher gostar de mulher e homem gostar de homem.

— Eu disse, mas essa menina não quis acreditar.

— Amanhã, sem falta, ela vai ao culto. O diabo não vai sambar aqui na minha casa, não. A gente pode ser pobre, mas sem vergonha, não.

— Eu não vou! — avisei. — E ninguém tinha o direito de mexer nas minhas coisas.

— Seu único direito aqui é o de calar a boca — retrucou Cida —, se não quiser levar uns sopapos. Onde é que já se viu? Trazendo mulher pra dentro de casa?

— E o que você tem a dizer de alguém que rapta uma criança inocente do conforto de casa e a coloca em cárcere privado? É O QUÊ?

Cida me bateu tanto que foi um milagre eu ter acordado consciente no dia seguinte. As cartas haviam sumido e cada passo meu era vigiado. Naquela mesma noite, a mulher que me pariu me pegou pelos cabelos e literalmente me arrastou rua de barro adentro até a pocilga que aquele pastor salafrário chamava de igreja. 

— Eu vou te endireitar, nem que para isso tenha que te quebrar de porrada — disse Cida. — Não vou tolerar sapatona na minha casa. O pastor vai mandar embora o capeta pra ele parar de assoprar coisa no seu ouvido...

Fui tratada como uma atração circense para uma plateia cujo instinto beirava ao primitivo. 

De uma fileira Mortícia me reconheceu e abriu um sorriso triste. Nós éramos jovens demais para mensurarmos a dimensão daquele abuso à nossa dignidade. O discurso não pregava o amor ao próximo, a empatia, a caridade, visava oprimir, amedrontar, salientar a figura de um deus punitivo, castrador, intolerante, odioso.

Durante todo o tempo em que fiquei sob o jugo de Cida e fui obrigada a frequentar os tais cultos do Pr. Wellington, nunca ouvi uma pregação de verdade, apenas presenciei gritaria, selvageria e sensacionalismo.

Iminentes eram as probabilidades de um dos meus meios-irmãos me abusar e não ser punido porque visava me "corrigir". Eu farejava o desejo no olhar dele e me apavorava. À medida que o cerco se fechava contra mim, eu tinha duas alternativas: ou eu me matava e acabava de uma vez com tudo aquilo ou... fugia.

Não pude me despedir de Mortícia nem lhe desejar uma boa vida, não sei que destino teve minha primeira namorada porque na primeira oportunidade que tive, aproveitei a distração dos meus agressores e zarpei. Muitas outras vezes, quando o desespero me assolava, eu tentava correr para longe, mas voltava apanhando e chorando, sendo ameaçada e castigada, me habituando a dormir com fome. Daquela vez ninguém me seguiu e eu não olhei para trás, não tinha nada a perder e a situação iria se agravar porque o abuso ganharia uma roupagem mais traumática, ninguém poderia curar as feridas que seriam deixadas.

Três dias depois, eu me encontrava numa cama de hospital, mas quem estava ao pé da minha cama era Lana. A alegria nos olhos dela parecia ter sumido, ela só chorava e meu pai estava mais envelhecido do que eu me lembrava. Eu tomava soro intravenoso e não conseguia pronunciar uma só palavra. A história do desaparecimento terminava com final feliz porque eu estava de volta, entretanto, nem anos de terapia e o amor incondicional daqueles que nunca desistiram de mim foram capazes de me encorajar.

Desculpem-me por nunca ter contado tudo antes, eu tinha muito medo, mas agora é o momento de colocar os pingos nos is.

 

— Lety


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