Amor Cego escrita por Cas Hunt


Capítulo 10
Ponto de Vista




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O palco é baixo, uma distância de meio metro do chão da boate. Ela é toda circular, o bar apresenta algum líquido no balcão onde umas bolhas estranhas e iluminadas sobem e descem numa dança esquisita e única. O teto, apesar de não haver nenhuma luz normal, brilha com cores neons. O chão é espelhado, as paredes escuras. Os corpos dançando no centro movimentam-se com a batida eletrônica produzida por um cara cabeludo o qual não noto muito.

—Essa não é nossa praia — Ryder fala baixo, espiando pelas cortinas do palco — Nem um pouco.

—O cachê é bom — Yuri dá de ombros.

Tyson está mais atrás, em uma ligação rápida com o namorado. Fico quieta, agradecida por ter trago o violão comigo esse tempo todo. Abraço-o, meu coração se aquietando devido à presença e superfície do objeto contra minha pele. Comum antes das apresentações, sinto-me quente e o violão subitamente parece gélido. Essa é diferente das outras, o lugar todo é escuro e iluminado por alguma coisa no sabão de nossas roupas o que acabará me fazendo aparecer também.

Sento-me em cima de uma caixa de som, respirando fundo e fechando os olhos ao apoiar o rosto no braço do violão. Ele parece quase uma pessoa viva. De pálpebras fechadas, concentro-me mais nas sensações da corda embaixo da ponta dos meus dedos, do som em cada nota, do timbre trêmulo produzido a cada vibração.

—Você continua a mesma.

Abro os olhos. Ryder está do outro lado do corredor, as cortinas pesadas nos protegendo da visão dos exteriores, mas consigo ainda ver suas roupas iluminadas na luz estranha do teto. Ele está com as costas apoiadas na parede, preocupado olhando pela fresta para a pequena multidão do lado de fora e de novo para mim. Relaxo ainda mais minha expressão, aproveitando a proximidade.

Levo minha mão até a dele, em silêncio. Toco primeiro a palma, esperando não assustá-lo mediante minhas ações silenciosas e discretas. Da palma passo aos dedos e os seguro, apertando levemente apenas para passar o calor da minha mão para a gélida dele. Recordo levemente isso ser uma das coisas que fazia para ele antes de nos apresentarmos e tanto antes como agora pareço insensível a multidão quando subo no palco.

—Você também continua o mesmo — respondo fechando os olhos novamente.

O cansaço vem me abatendo desde a saída da vã. Pernas moles, músculos relaxados. Receber a verdade vinda de Yuri foi libertadora, pareço finalmente saber como prosseguir com Noah. Ou melhor, sem Noah. Mesmo que precise sair do mundo da fantasia, não consigo simplesmente deixar de lado tanto tempo gasto admirando ele. Sendo assim, prefiro a memória do festival no ensino médio, ficar na ilusão de que é alguém que nunca alcancei do que saber que se transformou em uma pessoa ranzinza e briguenta. Mas dessa vez, conforme vivo em minhas lembranças, não vou mais conter minhas emoções no presente. Mesmo que seja um processo doloroso e longo.

—É nossa vez. — Ryder aperta minha mão, a voz muito mais suave.

Abro os olhos, levantando. Solto seus dedos e ele entra primeiro, seguido de Yuri e Tyson. Costumeiro, entro por último distanciando-me das pessoas na pista e ficando quase escondida do lado oposto a Yuri, na direita de Ryder. Conecto o microfone pequeno e irregular no cavalete apontando para as cordas e confiro ainda a mixagem dificultosa no escuro. Levamos alguns minutos até a primeira nota soar, os corpos quentes no meio do local ansiosos por mais melodia.

—Elise — Ryder me chama — Escolhe a primeira.

Penso alguns segundos e assinto. Posiciono-me. Os outros fazem o mesmo. Sem perceber, concentro-me somente no instrumento, ignorando os cochichos dos ouvintes, ignorando onde estou, o cansaço físico e emocional sendo tomada apenas pela música.

Inicio o som rápido, indo de uma corda para a outra em um dedilhar talentoso, movendo o corpo na direção do violão e sorrindo prosseguindo para a melodia agitada descendo pelo suave e confuso, uma rapidez de notas que faz outros quererem se mover também. Abafo o som na boca e volto novamente, as cordas dançando conforme minha vontade. E relaxo.

***

Estou atrasada. É a primeira coisa que penso ao acordar. Meus olhos estão pesados, as pestanas teimando em fecharem mesmo contra minhas ordens. Movo-me na cama virando para o lado e abraçando o travesseiro, olhando pela janela do quarto aberta quase queimando minhas retinas devido a iluminação forte.

Sorrio, lembrando sobre como cheguei satisfeita e suada da pequena apresentação, a blusa tão mais grudada no meu corpo que parecia ter pegado chuva. Meus dedos ardem ainda mais e hoje decido dar uma pausa aos coitados.

Procuro o celular ao meu lado vislumbrando os números 9:42 na tela. Não dormi tanto quanto suspeitava. Ergo o tronco, preguiçosa. Massageio o pescoço, os ombros. Alongo-me levemente. Jogo os pés para fora da cama já preocupando-me em arruma-la de volta em sofá. Calmamente transito pela casa apenas de camiseta, conferindo fatores importantes os quais não me incomodei de ver ao chegar.

Carteira, está no lugar. Violão no quarto. Mochila ao pé da porta. Porta trancada perfeitamente. Roupas sujas no cesto, roupa de cama discretamente escondida na cômoda ao lado do sofá. Procuro dentro da sala acústica as roupas limpas tomando algumas para o dia. Começo a fazer café, ainda sem me trocar.

Cruzo as pernas no sofá, ligando a televisão e bebericando o café. A bebida quente se espalha pela minha boca e desce despertando cada um dos meus nervos. Aproveito a sensação. As memórias da noite voltam e continuo sorrindo. Havia me esquecido sobre como é estar em cima do palco escutando pessoas gritando em apoio ao que você produz. Transmite uma sensação aconchegante de aceitação.

Passo pelas notícias sem muito interesse. Respondo algumas mensagens furiosas da minha mãe por não atende-la. Troco de roupa, desligo a televisão e faço um pouco mais de café deixando na térmica. Coloco a carteira no bolso ignorando minha face meio-idiota de 16 anos na foto da habilitação.

Fecho a porta trás de mim levando apenas a mochila. Sigo pelo dormitório descendo o elevador, alegre até. Passo por algumas pessoas no térreo e dirijo-me até a segunda aula esperando receber a professora agitada de cabelos arrepiados.

No intervalo procuro por Charlie. Encontro-a sentada junta a algumas outras meninas aparentemente atléticas próximas da parte da comida do refeitório. Aceno minimamente e ela devolve. Espero, segurando a alça da mochila. Charlie rapidamente diz algo á suas colegas e se apressa na minha direção.

—Oi.

—Sobre ontem, sinto muito pelo...

—Tudo bem — interrompo, sem querer falar dele e lhe estendo minha mão — Que tal eu cozinhar hoje? Dessa vez na minha casa. Me passa seu celular.

Ela parece surpresa. Positivamente. O aparelho gigantesco nas minhas mãos parece pequeno nas dela. Digito rapidamente meu número entregando o eletrônico de volta para a dona.

—Parece diferente hoje.

—Pareço?

—É. Mais confiante.

Analiso sua resposta.

—Talvez esteja — lembro de como não tive receio algum de segurar a mão de Ryder, nem do olhar significativo dado por ele ao me deixar na porta do dormitório. — Te conto no jantar.

—Adoraria ouvir. Preciso voltar, vai ficar bem? Não quer se inserir no meio das mutantes de Educação Física?

Passo os olhos das meninas na mesa de onde ela viera para a própria Charlie em si. Ainda não me comunico muito bem, mas com certeza posso tentar. Minhas palmas ficam suadas. Assinto. Charlie sorri.

—Está mesmo confiante.

Charlie caminha de volta para sua mesa e sigo seu encalço. Novamente, diferente da noite anterior ao ter um conjunto de pessoas na minha frente minhas mãos começam a suar, fico nervosa e estremeço. Sei ser um problema. Por isso tenho de dar o primeiro passo para mudar. Imagino como minha mãe agiria e abro um sorriso, tentando ser receptiva ás colegas de Charlie.


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