Amor Cego escrita por Cas Hunt


Capítulo 21
Esperança




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/792325/chapter/21

—Outra lótus?

—Não, só uma rosa normal.

—Me sinto encantado.

Solto uma risada.

—Vamos. Já é bem tarde.

—Depende do ponto de vista. Deve ser cedo para os morcegos.

—Para disso. Anda. Vai ter que me acompanhar até a farmácia.

—Por que? Eu que sou cego.

—Machuquei o cotovelo na boate — não falo sobre a lateral dolorida do corpo — Só uns curativos.

—Dói muito?

De novo, o tom doce e aveludado. Encaro meus sapatos e respiro fundo. Gosto tanto da voz dele. Me parece algo viciante do qual não consigo me livrar. Olhando para Noah, arrumado e encantador, mesmo de óculos escuros o considero bonito.

—Não, só um arranhão. Vamos?

—Dá pra pegar mais algumas sementes?

—Roubar, você diz? Dá sim.

Noah levanta.

—Onde fica?

Pego o violão colocando-o nas costas antes de imitá-lo.

—Indo em frente. Espera, vou pedir um táxi caso a velha ache ruim a gente pegar tanto das sementes dela.

Já passa das quatro da manhã. Meus olhos não estão pesados e pressiono os lábios me perguntando se vou ter enxaqueca na manhã seguinte. Faço o pedido de carona pelo aplicativo tentando calcular o tanto que já gastei só hoje.

—Merda!

O barulho de algo pesado caindo na água me atrapalha, junto do som estrangulado de alguém xingando e o praguejar ao voltar a superfície.

—Noah? — ergo os olhos do celular, encontrando-o dentro da fonte atrapalhando-se para sair.

—Não tinha me falado disso!

Solto uma risada caminhando na sua direção.

—Você tá bem?

—Tô molhado. Para de rir, isso é maldade.

Só consigo rir ainda mais. Preciso recuperar o ar antes de analisar direito a situação. Ele está de joelhos na fonte, a água batendo em seu quadril enquanto procura pela beirada. Segue minha voz apoiando a mão na parte de pedra. Apresso-me colocando a alça da capa atravessada no peito para conseguir ajuda-lo a sair. Estendo o braço alcançando o seu ainda no ar.

—Eu disse pra esperar, não disse?

—Tá mesmo me dando uma bronca?

—Agora tá ensopado.

O cabelo está grudado no rosto, tal como as roupas no corpo evidenciando sua constituição corporal da qual forço-me a desviar atenção. A blusa listrada carrega ainda algumas das folhas que estavam pousando tranquilamente na fonte antes de serem brutalmente atingidas pelo peso de Noah.

—Não me diga. — resmunga arrumando a posição do óculos escuro.

Reviro os olhos. Puxo-o até que sai da fonte e passa alguns momentos apoiado em seu joelho, tossindo água. Confiro rapidamente se ele não acabou se machucando. Não encontro nenhum sinal de sangue, mas não sei dizer se bateu a cabeça em algum ponto perigoso. Tiro de dentro do bolso na capa do violão uma toalha pequena que trouxe achando que iria ficar suada após a apresentação e sequer usei.

—Ei. Guarda o óculos.

—Por que?

—Para de me questionar.

—Sou cego. Preciso questionar pra saber o que tá acontecendo.

—Eu secando você.

—Com o quê?

—Espinhos. Tira logo o óculos.

Noah faz uma expressão temerosa. Paro antes de me aproximar, observando-o de pé e desconfortável sem fazer nada além de respirar descompassadamente.

—Não gosto de tirar — ele ergue a mão até o objeto — Deixa as pessoas desconfortáveis.

—Então por que algumas vezes te vejo sem?

—Dependendo da ocasião minha pálpebra não fica tremendo muito, aí eu posso ficar sem eles.

—Só por isso?

Ele pressiona os lábios, contrariado.

—Já me falaram como é esquisito. Não quero... Te deixar enojada.

Minha expressão relaxa. Aproximo-me devagar e toco levemente sua mão.

—Senta na beira da fonte e tira o óculos. Seus olhos não me incomodam.

Vejo-o engolir o seco, desconfiado. Os lábios levemente curvados, água pingando do nariz e das mechas de cabelo ao redor do seu rosto. Hesitante, ele o faz. Usa o pé para descobrir onde está a fonte e abaixa-se, ficando sentado no concreto.

Sento ao seu lado. Toco seu braço, avisando-o da minha aproximação. Noah tira o óculos e vejo a pálpebra direita trêmula para cima e para baixo. Envolvo a toalha na mão esquerda e passo-a do seu rosto, tirando os fios ondulados do caminho e procurando algum sinal de ferimento. Faço o mesmo percorrendo seu cabelo com cuidado, meus dedos pressionando levemente antes de passar o tecido. Noah junta as sobrancelhas levemente.

—Não achei que fosse fazer isso mesmo.

—Cala a boca. Tô vendo se não se machucou.

—Não quer me deixar sangrando até a morte?

—Deve ter batido a cabeça mesmo.

Deslizo o tecido pela parte de trás do cabelo.

—Não dói?

—Não.

Chego na nuca e continuo procurando algum sinal de inchaço. Volto para o rosto sem encontrar nada, por algum milagre. Curvo-me, procurando sua orelha direita. Confiro até a tatuagem na esquerda.

—Você tem um cheiro bom, Elise.

Estremeço. Não é o tipo de coisa que esperaria ouvir dele. Em silêncio, desço pelo nariz, os lábios e paro no pescoço. Engulo o seco, preferindo deixar essa tarefa perigosa antes de fazer bobagem de verdade.

—Termina — deixo a toalha nas suas mãos — Vou pegar as sementes.

—Ah, pode pegar a flor de lótus de novo? Perdi a minha na fonte.

—Claro. Fica aqui. De verdade, dessa vez.

Ele meneia a cabeça. Novamente, começo a me questionar que diabos acho que estou fazendo.

***

Noah tem um corte levemente profundo na panturrilha. Irrito-me no táxi considerando tanto ele quanto eu idiotas. Pago a dívida e com a mão de Noah repousando no meu ombro seguimos pela calçada no centro da cidade até encontrar uma farmácia 24 horas. Pego curativos, anti-inflamatório e aspirina imaginando que ele vai acabar gripando amanhã.

Saio da farmácia segurando a sacola no braço que não dói e levo Noah até o banco de praça mais próximo pouco me importando por já estar quase amanhecendo. Faço-o se sentar e dou uma olhada no machucado.

—Tá. Vai ter que prestar atenção. Depois que eu te explicar como faz e você mesmo testa.

Noah solta um muxoxo.

—Ensinando curativos a um cego, eficiência nota 10.

Empurro seu ombro e ele ri. Noah puxa a barra da calça e lhe passo as instruções sobre abrir o frasco do líquido ardente e derramar na área ferida. Ele usa bastante de suas mãos, avaliando se colocou em todas as partes. Pragueja alto com a ardência e continuo rindo. Espera alguns segundos e aconselho-o a envolver o curativo. Não demora mais de cinco minutos.

—Tá, entendi — ele baixa a barra da calça —Agora você.

Eu?

—É. Me deixa cuidar do seu.

—Não me sinto segura com isso.

—Por que eu sou cego?

—Claro que não, idiota. É mais pra você não ser nem um pouquinho delicado. Vai derramar o frasco inteiro no meu braço, não vai?

—Que tipo de monstro acha que eu sou?

—Não sei ainda — imito sua resposta. —Ok, vai em frente.

—Chega mais perto.

Meu coração bate escandaloso no peito. Arrasto-me no banco até meu quadril tocar o seu e faço uma careta ao sentir uma fisgada de dor. Esqueci inteiramente sobre como essa parte do meu corpo está dolorida. Vejo Noah, de óculos, pegar o frasco movendo um pouco do líquido dentro. Entrego a ele meu cotovelo ferido e sinto a ponta do seu dedo percorrer do meu ombro até onde digo que está doendo.

Ele gira a tampa do anti-inflamatório e lentamente o inclina. O líquido cai quente na minha pele me provocando uma careta, apesar de durar pouco tempo. Noah toma cuidado envolvendo meu ferimento devagar. Pressiona-o ao terminar.

—Ainda dói?

O sol nasce atrás dele. A visão marca minha memória, meu coração tão estabilizado que chega a assustar. Sinto conforto, calor. Não é a desesperada paixão de antes, a necessidade de tocá-lo. É mais... afetuoso. Noah, agora de cabelo inteiramente solto, voz aveludada e lábios pressionados demonstrando sua concentração. Ensopado. A flor de lótus no colo e... a rosa amarela afetuosamente colocada no bolso inferior de sua blusa. O sol lhe dá um ar mais real. A ficha cai. O Noah do presente é diferente e nunca vou ter nem ele e nem o Noah imaginário. E tudo bem.

—Não dói mais — murmuro em resposta.

—Então vamos pro dormitório.

Levo Noah garantindo-me de fazê-lo ficar com a aspirina. Questiono se seu celular ainda funciona e o exibido fala com orgulho ser a prova d’agua. Nos separamos quando a porta do elevador para no quarto andar para ele. Subo ainda até o sexto. Deixo o violão dentro da sala acústica e sento-me no sofá, estagnada.

Um misto de alívio, felicidade e paz invade meu peito. Por que me sinto tão tranquila agora? Não entendo muito bem o que me faz sentir bem após entender que Noah não vale tudo o que fiz, ou que não temo sua saída da minha vida.

É uma escolha, percebo. Dele e minha. Podemos ficar sem a presença um do outro, e mesmo que seja eu a sofrer com essa ausência, tenho a certeza estranha de que vai ficar tudo bem. Sorrindo ao teto, noto se tratar de esperança.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Amor Cego" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.