Coisas que Amo escrita por Laura Fernandes


Capítulo 3
Capítulo 2 - Alimentar o Ego


Notas iniciais do capítulo

Os mais falsos argumentos podem mostrar um ódio correto.

Karl Kraus



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— Simon, eu sei que você odeia qualquer interação humana, mas terá que fazer essas aulas de reforço e participar do projeto. Dois de seus colegas também participarão das aulas. – a coordenadora Olga explicava, enquanto Simon fixava seu olhar no aparador de sonhos próximo da janela.

A sala da coordenação era bizarra, ponderou Simon, olhando todos os cantos. Como detalhista que era, gostava de admirar o cômodo e ainda mais ignorar os olhos tensos e difíceis de Olga.

— Srta. Olga, me chamou apenas para falar disso? – ele perguntou.

Olga assentiu com a cabeça.

— Sim Simon, você não se preocupa se irá repetir de ano?

Para ele, nada mais importava. A escola, um bom emprego, uma boa vida. Por que tinha que perder seu tempo tentando sobreviver a aquilo? Tinha motivos suficientes para declarar aquilo como seu inferno pessoal, e odiava o colégio, as pessoas no colégio, e especialmente os professores que o obrigavam a pensar. Não que fosse burro ou esperto demais, só achava que não precisaria daquilo, não com o plano que tinha em mente.

Se ele se preocupava em repetir de ano? Não, ele não ligava.

— Honestamente, não dou a mínima. – respondeu.

Olga o observou com pesar. Tão jovem e tão obsoleto em sua própria tristeza.

— Se esforce nesse projeto Simon, se conseguir seguir em frente, prometo que nenhum professor irá te perturbar com notas e presenças.

Era uma proposta boa, ele pensou enquanto voltava a encarar Olga.

— O que eu preciso fazer?

— Compareça depois das aulas na biblioteca, lá você terá uma aula de reforço com Catarina Caputo.

Catarina Caputo, a garota do biscoito, que deixava todos os dias um pote de biscoito na porta de Simon. Ele pensou por um tempo que aquilo era um sinal de amistosidade, depois pensou que fosse pena, e por último, chegou à conclusão de que a garota fosse louca. Por que alguém em plena consciência faria biscoitos todos os dias e deixava na porta do vizinho? Ao menos, os biscoitos eram saborosos, ajudava no café da manhã, e ele não tinha que se preocupar em arrumar ovos mexidos para seu avô, que se contentava com pouco.

— Ok, vou tentar comparecer. – ele disse se levantando e deixando a sala da coordenação.

Assim que terminou a aula, Simon seguiu para a biblioteca, conforme tinha sido orientado por Olga. Cambaleou entre os corredores e seguiu para a sala, em que três pessoas o aguardavam.

Reconheceu Catarina, que estava sentada com o cabelo preso em um coque alto. As roupas sempre tão comportadas, o rosto suavemente avermelhado, o misto de garota agradável que ele evitava a todo custo.

As outras duas pessoas eram Apollo e Maria, os conhecia de vista, e assim como ele, nenhum dos dois tinham boas notas e créditos no colégio.

De todas as pessoas presentes, somente Catarina tinha a capacidade de entrar em uma boa universidade. O que uma garota tão esperta queria com eles, um bando de desajustado?

Ele se sentou a mesa, de frente para Maria e Apollo, que o observaram.

— Vão continuar me encarando ou o quê? – Simon disse.

Maria riu.

— Simon Reis, quem diria hein? Há três anos você era um gênio... – ela disse sorrindo.

O acidente de carro não foi o único fator para representar as angústias de Simon. Havia algo que o perturbava, mas o acidente foi o estopim para piorar sua situação.

— Maria, deixa ele em paz, ele é estranho... – Apollo sussurrou.

— Não adianta sussurrar, todos aqui podem ouvir. – Simon disse.

Para evitar uma provável briga, Catarina se levantou, batendo palmas e chamando a atenção de todos.

— Certo, chega de conversas paralelas. – ela sorriu. – Sou Catarina Caputo, e irei ajudá-los a passar de ano, é um projeto social que estou embarcando junto com o colégio.

Ela era insuportavelmente certa, para o gosto de Simon. A garota do biscoito se esforçava para ser perfeita. Tinha notas excelentes, ia todas as quartas-feiras ao culto da igreja, e sempre ajudava aqueles que precisavam. Não que ele a considerasse uma pessoa boa, mas suspeitava que era algo que ela fazia para se sentir bem consigo mesma.

Ele detestava profundamente pessoas que fossem falsas puritanas. Não era somente o jeito como falava e se portava, mas a falsa moralidade que ela transmitia, o incomodou. Não seria agradável, e muito menos se empenharia para que o projeto pudesse dar certo.

— Certo Catarina... Só topei entrar porque preciso passar de ano, e Apollo também, nós sabemos que ele não é um gênio, e eu, sinceramente acho que também não sou. – Maria comentou.

Apollo tinha problema de aprendizado, e sempre estava grudado com Maria. Ambos tinham certa conexão que ninguém entendia, mas Catarina se dava por satisfeita, significava que um iria ajudar ao outro.

— Tudo bem Maria, irei ajudar vocês. Podemos começar por Literatura? A aula que tivemos hoje? – ela propôs.

Simon a observou e sorriu, sarcasticamente.

— Por que embarcou nisto? – perguntou a encarando.

Catarina franziu o cenho e o observou. No rosto dele se formava um belo ponto de interrogação com um pouco de cinismo.

— Bem, eu preciso de créditos para a faculdade... Decidi montar este projeto para auxiliar alunos com dificuldades em notas, e assim, posso ganhar créditos. – ela respondeu.

— Você só fez isso para se sentir bem consigo mesma. Da mesma forma que coloca os biscoitos em frente à minha porta todos os dias, desde que meus pais morreram. Caputo, sinceramente, não seja tão frígida e falsa.

Catarina engoliu seco. Os biscoitos era uma forma de agradá-lo, e não alimentar o suposto ego que ele alega que ela tenha.

— Se os biscoitos te incomodam, não farei mais. – ela disse.

Simon riu.

— Vamos Caputo, nos ensine o que precisamos aprender, para sermos exatamente como você. – ele apontou para as roupas de Catarina. – Frígida, certinha, uma boa pessoa, que no fundo, não se importa com isso.

— Cara, tá pegando pesado, qual é?! – Maria se pronunciou, notando que Catarina já estava bem abalada pelas palavras duras que lhe lançavam.

— Que seja... O que tivemos de tão importante na aula?

Catarina pegou seu caderno e procurou o que separou para o reforço daquela tarde. Todos os dias da semana tratariam de matérias distintas, e hoje era o dia de literatura, onde a professora foi bem precisa explicando sobre a peça Cyrano de Bergerac.

— Bom, vamos começar a falar sobre Cyrano de Bergerac. A professora pediu como lição de casa uma análise da peça... Vou comentar um pouco sobre a peça, e vocês podem escrever sobre.

Enquanto tecia palavras sobre Cyrano, Catarina notou que Simon estava disperso, do mesmo jeito que ficava enquanto estava na sala de aula. Não entendia muito bem aonde ele queria chegar a expondo de tal maneira, e dizendo que ela possui um ego alto, que não faz as coisas de coração.

Foi triste notar que para Simon, ela só tinha interesses próprios.

Assim que terminou a explicação, e orientou Maria e Apollo, que ao contrário de Simon, estavam focados, ela entregou para todos um doce de abóbora que havia feito, com a intenção de motivá-los ainda mais.

— Ouvi dizer que doces são motivacionais. – explicou entregando a cada o doce.

— Uau! Você arrasa garota, a aula foi ótima, e já até fiz a lição... você é incrível. – Maria disse mordiscando o doce. – Não liga para esse otário não.

Simon as observou e ignorou o comentário, deixando o doce que havia ganho em cima da mesa, e seguindo para fora da biblioteca.

Estava farto daquele teatrinho, e temia que jamais iria entender a cabeça de Caputo. Enquanto ela temia jamais poder concluir o projeto com alguém tão fechado.

Assim que chegou em casa, Simon serviu ao seu avô uma sopa de batatas e o deitou no sofá, para que o velho homem pudesse assistir ao jogo. Enquanto ele ficava fora, seu avô cuidava do jardim ao lado de fora, arrastando as pernas para um lado e para o outro. Não falava há meses, e Simon temia que jamais voltasse a falar.

Os boatos que ocorriam, era que aquele velho homem estava enfermo, mas ele só não conseguia se mexer direito e não falava mais que três palavras por dia. Podia se virar bem, desde que Simon fizesse o almoço, o jantar e o café da manhã.

— Você plantou rosas vô? No jardim? – ele perguntou ao velho, que assistia TV.

Não obteve uma resposta como esperava, e seguiu para o fundo da casa. Seu avô precisava se divertir um pouco com o entretenimento da TV, e ele, precisava afogar suas angústias no cigarro.

Acendeu o cigarro, e se sentou no balanço, pendurado na árvore de seu quintal. Seu quintal era o mais bonito de toda cidade. Ele podia ver o mar dali, mesmo que estivesse apenas a alguns passos de entrar no mar, adorava observar. Dali, podia também ver o quintal da família vizinha, os Caputos, que mantinham o quintal secretamente preenchido por plantas silvestres, e nenhum deles pisavam o pé para fora, a não ser Catarina.

Simon sabia que ela só pisava no quintal para observá-lo. Tão curiosa, e tão estranha.

Ele observou o quintal da casa ao lado e sorriu. Havia algo em Caputo que ele achava divertido, mesmo sabendo do quão mesquinha era, ou acreditava que ela fosse assim.


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem!

Um abraço.



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