Amor Cego escrita por Cas Hunt


Capítulo 8
Jantar




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O jantar é surpreendentemente desconfortável, ao menos pra mim. Perco a fome, passando a mastigar e engolir mecanicamente, conferindo o violão atrás de mim a cada cinco segundos. Tetsuro tem Andrea no colo, abraçando sua cintura carinhosamente sem pudor algum enquanto dividem o prato e o garfo. Charlie e Noah parecem totalmente alheios a situação.

Novamente, estou uma pilha de nervos graças a aproximação do cantor. Noah nem mesmo se distrai da comida sentado ao meu lado, enfiando o garfo na sua pilha de risoto levando costumeiramente até a boca. Passa um guardanapo na boca a cada cinco ou seis garfadas, garantindo não ter nada no rosto.

Sinto-me tentada a tocá-lo novamente. Lembro com fervor a sensação da pele macia debaixo da minha palma quando o orientei sobre onde estavam as teclas do piano. Tão macio... Macio ao ponto de me fazer querer tocá-lo novamente para saber se não imaginei tudo. Passo a atenção pelos dedos longos e delgados, os braços, o peito subindo e descendo em uma respiração tranquila.

De lado, consigo ver seus olhos escondidos pelos óculos escuros. Tem um tom opaco, perdidos no vazio. Vejo a pupila sem se mover. Desço pelo nariz comum, o queixo fino, bochechas angulares, a barba rala sombreando o rosto. Já havia notado a penugem e aproveito para conferir a tatuagem novamente. Tem o formato de uma flor, mas com muitas pétalas. Não sei distinguir qual o nome dessa e quase pergunto a ele. Trinco os dentes, seria idiotice.

—Elise.

Salto na cadeira mediante a voz de Andrea.

—De onde você é?

Coço a nuca.

—Bishop Hill. No Condado de Henry.

Andrea arregala os olhos.

—Noah também!

Ao meu lado ele se remexe, parte atento e parte concentrado no prato. Olho dele para a morena agarrada a Tetsuro.

—Você não...?

—Não, não — ela nega enfaticamente — Nasci aqui mesmo. Mas nossos pais nos adotaram quase na mesma época, então tive que ir pra Bishop Hill, aquela vilinha perdida.

Me repreendo por querer conhecer os pais de Noah. Praguejo em silêncio, sem entender a razão de desejar saber quem são sendo que quando meu ex-namorado, vocalista de uma das bandas, quis me apresentar á sua mãe neguei e fugi do relacionamento.

—De quem você é filha? Talvez o Noah conheça.

—Dá pra parar de me meter na conversa? — ele reclama — Só quero jantar esse maldito aipo se for possível.

—Não xingue minha comida — Charlie resmunga.

—Correção, sua gororoba — Tetsuro ergue um dedo e Charlie dá um tapa no mesmo.

—Se não gosta por que sempre come?

—Porque a comida do refeitório é cara.

Charlie mostra o dedo do meio para Tetsuro. Desvio o olhar para minha comida me focando ao menos em terminar o prato. Não sei como eles iriam reagir se descobrissem que sou filha de Catherine Jones, a herdeira e atual presidente de um conjunto de empresas grandes focadas em construções civis. Posso até imaginar a surpresa, não incomum a mim que a recebi de tantos rostos antes, sobre a mãe estar tão ligada ao que consideram “útil” e a filha apegada ao “inútil”.

Termino minha parte aproximando os dedos do copo ao meu lado. A mão esquerda de Noah vai na mesma direção e interrompo a minha. Já estou nervosa e suada só de estar ao lado dele, sequer imagino como ficaria caso o tocasse logo agora. Pego um copo diferente, bebendo e espiando-o de esguelha.

—Elise, Noah é tão interessante assim?

O sangue vai direto ao rosto, fazendo Andrea rir por me flagrar.

—O que ela fez? — Noah pergunta pousando o copo e pegando os talheres novamente.

—Vem te secando faz algum tempo.

—Me manteria hidratado se fosse você, Noah — Tetsuro engasga o próprio comentário.

Charlie se pronuncia.

—Calem a boca e comam.

Noah não se volta para a comida.

—Você tem algum problema comigo, Brown?

O tom de voz não é o típico descontraído, nem o sarcástico. Sério, frio. Sua feição está presa no indefinido, as mãos segurando os talheres até larga-los em cima do prato, claramente irritado.

—Dá pra falar alguma merda?

—O que quer que eu diga?

Pareço mais fria do que me sinto. Sem emoções na voz ou na expressão, os ombros tensos prendendo-me onde estou, segurando o garfo com o cotovelo na mesa e uma mão no colo, quase segurando o joelho.

—Qual seu problema? — Noah continua agressivo — Acha que só porque sou cego preciso de alguém me alimentando? É isso que está pensando?

—Ou ela te achou bonito — Andrea sugere.

—Esse assunto não envolve você — Noah responde.

Bufo. Assisto ainda mais a imagem construída dele por anos em minha mente desmoronar em apenas alguns dias. Não é gentil como demonstrava a voz angelical no ensino médio. Não é paciente, não é simpático. O sorriso que imaginei ter visto em cima do palco deve ter sido causado pela minha própria memória deturpada de tantas repetições. É assim que se sentem fãs desiludidos?

—Fala! Se tem uma boca ela deve servir pra alguma coisa, não é? —Noah insiste.

—Depois eu sou babaca — Tetsuro resmunga.

—E isso por acaso te envolve também? Não é você o cego na mesa sendo encarado, é?

A sensação é de perder algo importante. Parece que meu tempo pensando nele como uma coisa foi uma total mentira, bem estampada em seu comportamento agora.

—Entendo — murmuro deixando o garfo ao lado do prato. —Charlie. Obrigada pelo jantar.

Ela ergue o rosto da sua comida, envergonhada e enfurecida pelo comportamento. Posso imaginar como deve ser constrangedor. Tenho no peito mais uma sensação de cansaço emocional do que qualquer outra. Tomo o violão nos ombros e me levanto em silencio.

—O que? — Noah se vira para onde escuta a cadeira puxar — Acertei? Ficou curiosa sobre um cego comendo? Por isso me deu aquela comida hoje, não foi?

Paro meus movimentos. Baixo os olhos na direção dele.

—Sua barba está crescendo.

Não me incomodo de ouvir sua resposta. Nem ver a reação dele. Viro-me. Desvio das outras cadeiras passando apressadamente pela sala até a porta batendo-a atrás de mim. Não entendo o frio do ambiente, nem o calor escapando meu corpo em tamanha velocidade. Fico paralisada no corredor do apartamento de Charlie, encarando o vazio.

A pessoa a qual me inspirou voltar a tocar é um grande idiota. Passo a mão pela nuca, suspirando e tirando o celular do bolso conforme forço minhas pernas a se moverem na direção das escadas. Me preparo para discar o número de Louis, porém paro encarando a notificação da minha rede social privada. Claro, como musicista tenho a conta pública e uma a qual reservo apenas para meus próprios interesses, sem postar nada e com apenas alguns amigos reservados.

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Notas finais do capítulo

Ps: me perdoem qualquer erro, raramente reviso os caps antes de postar eles ;-;



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