Amor Cego escrita por Cas Hunt


Capítulo 28
De Volta Para Casa




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Meus pés estão me matando. Sonolenta, arrasto-me pela calçada estreita subindo o morro levemente inclinado onde fica a casa da minha mãe. Uma mansão quase tão antiga quanto a da velha senhora Beans com o jardim cheio de lótus, se não fosse a arquitetura moderna instaurada nela na reforma de alguns milhões feitos por Catherine Jones. O porteiro me reconhece e lhe aceno sustentando um meio sorriso.

Subo a escadaria, a mochila passando a pesar significativamente no ombro e o sol queimando minhas costas. Cumprimento o segurança e entro na casa coçando a nuca e indo direto para a cozinha me questionando como acabei perdendo o carregador do celular.

—Bom dia, mãe.

—Bom dia, Lizzie.

Lizzie? Ela não me chama assim desde o tempo em que meu pai morava com a gente. Entro no cômodo notando um ponto bem chamativo e a razão pela qual sua voz parece parcialmente hesitante. Catherine está usando um robe creme de seda, a camisola perfeitamente arrumada por baixo, os cabelos em cachos redondos e macios não passam da orelha, os olhos hazel frios e calculistas, analisando minha estrutura facial do modo mais racional que consegue, uma mão envolta na xícara de café e a outra na de outra pessoa.

Minha expressão passa de amável para o tédio o qual Ryder tanto reclamou durante nosso tempo juntos. Encaro o homem de pele cor de chocolate, barba rala e careca de camisa atrás dela. Os olhos amendoados quase no mesmo tom esverdeado quanto o do kiwi aberto em cima da ilha onde o café da manhã foi posto. Encaro-o diretamente, avaliando o rosto nada hesitante.

—E você é...?

—Joseph Cage. Elise Jones, não é?

—Mais ou menos. Sobrenome é Brown.

Ele volta os olhos para minha mãe e ela dá de ombros.

—Se a menina queria ficar com o sobrenome do pai, quem sou eu para negar?

O homem ergue as sobrancelhas se voltando para mim novamente.

—Por que escolheu o sobrenome do seu pai?

—Sou o último rastro dele nessa casa.

Pra falar a verdade, nem mesmo eu entendo a razão de ter continuado com o sobrenome de alguém que não faz mais parte da minha vida. Sei bem que ele passou por momentos bem complicados e mesmo não tendo a idade para lidar com isso sei: poderia ter ajudado. Anos de culpa, sentindo o peso da separação definitiva dos dois ser em parte por minha razão levou a de alguma forma usar o seu sobrenome como um lembrete.

Hoje ele tem sua própria família. Talvez tenha até esquecido meu aniversário uma ou duas vezes, os parabéns chegaram com atraso de algumas semanas. Doloroso, por certo. Mas não me matou.

Sei que instaurei um ar desconfortável e dou uma olhada na comida sentindo-me enjoada sem razão alguma. Passo a mão pelos cabelos bagunçados. Deveria ter ficado na casa de Yuri por mais tempo.

—Elise.

—Só respondi a pergunta, mãe.

Dou uma olhada nas escadas considerando bastante subir e rever o piano. Volto a atenção para o casal trocando pensamentos só através dos olhos. Meu estômago piora. Forço-me a sentar no banco em frente Catherine e puxo uma xícara colocando café puro, sem o açúcar. Mordisco algumas frutas, como o pão macio e um pedaço da massa curiosamente roxa.

—Joseph é cozinheiro. — minha mãe comenta — Ele fez o café.

Assinto. Foco em terminar a comida. A pressão é estranha, a situação pior ainda. Quero voltar no tempo e me impedir de ser colocada de frente ao novo namorado da minha mãe do qual eu sequer sabia da existência.

—Gosta de omelete, Elise?

Junto as sobrancelhas. Não gosto do meu nome sendo pronunciado por pessoas estranhas.

—Não, obrigada. O que tem aqui já é mais que o suficiente.

—Deixe ela, vai se acostumar.

Joseph passa os olhos firmes de mim para minha mãe. Assinto, ela está certa. Estou deixando minha estranheza atrapalhar o julgamento sobre ele e isso não foi algo que Catherine Jones me ensinou e sim algo que minhas emoções tomam controle. Umedeço os lábios com um pouco do suco cítrico deixando a xícara de café mais para o lado. Respiro fundo, acalmando-me aos poucos para encarar a situação tranquilamente.

—Por que voltou tão de repente? — Catherine questiona.

Ergo o olhar para ela, perfeitamente calma. Consigo controlar bem emoções e reações exageradas. Da forma como me ensinou. Se sou tão racional perante cada situação aparentemente absurda, é graças a ela.

—Algumas coisas estão mudando — aponto meu peito — Quis ajudar alguém importante.

Ela não esboça reação de primeira.

—Sem a ajuda da terapia?

—É. Também não entendo muito bem como aconteceu.

Parece natural. Não me sinto desconfortável. As palavras saem quase sem emoção, apesar de se tratar da verdade. Por anos eu e minha mãe tentamos entender por que diabos eu não conseguia manter uma relação com outras pessoas, por que razão me fechei a minha mãe e Louis. Terapia, remédios e até um diagnóstico errôneo de depressão também não foram de muita ajuda, então passamos a tratar disso como normal. Não tinha problema algum contanto que eu não acabasse matando ninguém.

—Deveria sair? — Joseph questiona.

—Elise?

—Se você confia nele, por mim tudo bem.

Vejo-a esconder o sorriso no canto dos lábios. Não sou particularmente chegada na ideia dela estar com outro homem depois de tanto tempo, porém tenho poder sobre ela ou a sua vida, de forma que me resta apenas aceita-lo e tentar entende-lo por suas ações. Catherine também me ensinou isso.

—Então... Elise. — Joseph começa — Você tá tranquila com isso?

Ele aponta para si mesmo e minha mãe. Assinto, quase mecanicamente.

—Eu disse — a mulher cruza as pernas, orgulhosa — Ela é tão racional que chega a assustar.

Sinto o franzir em minha testa. Acabo discordando do comentário devido uma série de flashes com Noah ou Louis no centro deles. Dessa vez, minhas emoções de empatia chegaram a fazer Yuri entrar nesse requisito também. Seja lá o que aconteceu, fico sem saber se regressei ou amadureci.

—Falando em racional — ela respira fundo apoiando os cotovelos na bancada e se inclinando para a frente — Notei como vem administrando seu dinheiro desde que se mudou. Pode me explicar tantos gastos inúteis?

Uso o guardanapo para limpar os cantos da boca e os lábios sentando-me da mesma forma que ela.

—Me empolguei com alguns amigos.

—Fico contente que tenha amigos. Porém, Elise, sabe que esse dinheiro é o tempo e investimento de terceiros sendo gastos de forma... Não acertiva.

Assinto. Me surpreendo de ter demorado tanto para chegar nessa conversa. Gastei mais em alguns meses do que em anos morando com ela. E como monitora meus cartões e os saques que faço da conta que ela me deixa dinheiro reconheço ter feito burrice.

—Sendo assim, o que acha de se sustentar por alguns meses?

Tiro os cotovelos da mesa analisando os fatores. Tenho o dormitório da faculdade, o qual é totalmente gratuito e como a bolsa é integral o valor de sobrevivência na capital não chega a ser monstruoso. Poderia conseguir me virar, contudo, isso iria prejudicar meu desempenho tanto nos instrumentos por ter que estabelecer um horário fixo e chegar até a dificultar um pouco em épocas de prova.

—Só preciso arranjar um emprego de meio-período. Quer que eu comece imediatamente?

—Já falei com Nate, ele tem um café perto do seu campus.

—Entrevista na segunda?

—Quarta. Consegue se virar com o que já tem.

Assinto novamente.

—Vocês duas... — Joseph parece confuso e admirado —Tratam assim de uma situação como essa?

Minha mãe se vira para ele

—Que situação?

—Tá simplesmente mandando sua filha trabalhar para conseguir o próprio dinheiro.

—Sim, é uma ótima forma de ensinar economia na prática.

Ele ergue as sobrancelhas e me olha.

—E você não vai fazer um escândalo e pedir dinheiro?

Faço uma careta.

—Isso é irracional. Gastei demais, ela está certa. E é uma oportunidade de independência. Ou pelo menos o início dela.

Joseph solta uma risada.

—São mesmo mãe e filha. Por acaso vocês já brigaram na vida?

—Não seja idiota. Elise, ajude ele com a louça preciso fazer uma ligação.

Concordo com a cabeça e me levanto. Joseph, apesar da expressão firme e quase assustadora, abre um sorriso a qualquer bobagem no minuto em que nota não ser desaprovado. Lavando as peças, testo-o ao observá-lo secar e guardar tudo no seu devido lugar. Confirma que não é de hoje que dorme nessa casa.

—Você cursa Música, não é?

—É.

—Gosta?

Termino o último prato e lhe entrego apoiando as mãos na pia.

—Gostar é subjetivo — pontuo — Quero uma coisa e passar pela faculdade sendo um evento feliz ou não, é meu caminho para conseguir isso.

Joseph ergue as sobrancelhas.

—E o que quer?

Ergo um meio sorriso.

—Quero ser a melhor nos instrumentos que toco — olho minhas mãos ensaboadas — Ser lembrada por algo que eu criei. Fazer outras pessoas escutarem e sentirem, sem precisarem verbalizar nada.

Joseph cruza os braços.

—É algo bem ambicioso.

Fungo. E é também, um objetivo totalmente diferente de um tempo atrás. Não uso ninguém para me impulsionar se não minha própria vontade de conseguir mais, a cede por tocar corações sem precisar dizer nada. Realizar o que Summer e Samir fazem tão naturalmente em seus respectivos instrumentos.

Lavo minhas mãos e passo pelo homem abrindo a porta de vidro para o quintal gigantesco. Percorro o caminho de pedras, a mochila abandonada na cozinha, e sento-me em uma das espreguiçadeiras á beira da piscina em formato de oito. Ao virar-me, convido Joseph a me acompanhar. Desconfortavelmente, ele se senta ao meu lado, sem entender muito bem.

—Há quanto tempo sai com a minha mãe?

—Dois anos.

—Interessante.

—Ela nunca falou de mim?

—Não.

—E isso não... Sei lá... Te magoa?

Encaro a água brilhando contra a luz do sol. Tiro os sapatos. Fecho os olhos e apoio a cabeça na espreguiçadeira.

—Magoa. —confesso — Mas ela teve as razões dela. Talvez me conte, talvez não. Tem filhos?

Abro os olhos para conferir. Joseph desvia o olhar. Vai mentir.

—Não.

—Tem certeza?

—Inferno, como você é tão parecida com a sua mãe?

—Te incomoda?

—Essa frieza? Não sei.

Passo a mão pelo rosto. Sinto-me vazia. Idêntica a quando morava aqui, recusando-me a sentir nada se não na música. Era difícil ter que acordar tendo nada mais do que um branco de ideias sobre o dia. Sem saber o que fazer, como agir, como sentir. Isso provocava essa “frieza” aos olhos de outras pessoas.

—Ela deve gostar mesmo de você.

Ficamos em um silêncio desagradável. Joseph volta para dentro, cumprimentando-me antes de ir. Fala que vai para casa e espera me ver no natal. Desconfiada, apenas concordo e devolvo sem emoção o seu comentário.

Ele é um estranho. Contudo, apenas para mim. Ao chegar em casa, não era ele o invasor e sim eu. Um ambiente diferente, onde eu me sentia diferente e deixei isso me afetar ao ponto de retornar a apatia a qual me recolhia anteriormente. E se eu não voltar a me importar? E se acabar me importando e isso tudo machucar?

Ver minha mãe com outro homem só me faz lembrar da imagem do cartão de natal do meu pai, recebida quando tinha quatorze anos. Ele estava alegre, sóbrio e abraçando a filha e esposa novas. Renovou-se. Transformou-se. E me deixou para trás.

Sento-me, o peito comprimido. Tento convencer-me de que esse não é o caso agora e minha ansiedade não é nada convencional ao momento. Estremeço, mesmo assim. Não paro de pintar a ideia de Catherine Jones segurar outra criança de costas a mim e ao lado de um novo marido. O que diabos eu poderia fazer além de deixa-la seguir sua vida? Dói como o inferno e não posso fazer nada. É tão difícil assim aceitar um estrangeiro?

—Incomodada?

Viro para ver minha mãe.

—Um pouco.

—Normal — ela senta-se onde Joseph estivera — No que está pensando?

Pressiono o centro da testa e encaro a piscina e o gramado atrás dela se estendendo por um campo de golfe pequeno e um pequeno bosque de eucaliptos logo em seguida. Engulo o seco, a bile e o café da manhã amargando em minha boca.

—No papai.

Sinto os olhos dela em mim. E também sinto a pena dela.

—Não se falaram mais?

Nego.

—Achei que nunca se importasse com isso.

Toco meu peito. A dor causada pela não reciprocidade de Noah é muito diferente. Quase mais leve do que essa pesando meu corpo, tornando-me concreto. Faço uma careta, segurando as lágrimas ardentes e ácidas nos olhos.

—Isso vem mudando de uns tempos pra cá.

Catherine respira fundo e segura minha mão livre. Ela está quente. Bem mais quente do que eu.

—Mãe.

—Sim?

—Ele cantava, não cantava?

—Seu pai?

—É. Acho que lembro dele cantando quando cheguei da escola uma vez.

O silêncio.

—Ele parou de cantar depois de um tempo, não foi?

Ela continua sem me responder. Meu peito dói ainda mais.

—Uma vez... Quando estava na casa dele... Ouvi ele cantando pra Alice. Quando eu entrei... Na sala... Ele parou.

Soluço. Antes de entender como acabei parando e lembrando de coisas tão dolorosas, começo a chorar. Mesmo sem gostar de ter que fazer isso na frente da minha mãe, mesmo tendo recusado a relembrar tais fatos, tais dores reprimidas, tais mágoas, tudo parece vir com tanta força que me sinto sem energia. E minha mãe me abraça.


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