Poeta anônimo escrita por Artemísia Jackson


Capítulo 9
Recomeços




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/789990/chapter/9

Nedzu encarava a expressão de cachorro pidão de Toshinori com certa curiosidade, já que Nemuri o acompanhava. Atrás deles, Aizawa observava da porta, o semblante de exasperação denunciando seu desgosto ante a qualquer que fosse o motivo de estarem ali. 

 

— Pois não, Yagi, Nemuri? — finalmente o diretor se pronunciou, dando permissão para que os professores falassem. 

 

— Nós temos um pedido para fazer, Nedzu — iniciou Toshinori. 

 

— Mas antes, temos uma pergunta: você já sabe como vai realizar a divisão dos dormitórios? — Nemuri se intrometeu. 

 

— Pretendia dividir todos de todas as turmas pela ordem alfabética, como é de praxe nessas situações — comentou Nedzu. — Por acaso você tem sugestões?

 

A pergunta foi feita em tom casual, mas o cruzar das patas para apoiar o queixo indicava que o diretor os estava avaliando,  prestando atenção em cada ato, cada fala. 

 

— Nós queríamos separá-los de acordo com o que seria melhor para eles e para o sucesso do dormitório em geral — explicou Yagi, empolgado. 

 

— Eles querem facilitar a vida dos pirralhos problemáticos como se fossem filhos deles, deixando eles pertos daqueles que gostam — acusou Aizawa, parecendo indignado com a ideia. 

 

Nedzu passeou o olhar pelos professores na sala e ergueu as sobrancelhas, surpreso com a situação. 

 

— Ora, mas isso não ia dificultar o trabalho de vocês? — questionou o diretor. 

 

— O meu trabalho, principalmente, já que eu fiquei responsável por cuidar dessas crianças problemáticas — Aizawa protestou novamente. 

 

— Na verdade, vai facilitar nosso trabalho, Nedzu — começou Nemuri, ignorando o colega rabugento deliberadamente. —  Nós percebemos que eles trabalham melhor quando juntos com pessoas específicas, alguns deles só conseguem se acalmar em situações particularmente difíceis com a presença de alguém específico. Um exemplo disso foi o episódio do sequestro de Kirishima: Uraraka acalmou Midoriya e Bakugou. 

 

— Mas eles fugiram juntos pra tentar resolver por eles, poderiam ter estragado tudo — objetou o diretor quase que imediatamente. 

 

— São adolescentes, eles costumam fazer isso. Mas se não fossem todos, Bakugou Shonen teria ido sozinho, o que seria pior — retrucou Toshinori, de forma rápida demais para parecer tranquila. 

 

— Não acha que eles ficam mais encorajados quando estão em bando? — Nedzu rodava na cadeira de rodinhas agora, o que indicava que ele provavelmente já estava tomando a decisão final. 

 

— Não, eu conheço meus alunos — dessa vez foi Nemuri quem respondeu. — Eles são mais idiotas sozinhos do que juntos, acredite. Não faz sentido, e é isso que mais intriga a todos nós: essa turma não faz nenhum sentido. 

 

— Certo então… Aizawa, você discorda da afirmação de sua colega? — o diretor voltou-se para Aizawa, que ainda estava na porta. 

 

— Não — confessou ele, sabendo que a guerra estava perdida: eram três loucos contra ele! 

 

— Certo então, permito que vocês façam a divisão. Porém, peço que convençam os outros professores a deixarem que isso seja feito nas outras classes onde eles coordenam, para que não seja injusto — acrescentou Nedzu antes de finalmente fazer um gesto de dispensa com a pata. 

 

— Muito obrigado, diretor, e pode deixar que falaremos com eles — agradeceu Toshinori, se abaixando numa exagerada reverência. 

 

Nemuri e Aizawa fizeram o mesmo antes de saírem da sala, a primeira com um sorriso triunfante no rosto, enquanto o último mantinha uma carranca emburrada. 

 

— Vamos, não seja tão rabugento, Zawa! — provocou ela, sorrindo enquanto o acotovelava levemente. 

 

— Claro, eu deveria estar sorrindo enqanto vocês planejam meu inferno, não é mesmo? — ironizou Aizawa, cruzando os braços em indignação. 

 

— Você está parecendo uma criança. Diria até que parece o Bakugou Shonen, Shouta — zombou Yagi, sem conter um risinho de escárnio

 

— Eu não vou argumentar todas as problemáticas desse plano com um loiro idiota como você, Toshinori — retrucou o professor, rápido como o bote de uma cobra e ácido como um limão. 

 

Nemuri e Yagi apenas gargalharam e seguiram firme no caminho até a sala dos professores, sem tirar o sorriso do rosto. Aizawa não tinha muita escolha a não ser segui-los: como coordenador da turma 1°A, ele iria acompanhar cada passo daquela ideia maluca e se certificar de que seu inferno fosse um pouco mais suave. 

 

Assim que chegaram na sala, os três se dirigiram até a parte da mesa retangular que estava mais vazia, sentando-se um do lado do outro para planejar logo em seguida. Nemuri tratou de surrupiar uma garrafa térmica de café no processo, furtando-a do centro da mesa, sorrateira como um gato.  

 

— Não devíamos avisar aos outros professore sobre a permissão de Nedzu antes? — indagou Yagi, encarando o semblante despreocupado da colega enquanto ela se servia de uma dose de café num copo descartável surrupiado junto com a garrafa. 

 

— Nah, esses vermes podem esperar. Vamos agilizar nosso trabalho pra observar eles se descabelando depois — replicou a mulher, bebericando da bebida com um sorriso diabólico no rosto. — Então, comecemos. Sugiro que o melhor seja separar primeiro as pestes que não devem ficar juntas em hipótese alguma, como, por exemplo, Kaminari e Mineta. 

 

— Bakugou e Midoriya — disse Aizawa prontamente, surpreendendo os colegas. 

 

— Achei que não ia se envolver — caçoou Nemuri, erguendo as sobrancelhas em deboche

 

— Bom, eu não vou só assistir vocês criando meu inferno sem nem opinar — rezingou o professor mais relutante da operação. 

 

— Me senti como se estivéssemos no Olimpo separando o Submundo pra Hades agora — brincou Yagi, gargalhando baixo. 

 

— É quase isso — concordou Nemuri. — Mas mantenham o foco nas pestes, por favor. 

 

Os três professores continuaram discutindo e fazendo sugestões, organizando a lista que designava cada aluno para o dormitório correto. Passaram a tarde toda naquela tarefa, rindo, brigando e tomando café compulsivamente. Os alunos do 1°A não faziam ideia, mas aquele trio de ouro seria responsável pela formação da futura  maior e mais unida família do mundo dos heróis. 

 

—________

A semana que se seguiu ao sequestro de Kirishima foi caótica. A UA enfrentou a fúria de muitos pais, o oportunismo sádico das mídias, a insegurança dos próprios alunos e o sentimento de culpa que vinha  dos professores. 

 

Para Shoto foi ainda mais difícil, embora ele mesmo não pensasse desse modo. Estava tão acostumado com os maus tratos de Enji que apenas suportou calado os treinos excessivos e exaustivos, os gritos, acessos de fúria e ofensas que lhe eram lançados sem descanso. Uma parte sua estava de saco cheio, ainda que Shoto mal pudesse reconhecer tal sentimento, mas a outra — a que sempre falava mais alto e sufocava reclamações —  já tinha se acostumado. 

 

Porém, a fúria de Fuyumi lhe era desconhecida, já que a irmã sempre se mantinha calma para não piorar as coisas. Naqueles dias, no entanto, a garota se rebelou, interrompendo os treinos aos berros, brigando com o pai e o enfrentando. E mesmo que não entendesse muito o motivo daquilo, Shoto precisou admitir para si próprio que amou ver a cara enorme de Enji púrpura e ardendo em fúria. 

 

Naquela manhã, Todoroki já estava se preparando para treinar com o pai mais tarde — assim que ele chegasse em casa —, aquecendo os músculos, quando a campainha tocou e Nedzu e All Might se revelaram diante da porta aberta. 

 

— Olá, Shonen! — A voz alegre e alta do herói número um ecoou pelos seus ouvidos. 

 

Fuyumi saiu praticamente correndo da cozinha, parando na porta para recebê-los e convidá-los para entrar — coisa que Shoto não foi rápido o suficiente para fazer, ocupado demais estava em manter sua típica cara de paisagem para as visitas inesperadas. Sua irmã os guiou até a sala e o caçula a seguiu, todos sentando-se nas almofadas dispostas ao redor da mesa de centro. 

 

— A que devo a honra da visita? — Começou Fuyumi, o olhar curioso vagando do herói número um até o diretor da escola do irmão. 

 

— Bom, imagino que tenha visto e ouvido falar sobre o último incidente na UA, que é o motivo da suspensão temporária das atividades, aliás — Nedzu a encarou com seus olhinhos pequenos, as patas apoiando o queixo. 

 

— Claro que ouvi, não se fala de outra coisa — respondeu a garota, mal conseguindo conter o tom de obviedade na voz. 

 

— Pois bem, andamos refletindo muito sobre isso nessa última semana, e pela preocupação que nutrimos pelos nossos alunos, decidimos redobrar a segurança. Como você sabe, o incidente ocorreu fora da escola, o que sugere que se os alunos não precisassem se deslocar até ela, os riscos não existiriam como existem agora — Nedzu explicou calmamente, avaliando seu aluno e a irmã dele. 

 

— Como assim? — Shoto enfim se pronunciou, pela primeira vez desde que suas visitas tinham chegado.

 

— É como um internato, Shonen — simplificou All Might, dando um daqueles sorrisos brilhantes. 

 

Shoto arregalou os olhos, sentindo algo reacender dentro de si. Para muitos, a ideia de morar na escola soaria como algo horrendo, mas ele apenas conseguiu pensar em como poderia se livrar da presença de Enji. Sua parte rebelde que não podia se acostumar pareceu ganhar força e voz dentro de sua cabeça, e ele sorriu pequeno — para ele, aquilo era um sorriso como o do herói número um.

 

Fuyumi não deixou nenhuma reação do caçula passar, e quando observou aquela expressão rara — de contentamento, alívio, esperança e felicidade —, soube o que tinha que fazer. Ela voltou seus olhos para All Might e Nedzu, mais séria e decidida do que jamais fora.   

 

— Eu vou ser sincera: tenho medo, estou insegura com relação a UA e até cogitei tirar Shoto de lá — ela ignorou deliberadamente o arregalar de olhos do irmão. — Mas confio em vocês, apesar de tudo. Sei como você pode ser capaz e inteligente, diretor, e não tenho muito o que temer se o Símbolo da Paz estará lá. Por mim, desde que Shoto se sinta bem, está tudo certo. 

 

— Mas e sobre En- — começou All Might, olhando ao redor, como se esperasse que o herói número dois saltasse do nada para esbravejar sobre sua opinião não ter sido consultada.  

 

— Meu pai não tem nada a ver com a vida dos filhos — cortou ela, sem rodeios. — Ele não cuida de nada que não seja o lugar sagrado no ranking, e espera que Shoto seja o número um, então não haverá objeções por parte dele. 

 

Nedzu e All Might se encararam, entendendo bem o que se passava na família Todoroki. O herói número um sorriu de forma reconfortante e voltou seus olhos para Shoto. 

 

— Só falta você dizer se aceita os novos termos do colégio, Shonen.

 

— Claro que sim, darei o meu melhor para não causar problemas e me adaptar bem ao novo sistema — tagarelou Shoto enquanto se levantava e fazia uma reverência, assustando os demais com tal comportamento atípico. 

 

Todoroki voltou para o quarto feliz e leve depois que as visitas foram embora. Ainda tinha treino com o pai naquele dia, mas não se importou com isso, consolando-se com o fato de que aquele seria um dos últimos treinos. 

 

Finalmente, ele estaria livre de Enji. 

 

—________

 

— Não precisa chorar, mamãe — resmungou Izuku, sufocado pelo abraço de Inko. 

 

— Não tô chorando, eu tava cortando cebola — retrucou a mulher, fungando alto como a péssima atriz que ela era. 

 

— Sério, mãe, eu preciso ir, vou me atrasar pra escola — tornou a resmungar o garoto, se esforçando para poder se desvencilhar de sua querida matriarca.

 

Depois de se retorcer como um gato por alguns minutos, Izuku escorregou do aperto e recuou alguns passos, temendo ser capturado de novo. Ele amava Inko, claro que amava, mas seu amor não o tornava imune aos riscos que os abraços sufocantes dela ofereciam. 

 

— Promete que vai tomar cuidado, filhote? — indagou ela, a voz ainda embargada pela emoção, as mãos se ocupando com a barra do avental para não apertá-lo novamente. 

 

— Prometo, mamãe, não precisa se preocupar, All Might cuidará de nós — a menção ao herói número um era a única coisa que acalmava sua mãe, então ele fez uso disso. 

 

Demorou um bom tempo até que Inko o liberasse, depois de arrancar todas as promessas possíveis relacionadas a comportamento, alimentação, estudos e, principalmente, cuidados para não se pôr em riscos desnecessários. Embora tenha prometido se cuidar em todos os tópicos, Izuku não podia mesmo ter certeza quanto ao último, mas não custaria nada ao menos tentar. 

 

Ele sorriu enquanto se encaminhava para o carro preto que tinha vindo da UA especialmente para lhe buscar — todos os alunos receberiam um assim nas portas de casa, já que o caminho a pé para a escola tinha se mostrado perigoso. Dentro, um oficial de polícia que Izuku não conhecia dirigia, e no banco de trás All Might o esperava sorrindo. 

 

— Oh, você vai fazer minha escolta? — indagou Izuku, se jogando no banco de trás enquanto abria um enorme sorriso. 

 

— Claro, foi o que prometi para sua mãe: que cuidaria de você, Shonen Midoriya — exclamou o herói, erguendo o polegar em um sinal positivo. 

 

Os olhos de Izuku brilharam, e ele se lembrou da noite anterior, quando All Might havia chego para informar sobre os novos termos da UA. Por um segundo agonizante, sua mãe tinha dito que não, que seu filho não voltaria para o colégio. Mas então o herói número um se ajoelhou em seu tapete na sala de estar, se desculpando e prometendo cuidar dele e dos outros. E Inko acreditou, porque é isso que o Símbolo da Paz representa: esperança. E é isso que Izuku quer representar um dia. 

 

— Por que eu? — indagou de repente, tirando All Might de seus devaneios sobre o tempo e sobre as novas mudanças da UA. — Por que você sempre me escolhe, quando tem tantos melhores por aí? 

 

Aquela pergunta tinha como base os vários ocorridos entre eles, desde o poder que lhe fora dado até a visita no dia anterior e a escolta naquele momento, e o herói entendeu. 

 

— Porque você me dá esperança, Shonen — respondeu All Might, com um daqueles seus sorrisos de iluminar o mundo. — Quando eu te vejo, vejo a esperança de um mundo melhor, esperança na tal da meritocracia, na qual eu já tinha perdido a fé. Quando eu te olho, eu vejo que você está aqui graças ao seu esforço, ao seu mérito, e vejo em você o potencial de símbolo da esperança, da bondade.

"Vai além da paz, porque a paz sequer existe, mas, mais importante que ela, é a fé de que um dia ela possa existir, e você tem essa fé, Midoriya."

 

Izuku sentiu os olhos cheios de lágrimas, e lamentou não ter trazido nenhuma cebola para fingir como sua mãe. Ele abriu um sorriso tão grande quanto o do seu herói favorito e o abraçou, causando uma sucessão de exclamações surpresas e envergonhadas. 

 

Ainda sorrindo, o adolescente se voltou para o horizonte que se revelava infinito lá fora e gargalhou. Ele era a esperança, ele e todos seus amigos e futuros heróis e heroínas, como Katsuki, Ochako, Lida, Mina, Shoto…

 

Izuku encarou os prédios da UA se aproximando e enfim se deu conta de algo muito importante: Shoto estaria lá, certo? A menos que seu pai o tivesse proibido, coisa que era improvável se o herói número dois tinha recomendado o filho por conta própria. Então ele finalmente estaria perto de Shoto por mais tempo do que poderia ter sonhado — exceto pelos sonhos em que eles se casavam, mas isso não vinha ao caso —, e o amigo finalmente estaria longe das influências e abusos do pai.

 

Praticamente saltitando para fora do carro quando este parou no território da UA, Izuku sorriu ainda mais, a ponto de sentir os músculos faciais doerem, pousando as mãos no quadris para avaliar as mudanças fantásticas que ocorreram em tão pouco tempo, formando a construção de um segundo prédio notoriamente domiciliar, possuindo jardins no entorno e um hall de entrada aconchegante, com escadas ladeadas por vários postes de luz bonitos. 

 

Marchando para dentro dos territórios do Heights Alliance — nome de seu novo lar —, Izuku abriu a porta corredora com cuidado, notando cada detalhe com uma clareza desconcertante. E ali, adentrando o novo condomínio do UA, o jovem percebeu que havia esperança, a chance de um novo recomeço. 

 

E ele recomeçaria, sempre caminhando rumo ao seu sonho e objetivo. E, claro, sempre caminhando também rumo a uma adorável proximidade com Shoto. Eles recomeçariam juntos, dois faróis de esperança em meio àquele mundo de tanta escuridão. 

 

—_______ 

 

Uraraka estava parada, encostada numa daquelas colunas gregas — que ficavam de frente para o hall de entrada do Heights Alliance —, observando de braços cruzados a comoção ao redor da lista que fora colada numa das paredes externas do prédio, sorrindo consigo mesma ao captar as emoções de cada aluno ao descobrir quem estaria mais próximo nos dormitórios.

 

 A melhor delas era de longe a de Mineta, que se descabelava ante ao fato de não haver uma garota sequer no terceiro andar, no qual ele estava alocado.

 

— Isso é uma injustiça! Se fosse por ordem alfabética, isso não aconteceria! — esbravejava o garoto, batendo o pé no chão. 

 

— Isso é uma sensatez, se você não fosse um tarado invasivo esse tipo de medida nem seria necessária — rebateu Momo, e Ochako percebeu naquele momento que a amiga nunca sentia frio porque estava sempre coberta de razão. 

 

— Não tem nada a ver, o Pikachu é assim também e ninguém liga, ele pôde ficar num andar que tivesse garotas. Isso é só bullying comigo — continuou Mineta, choramingando. 

 

— Denki não é assim coisa nenhuma, ele só está sendo influenciado por você, seu nanico pervertido — intrometeu-se Mina, bem humorada como sempre, andando até Kaminari para envolvê-lo pelos ombros de forma protetora.

 

— É verdade, eu sou uma vítima — Denki assentiu de forma solene, recostando-se na amiga que o abraçava. 

 

— Não, na verdade você é um grande idiota, Kaminari, e toda vez que vê uma onda de idiotice, você resolve surfar nela — retrucou Jirou, encarando-o numa expressão severa e exasperada ao mesmo tempo. 

 

— Poxa, Kyo, você é sempre tão má comigo… — lamentou-se Denki, cabisbaixo. 

 

— E você gosta — expôs Hagakure. — Garotos gostam de ser tratados mal, não é, Tsuyu? 

 

— Me deixem fora disso — murmurou Asui, encolhendo os ombros enquanto se afastava um pouco do tumulto. 

 

— Kyo? Que liberdade é essa? — Jirou reclamou, um pouco atrasada demais para que fosse creditada. 

 

— Vocês já não viram em quais dormitórios estão alocados? Vão ficar encarando a lista até quando? Vamos fazer algo interessante — Ochako enfim se pronunciou, afastando-se da coluna para adentrar o meio da roda. 

 

— Tipo o que, cara de lua? — rezingou Katsuki, que não enganava ninguém com sua marra: todo mundo vira seu contentamento ao descobrir que o quarto era ao lado do de Eijirou. 

 

— Visitar os quartos, óbvio! Quero ver que podridões vocês escondem com vocês — exclamou ela, batendo palmas de forma animada. 

 

— Eu sou minimalista — adiantou-se Shoji, na defensiva. 

 

— Seu psicopata! — apontou Mineta, de forma acusadora. 

 

— Psicopatas geralmente guardam coisas que lembram algo, provavelmente dos crimes que cometeram. Minimalismo está longe de ser sinal de psicopatia — palestrou Momo, intelectual como sempre. 

 

— Eu não vou entrar no quarto do Mineta, aposto que fede — declarou Mina, sem um pingo de piedade. 

 

— Eu não quero nem imaginar a quê fede… — murmurou Ochako em resposta, fazendo uma careta de nojo. 

 

— Parem de falar essas coisas, são constrangedoras! — choramingou um vermelhíssimo Midoriya, depois de muito tempo de silêncio (Ochako apostava que era uma tática para disfarçar a alegria de estar no mesmo corredor que Shoto). 

 

— Não vi nada demais — refletiu Todoroki, com a mão no queixo em uma posição reflexiva. —  A não ser a afirmação de que o quarto do Mineta fede, mas eu não entendi bem porque federia se ele não é fedido…

 

— Muito obrigado, Todoroki, você é um bom amigo — agradeceu Minoru, ainda que o tom de sua voz fosse sombrio. 

 

— Shotinho sempre tão lerdo, combina com o Deku — comentou Mina, alheia a comoção que sua fala causou em Izuku, cuja face ficou tão vermelha que ele parecia estar fazendo cosplay de tomate. 

 

Rindo, Ochako marchou em direção aos amigos, empurrando-os para dentro do prédio de forma apressada. 

 

— Vamos logo, seus molengas, quero descobrir a que fede o quarto de vocês, já que vocês não fedem. 

 

Protestos foram ouvidos por toda a parte e várias objeções à proposta foram feitas por alguns alunos — especialmente Fumigake e Katsuki, ambos alegando que aquilo era uma perda de tempo. Apesar disso, no fim todos acabaram participando da competição de "Best Taste", porque ninguém podia contra uma Ochako determinada, principalmente quando ela possuía o apoio de todo o lado feminino. O quarto vencedor havia sido o de Rikido, embora isso não tivesse a ver com o cômodo em si, mas sim com o cheiro de doce que exalava e com o bolo delicioso que fora oferecido. 

 

Ao fim da brincadeira, todos se sentiam mais familiarizados com o Heights Alliance e com a ideia de viverem juntos. Poucos haviam percebido, mas o objetivo de Ochako ao sugerir aquela brincadeira tinha sido atingido com sucesso: dar o primeiro passo na solidificação da família que eles, os alunos do 1°A, se tornariam ao longo dos anos seguintes. 

 

—______



Shoto até imaginou que seria diferente do que estava habituado, mas tão encantado estava com a possibilidade de se livrar do pai que não considerou o quão barulhento seu novo lar poderia ser. Nos jardins lá fora, os alunos da UA se amontoavam numa festa ao fim da tarde, numa pequena comemoração ao fato de estarem todos juntos, seguros e ainda firmes e fortes caminhando de encontro aos seus sonhos. 

 

Haviam gasto toda a manhã num tour pelo local, memorizando os quartos em que dormiriam, organizando malas e dando um toque especial ao novo lar. E quando a ideia de festa fora proposta por Uraraka, Shoto tentara fugir, mas ela e Midoriya se utilizaram de métodos diabólicos para arrastá-lo até lá, ameaçando invadir seu dormitório de madrugada para tirar fotos suas enquanto dormia — e embora  Todoroki tenha se sentido ameaçado por dois cupcakes, optou por não subestimá-los. 

 

E ali estava ele, parado na sala de estar com sua tradicional cara de paisagem, observando seus amigos interagirem de forma animada pelo vidro transparente que formava a porta de correr do local. Shoto tentou não morrer engasgado com suas risadas quando Bakugou — aparentemente embriagado com suco de laranja — tentou atravessar a porta fechada, dando de cara com ela e criando um estrondo que só não foi mais alto que os berros do adolescente descontrolado.

 

Observando o desenrolar da situação — Kirishima e Uraraka segurando Bakugou para impedir que ele matasse a porta de vidro —, Todoroki pensou que talvez não tivesse sido tão ruim ter abdicado de sua querida cama para uma tentativa de socialização. Distraído, ele enfiou as mãos nos bolsos da bermuda, encontrando o post it com a última poesia recebida. 

 

Embora se achasse patético por isso, o garoto meio que tinha adotado o papel como seu amuleto da sorte, para o qual sempre acabava recorrendo em momentos aleatórios e totalmente inadequados — como naquele, onde ele deveria estar rindo e fazendo piadas sobre o ridículo da situação com Uraraka, que ele mal notou entrar graças a sua fixação pelo post it amassado que segurava. 

 

Shoto só se deu conta de seu descuido quando a colega de classe se jogou ao seu lado, afundando no sofá confortável. Ele até tentou esconder seu amuleto de forma discreta, mas sua tentativa foi tão falha que a garota mal conteve o risinho. 

 

— Carta de amor, hmm? Nosso Shotinho está crescendo — ela comentou para o nada, parecendo satisfeita. 

 

— Nosso? — Ele indagou, confuso, perdendo o foco da conversa. 

 

— É, ué, você é uma propriedade nossa, do 1°A, óbvio — explicou a jovem, como se conversasse com uma criança de cinco anos. 

 

— Eu não sabia disso, não sou propriedade de vocês — ele murmurou em resposta, o cenho franzido em confusão. 

 

— Ah, você é, se nem a Momo que é burguesa tá reclamando da nossa reivindicação, você que não vai reclamar — empertigou-se Uraraka, com um tom mandão na voz. — Somos uma comunidade e aqui e não temos espaço para propriedade privada, então você é nosso sim senhor!

 

— Ok — Shoto deu de ombros, conformando-se. Sabia reconhecer quando uma luta estava perdida, e era sempre muito difícil travar uma batalha contra uma garota e ganhar. Elas eram uma força na natureza que ele aprendeu desde cedo a não contrariar. 

 

— Ótimo. E então, já sabe quem anda lhe mandando cartas de amor? — indagou ela, o encarando com uma expressão aparentemente divertida.

 

— Não são cartas de amor, são… poesias motivacionais — Shoto grunhiu em resposta, parecendo envergonhado. — E não, eu não sei, esperava que você pudesse me contar algo sobre isso — acrescentou, voltando seus olhos esperançosos para a jovem. 

 

— Poesias motivacionais? Parece interessante… — ponderou Uraraka, a mão coçando o queixo em uma postura pensativa. — Eu não sei de nada, infelizmente. Você não tem nem uma pista? 

 

— Nenhuma — resmungou Todoroki, em tom quase lamurioso. — Como eu vou saber? A pessoa não deixa nenhuma pista! 

 

— Se você quer ser um bom herói, precisa aprender a lidar com esses mistérios, meu amigo — retorquiu Uraraka, a expressão repentinamente séria. — Os maiores segredos se encontram no olhar, sabia? Lá estão as respostas! Olhe nos olhos dos suspeitos, enxergue até as camadas mais ocultas e então você vai saber — dito isso, a garota se levantou e piscou um olho para ele, deixando-o sozinho para refletir acerca do enigma. 

 

"Olhar nos olhos? Eu vou ficar saindo por aí pedindo 'com licença, posso olhar nos seus olhos'? Como isso vai me ajudar? Por que as pessoas nunca são claras?" — balançando sua cabeça de forma frustrada e meio que resmungando, Shoto se levantou do sofá a caminho da cozinha. 

 

Iria atrás de mais suco de laranja, porque aquilo era algo concreto, gostoso e ele não precisava entender. Sim, definitivamente o suco de laranja era muito mais fácil, apenas o que ele precisava naquele momento. 

 

—_________

 

— Não consigo decidir se você está olhando as estrelas ou se elas estão olhando pra você — disse uma voz familiar, aquecendo seu peito de forma agradável. 

 

— Isso é um elogio? — Shoto indagou, voltando-se para as orbes verdes e reluzentes. 

 

— Era pra ser uma cantada — resmungou Midoriya, um bico adorável em seus lábios. Ao observar o franzir de cenho de Shoto, resolveu simplificar. — É um elogio, sim. 

 

— Nunca tinha ouvido nada parecido — ponderou Todoroki, pensativo. 

 

— Eu li em um livro — revelou Midoriya, sentando-se na grama ao lado do outro, abraçando os próprios joelhos. 

 

— E a pessoa do livro entendeu esse elogio? — Shoto indagou com uma curiosidade genuína. 

 

— Ah, o personagem não verbalizou esse elogio, guardou pra ele — Midoriya deu de ombros, voltando seus olhos para o céu estrelado.  

 

— Talvez porque ele sabia que a outra pessoa não ia entender — sugeriu, também dando de ombros ao voltar seus olhos para o céu. 

 

— Nah, não foi isso. Ele só não queria expor os sentimentos dele, não queria ser rejeitado nem nada — esclareceu Izuku, encarando sua companhia com o canto do olho. 

 

— Qual o livro? — questionou Shoto, sentindo uma necessidade inconsciente de sair daqueles assuntos perigosos. 

 

— Trono de Vidro, é uma saga. Super recomendo — os pés de Midoriya agora se arrastavam na grama, para frente e para trás, arrancando alguns tufos com tal movimento. 

 

— Um dia eu vou ler — prometeu Shoto, um sorriso leve em seu rosto. 

 

— Espero que sim, e espero que goste — Midoriya virou-se para encará-lo, e os olhos de ambos se encontraram. 

 

De novo, aquela sensação de estar perto de descobrir algo muito importante tomou conta de Shoto. A festinha dos colegas que ainda ocorria na sala — motivo que o fizera sair dali para se refugiar no jardim — tornou-se um borrão indistinto, os barulhos se tornaram ecos distantes no terreno amplo e inabitado de sua mente, aquele que ele tentara por vezes visitar para descobrir os próprios segredos, que nunca quiseram se revelar. 

 

Midoriya o encarava em igual intensidade, como que hipnotizado. Mas como sempre havia alguém para atrapalhar aqueles momentos, logo Bakugou apareceu para puxar ele para longe dos olhos heterocromáticos, alegando que precisava de ajuda para arrumar a bagunça que os outros "merdinhas" tinham feito. A conexão foi interrompida.

 

No entanto, já era tarde demais: as ligações dentro da mente de Shoto já tinham conectado os pontos e reconhecido aquela emoção estranha que o dominava quando estava perto de Midoriya, transformando-a em um sentimento. Todoroki lembrava de um vídeo que vira no YouTube, que dizia sobre como o ser humano pode manter emoções na parte inconsciente da mente por toda a vida, sem reconhecê-las. Dizia também que quando você reconhece uma emoção, ela se torna um sentimento, e que há uma separação desses dois tópicos porque cada um é dirigido por uma parte diferente do cérebro. 

 

Ali, naquela primeira noite em seu novo lar, naquela nova oportunidade de recomeço, Shoto enfim reconheceu aquela rede estranha de emoções que o acompanhava sempre que via aqueles olhos: ele finalmente percebeu que estava perdidamente apaixonado por Izuku Midoriya. 








Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Poeta anônimo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.