Dick praticamente pulou pelos degraus da escada, subiu de dois em dois – por vezes, até de três em três.

Havia chego há pouco mais de um minuto, tempo suficiente para ver Bruce Wayne com os cotovelos apoiados na mesa, com olhar baixo, enquanto Alfred arrumava a cozinha. Aquilo só significava uma coisa: ele falou o que não deveria. Na pior das hipóteses, falou o que não deveria com Damian.

Sendo assim, Richard invadiu o quarto do irmão mais novo sem saber ao certo se havia arrombado a porta ou simplesmente usado a maçaneta. Ele só se aquietou quando viu o pequeno rapaz estirado na cama, tranquilo, enquanto Jason estava sentado recostado na cabeceira lendo em voz alta:

— Quando ela voltou para onde estava o Gato de Cheshire, surpreendeu-se com a multidão ao seu redor: havia uma discussão entre o carrasco, o Rei e a Rainha, todos falando ao mesmo tempo, enquanto o resto permanecia em silêncio, parecendo bastante constrangidos — E, sem mudar a voz amena que estava usando na leitura, Todd olhou para Dick e disse: — Quase tão constrangidos quanto eu estou agora, lendo um livro infantil enquanto sou julgado em silêncio...

— Isso não parece fazer parte da história... — Damian comentou, bocejando logo em seguida.

— É porque não é, Dami — Barbara disse risonha, sem tirar os olhos dos desenhos que estava analisando – ela estava sentada no tapete perto da cama. — Quer se sentar e ouvir também, Dick?

— Não, não eu só vim até aqui porque...

Richard não sabia ao certo o que dizer. Presumiu que Bruce havia brigado com Damian, que o pequeno estaria assustado e sozinho, que Jason ainda estava dormindo sem se preocupar com problemas envolvendo a “criança” da casa. Jamais passaria pela sua cabeça que ele estava cuidando de Damian junto à Barbara e... Tim?

— Porque viu o Bruce emburrado na cozinha — Timothy resmungou, também estava com cara de poucos amigos. Ele era o único mais afastado, sentado na poltrona enquanto mexia no notebook.

— ... É melhor eu ir ver se o Sr. Pennyworth quer ajuda ou...

— Nem pensar, pirralho! — Todd passou uma das mãos no cabelo do irmão caçula — Você fica aqui, sem se meter nas coisas de gente grande.

— Mas eu já bato nos ombros do Timothy...! — Damian disse manhoso, ainda com esperanças de que pudesse fazer algo pelo pai.

— Em compensação bate na cintura de todo mundo! — o segundo mais novo retrucou, fechando a cara ainda mais.

— Não liga não, Dami... Eu já fui mais baixo que o Dick e que a Barbara também.

— Mesmo? — o pequeno encarou o “irmão preferido” com os olhos brilhando — Acha que um dia eu vou ser alto também? Tipo... mais alto que você?

— Vai até alcançar o pote secreto de biscoitos sem precisar de uma cadeira como certos baixinhos!

— Cala a boca, Jason! — Drake exigiu. Estava irritado e com o rosto completamente vermelho, se denunciando.

— Ei, vocês dois! Chega de brigas por hoje! — Babs os repreendeu — Dick, vai ficar aí da porta ou vai querer ouvir Alice no País das Maravilhas também?

— Eu... claro, claro que quero ouvir! — Sorriu e se sentou ao lado dela, também queria ver os desenhos do irmãozinho.

Jason pigarreou, bagunçou novamente os cabelos do irmão mais novo e continuou a leitura, tentando burlar o constrangimento que sentia ao ler para tantos ouvintes:

— No momento em que Alice apareceu, foi chamada pelos três para decidir a questão. Eles repetiram seus argumentos, mas, como todos falavam ao mesmo tempo, ela achou muito difícil entender exatamente o que diziam — A voz se mantinha em um tom calmo, provavelmente por efeitos do calmante. — O carrasco argumentava que não se pode cortar uma cabeça ao menos que ela não esteja presa a um corpo. Que ele nunca fizera uma coisa dessas na vida e não seria desta vez que ele começaria.

Damian estava visivelmente ansioso. O amor que tinha por animais o fez gostar instantaneamente do Gato de Cheshire, fazendo-o ficar apreensivo só de imaginar seu personagem preferido daquela história sendo decapitado. Diferente dos outros livros que pegava para ler antes de dormir, este em específico ele não conseguia se lembrar do enredo, não sabia se o Gato teria um final trágico.

— O Rei argumentava que qualquer coisa que tivesse cabeça poderia ser decapitada, e que aquela conversa era besteira — Jason continuou. Torturava Damian mantendo a leitura tranquila e demorada: — A Rainha argumentava que, se alguma coisa não fosse feita rapidamente, ela iria mandar executar todo mundo em volta — Bocejou — Foi isso que fez todo mundo ficar ansioso, que nem você, Dami...

— Jay...! — o pequeno resmungou dengoso.

Diferente do mais jovem daquele quarto, ansioso pela continuação da leitura, Barbara e Richard estavam preocupados – apesar de disfarçarem. Os desenhos de Damian sempre tiveram um toque mórbido, monstruoso, mas aqueles retratos de pesadelo ultrapassavam qualquer expectativa.

Criaturas desfiguradas, decepadas, mortas;

Cenários assustadores, mais até do que as cenas dos crimes bárbaros de Gotham;

Batman, presente em quase todos os desenhos, parecia um monstro assassino.

Era quase impossível imaginar que aquela criança doce que Damian era agora pudesse desenhar coisas desse tipo. O “quase” se deve ao fato de que tudo aquilo não passavam de memórias antigas, mais assustadoras, mas ainda assim lembranças do que ele já viveu.

— Alice não encontrou nada melhor para dizer que “Ele pertence à Duquesa: seria melhor perguntar para ela sobre isso.” — novamente, Jason bocejou — “Ela está na prisão”, a Rainha disse ao carrasco. “Vá buscá-la.” E o carrasco saiu disparado como uma flecha... — Ele se ajeitou melhor na cama, ficando deitado ao lado do irmão mais novo. Damian mal se aguentava de curiosidade enquanto Jason, cansado, tentava manter os olhos abertos e continuar a leitura.

Antes que o rebelde pudesse terminar o oitavo capítulo do livro – faltava apenas um parágrafo -, Bruce bateu suavemente na porta. Ela estava aberta, mas mesmo assim ele preferiu bater antes de entrar.

Os filhos o encararam com um sorriso convidativo, exceto por Tim. O segundo mais novo fechou o notebook e saiu do quarto sem nem mesmo olhar para o pai, ainda estava muito chateado com tudo.

— Eu vou ir atrás dele... — Dick avisou enquanto se levantava, mas Barbara o puxou pela mão para que se sentasse mais uma vez.

— Ele precisa de um tempo sozinho — o Wayne mais velho justificou, finalmente entrando no quarto. Com isso, os filhos continuaram à analisar os desenhos enquanto Jason retomava a leitura, se controlando da melhor forma que podia para não fechar os olhos e se entregar ao sono:

— “Eu concordo com você”, disse a Duquesa, “e a moral disso é...‘Seja o que você parece ser’ ou, se você prefere colocar isso de um jeito mais simples, ‘Nunca se imagine diferente do que deveria parecer para os outros o que você fosse ou poderia ter sido não seja diferente do que você tendo sido poderia ter parecido para eles ser diferente’.”

— Jay, você não disse o que aconteceu com o Cheshire! — Damian resmungou.

— Alice no País das Maravilhas — Bruce constatou com um pequeno sorriso brotando nos lábios — Não acredito que esse livro ainda existe... — Observou atentamente a capa, era um dos que tinha em posse desde criança — Me permite, Jason? — perguntou estendendo a mão para pegar o livro, afinal, era nítido a incapacidade do filho de continuar.

— Faz o que quiser, velhote... Só lembra de mostrar as figuras pro Dami — O rebelde entregou o livro à ele.

O mais velho manteve o sorriso discreto. Empurrou a poltrona e a colocou ao lado da cama para que ficasse mais perto dos filhos e então se sentou. Com um ar calmo e amável, ele continuou a leitura de onde Jason havia parado, no final do capítulo:

— A cabeça do Gato começou a desaparecer bem no momento em que ele se foi e na hora que o carrasco voltou com a Duquesa já tinha sumido totalmente. — Observou o filho mais novo, os olhos verdes brilhavam — O Rei e o carrasco começaram a procurá-lo desesperadamente por todo lado, enquanto o restante do grupo voltou ao jogo.

Até mesmo Dick e Barbara pararam o que estavam fazendo para ouvir a história. Pareciam crianças, talvez até mesmo mais do que Damian...

— Agora o nono capítulo — Bruce comunicou — “Você não pode imaginar como eu estou feliz em vê-la novamente, minha queridinha”, disse a Duquesa, tocando afetuosamente o braço de Alice, passando a caminhar junto com ela — Mostrou a figura retratando as duas personagens para os filhos, todos eles.

— ... Damian, você deveria refazer essas ilustrações, elas são tão feias! — Jason murmurou. Estava lutando contra o sono para poder ouvir a história também.