Vapor escrita por Downpour


Capítulo 16
16. Bifurcação




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CAPÍTULO 16

bifurcação

 

calum hood

 

       Calum nunca tinha estado em um ambiente com um clima tão ríspido como aquele. De repente o olhar suave de sua namorada tinha endurecido, seu rosto fino tinha adotado uma expressão dura que ele não conhecia. Ainda.

       Ele estava diante de um lado completamente diferente de Alissa Fontes.

       Contudo, o que mais o espantou naquela noite, foi o fato de um dos homens mais famosos da Austrália estar olhando para os dois. Victor King tinha um sorriso sereno em seu rosto, mas não parecia estar exatamente feliz. Se olhasse mais de perto, poderia ver algo crepitando no olhar dele. Inquietude.

       Por fim a palavra “querida” ressoou na sua mente por momentos tortuosos. Pela forma em que os dentes da garota sentada a sua frente estavam trincados, ela conhecia esse homem. Não um conhecer de vê-lo nos telejornais como âncora, mas conhecer de ter em algum momento convivido com ele.

       — Você não falou que tinha um namorado-

         Um olhar impiedoso surgiu no rosto de Alissa.

         — Não é como se você fosse se importar. — disse estreitando os olhos, havia cautela ali. E algo extremamente semelhante a Victor, a mesma inquietude.

         Calum estava tão atordoado com a situação que não conseguia reparar mais nada senão nos traços de agressividade silenciosa na voz da menina.

         — Você é minha filha Alissa, nunca se esqueça disso. — King disse de forma polida.

         O queixo de Calum caiu.

         — Não é como se eu pudesse esquecer. — foi como se a garota tivesse cuspido as palavras na frente do pai.

         Estava ali, na frente de Calum o tempo todo. Ele tinha se questionado porquê Alissa nunca se incomodou quando as pessoas passaram a reconhece-lo nas ruas, como ela nunca tinha ficado deslocada na gravadora ou na grande quantidade de shows naqueles últimos tempos. A verdade era que ela tinha sido criada em ambientes assim. Alissa tinha sido criada em meio a pessoas famosas, mas nunca quis ser uma pessoa famosa.

         Aquilo tinha deixado ele intrigado.

         — Espera, você é uma King? — ele quase que balbuciou. Não pode evitar, as palavras quase que deslizaram para fora de sua boca. Todavia, as semelhanças estavam ali. Alissa tinha sim semelhanças com uma das famílias mais comentadas do país, ela possuía os mesmos olhos castanhos que o pai e até mesmo a forma em que os dois esticavam os lábios para sorrir era semelhante. A cor de pele dela era um pouco mais escura que a do pai, e seus cabelos cacheados eram bem diferente das ondulações dos fios de Victor. Mesmo assim era difícil negar que não eram semelhantes.

         Ao dizer aquilo algo semelhante a tristeza brilhou nos olhos de Victor. Seu sorriso vacilou.

         Para ele, era doloroso que sua filha sequer fizesse questão de mencionar que carregava seu sobrenome. Sobrenome este que para ela era um fardo.

         — Creio que não fomos apresentados da forma devida. Sou Victor King, pai da Alissa. É um prazer conhecer o namorado dela. — a forma como Victor dizia demonstrava uma preocupação com a garota, ele olhava para Calum da mesma forma que um pai protetor olharia para o namorado de sua filha pela primeira vez. Todavia havia algo estranho ali, algo que não se encaixava.

         — Sou Calum Hood senhor. — disse aceitando o aperto de mão do homem. Calum tentou não estremecer com o olhar medonho que Alissa dava para seu pai.

         — Foi uma grande concidência encontrar você em um dos meus restaurantes favoritos. — um sorriso casual apareceu no rosto de Victor, tudo que ele fazia parecia ser procurando agradar Alissa, coisa que não estava acontecendo.

         — O que você quer, Victor?

         Calum não pode evitar pensar que aquela era uma forma peculiar de lidar com o seu próprio pai, ele jamais direcionaria aquele tipo de palavras, em um tom tão ríspido assim ao homem que tinha o criado. Foi aí que sua ficha pareceu cair. Victor não tinha exatamente “criado” Alissa. Se aquele homem tivesse criado aquela garota, então não haveria porque Alissa esconder seu último sobrenome, então ela estaria ao lado da família King.

         A família King.

         Ele se lembrava de Alissa falar de sua mãe com os olhos brilhando em admiração e do padrasto, Alessandra e Phill. Mas nunca falava de seu pai.

         Ela era a filha fora do casamento perfeito de Victor King. Contudo, considerando o fato de que ela provavelmente já tinha nascido antes do casamento, era bem provável de que Victor tenha se relacionado com Alessandra antes de casar-se com a Sra. King; Daphne.

         Victor estava tentando reconquistar a filha que ele perdeu. E estava falhando miseravelmente.

         — Querida, eu gostaria que você passasse o próximo semestre em Sydney na nossa casa.

         A forma como ele disse “nossa casa” fez com que o nariz de Alissa se contorcer. Somente pela forma em que a garota estava tensa era o suficiente para Calum querer tirá-la dali o mais rápido possível.

         — Eu estou contente dividindo um dormitório com a minha melhor amiga, muito obrigada. — embora fosse um agradecimento, o tom era gélido. Talvez aquelas fossem as palavras mais educadas que Alissa tenha direcionado a ele naquela noite.

         O sorriso de Victor desmanchou levemente, mas ele era bom em manter as aparências. Ele era bom em fingir que não notava o desconforto da menina. O porquê disso era o que realmente intrigava Calum.

         — Lissa, não acha que está na hora de pedir a conta? — Hood disse, atraindo os olhares dos dois. Enquanto Victor o olhava com uma expressão de raiva contida, havia alívio no olhar de Alissa, como se ela tivesse percebida a presença do namorado. Um sorriso terno surgiu no rosto da garota.

         — Sim, vamos. — disse pegando a mão do namorado e deixando o pai para trás, da mesma forma que ele tinha feito anos atrás.

 

 

 

alissa fontes

 

 

         A garota de vestido vermelho saiu do restaurante com uma expressão lívida, todo o seu corpo doía de tanto tensionar os seus músculos, como uma forma de conter sua raiva de anos atrás. Sua boca tinha um gosto amargo, provavelmente do mesmo amargor que tinha criado seus traumas.

         — Obrigada por me tirar dali. — disse por fim, para Calum. Ela tentava ao máximo falar suavemente, como se não estivesse consumida por ódio, ainda mais porque Calum não merecia ver aquele lado feio dela. Aquele era um lado que ela menosprezava assim como menosprezava seu pai. Era algo que Victor tinha criado, mesmo que inconscientemente, nela.

         — Ali, eu não te julgo por nunca ter me contado. Você deve ter tido uma infância dolorosa. — foram as palavras que ele conseguiu elaborar depois de todo aquele choque.

         Contudo, Alissa o surpreendeu mais uma vez naquela noite. A garota virou-se para ele e então teve uma crise de risos no estacionamento, depois de passar alguns momentos rindo sozinha, ela olhou para ele e deu um sorriso pequeno. Agora era como se os músculos de seu rosto finalmente estivessem relaxados.

         — Eu sinto muito Calum, — a garota disse de forma sincera enquanto abria a porta do carro dele — Fico feliz que você não fique magoado por eu não ter contado. Só achei forças para falar sobre o meu pai com a minha melhor amiga dois meses atrás.

         Calum olhou para a Alissa silenciosamente, ele gostava de reparar nos pequenos detalhes dela enquanto disparava a falar. O garoto acabou percebendo que a crise de riso que ela tinha tido momentos atrás fora um mecanismo de defesa. Ela tinha transformado aquilo em uma piada, para que ela pudesse rir enquanto seu coração estava machucado. A dor era óbvia. Desde que conhecera Alissa havia algo nela... a forma como ela andava sozinha pela faculdade com um livro na mão... as barreiras que ela tinha construído... Ele sentia que estava cada vez mais perto de entendê-la. De decifrar o que ela estava sentindo.

         — Eu sinto muito. — repetiu, não porque estava sem palavras, mas porque ele queria que ela soubesse que realmente sentia muito, embora não tivesse culpa alguma.

         Um sorriso triste e genuíno apareceu no rosto dela. Alissa apoiou sua cabeça no encosto do banco e então suspirou.

         — Ele também disse que sentia muito quando me abandonou. Quando abandonou eu e a minha mãe.

         Não era a primeira vez que ela abordava aquele assunto, já que tinha conversado com Marina sobre aquilo. Todavia aquela era a primeira vez que estava se colocando em uma posição vulnerável na frente de Calum. Se as barreiras ainda existiam então ela tinha as abaixado momentaneamente. Havia uma luta interna dentro da garota, sobre falar ou não falar sobre aquilo. Contudo, ela sabia muito bem o que fazer.

         — Você era criança?

         Ela negou com a cabeça, seus cachos brilhantes balançaram com aquele movimento.

         — Meu pai nos abandonou quando eu estava na pré-adolescência, na época em que eu morava em Brisbane. Então depois de várias discussões minha mãe me levou para o Brasil, nós ficamos lá até meu segundo ano do ensino médio. Minha mãe conheceu Phill e agora é muito mais feliz do que já sonhou em ser com aquele engomadinho. — a forma como ela falava do próprio pai seria engraçada se não fosse dolorosa também. Aquilo fez Calum perceber que Alissa não tinha exatamente um lugar. Por um lado havia seu pai que tinha abandonado a família antiga para casar-se com outra mulher, e de outro lado havia Alessandra que tinha encontrado a felicidade em outro homem. Seus pais tinham seguido caminhos diferentes e ela estava no meio, como que numa bifurcação.

         Ter aquele conhecimento fez com que ele pudesse reconhecer o que ele havia notado em Alissa todo aquele tempo, a solidão. Alissa tinha medo de ficar sozinha.

         — E mesmo assim você voltou para Sydney. — disse surpreso.

         A garota deu um sorriso de canto.

         — Minha mãe recebeu uma proposta de trabalho temporária aqui, e bem, eu sempre sonhei em fazer faculdade fora do Brasil então apenas aceitei. Uns tempos atrás ela teve de voltar e, eu fiquei.

         — Eu fico feliz que você tenha ficado, caso contrário nunca teria te conhecido. — Calum ofereceu um sorriso carinhoso para Alissa. Sorriso este que conseguiu despertar alguma reação nela. Por fim, Alissa se inclinou na direção dele, passando seus braços finos ao redor da cintura do rapaz e aconchegando sua cabeça no peito dele. — Aqui é um porto seguro Alissa, você não precisa mentir e muito menos esconder. Você pode dizer o que te machuca para mim.

         Ela ficou mais alguns momentos em silêncio, e quando falou novamente, sua voz estava falhando e os olhos marejando.

“Aqui é um porto seguro” isso é algo que seu terapeuta tinha lhe dito na primeira sessão, e também era algo que ela tinha aprendido na faculdade. A clínica deve ser um porto seguro para qualquer pessoa que ali entre, não deve haver julgamentos, deve ser um lugar de livre expressão. Como ela poderia fornecer um porto seguro a alguém se não permitia que outro alguém fosse seu porto seguro?

         — Ah Calum, há tanta coisa...

 

 

 

 

         O apartamento de Calum já não era mais tão estranho aos seus olhos. Alissa tinha estado ali várias vezes nos últimos dois meses que simplesmente tinha se habituado aquele local, contudo naquela vez em especial algo peludo resolveu receber ela e o garoto na porta.

         — Surpresa. — Hood disse com um sorriso divertido no rosto.

         Alissa abriu a boca surpresa então olhou para o cachorrinho cheirando seu pé e acabou dando risada.

         — Meu Deus, você é a coisinha mais linda desse mundo. — disse pegando o animal no colo com delicadeza. Suas mãos faziam carinho na pelugem enquanto ria da empolgação do cachorro — Qual é o nome?

         — O nome dele é Duke, e ele é nosso.

         Os olhares de Alissa e de Calum se encontraram, a garota se sentiu abalada com o tanto de carinho que apenas um olhar dele poderia transmitir para ela. Seu rosto corou momentaneamente e então ela inclinou a cabeça.

         — Eu não esperava ser mãe tão cedo. — disse brincando.

         Os olhos de Calum brilharam com malícia, ele parecia ter uma serie de respostas com segundas intenções na ponta da língua, mas naquele momento deixaria para sussurrar mais tarde no ouvido dela.

         Antes que ele pudesse responder, Duke deu uma latida, lambendo o braço de Hood.

         — Acredite, eu também não esperava. — ele piscou.

 


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